Durante alguns dias não se falou de outra coisa: a entrevista de José Américo de Almeida a Carlos Lacerda, publicada no Correio da Manhã. Até as notícias da guerra — com os alemães encurralados, os japoneses a serem expulsos de ilha após ilha e a tomada pelos pracinhas de Monte Castelo — deixaram de ser motivo de conversa. Sobre o que todos especulavam eram as razões do súbito desleixo da censura. Havia quem dissesse que os militares, sob pressão dos companheiros que lutavam na Itália, exigiam de Vargas o retorno do país ao regime democrático.
Tudo se pôs veloz, como se um fato puxasse o outro: o lançamento do Brigadeiro à Presidência da República, a convocação de eleições, a candidatura de Dutra, a libertação de Luiz Carlos Prestes e dos demais presos políticos, a fundação dos partidos. Por toda a parte, viam-se pessoas com distintivos na lapela — a tocha da UDN ou a foice e o martelo. O menino começou a buscar um emblema do PSD e, só a custo, o conseguiu: fez-se o único na vizinhança a usar na farda o pequeno escudo com o cruzeiro sobre o céu azul.
Quem mais zombava dele e do seu remar contra a correnteza era o irmão que voltara de Fernando de Noronha. Magro, queimado de sol, com a ameaça da calvície a ampliar-lhe a testa larga, o rapaz, enquanto buscava acomodações, se abrigara, por algumas semanas, com a mãe do menino.
Tudo nele era novidade. Só vinha para casa depois da meia-noite e custava, na manhã seguinte, acordá-lo. Pedia ao menino que não descansasse até vê-lo de pé e o instruiu a, em última instância, caso os gritos e as sacudidelas não bastassem, trazer da geladeira um copo com dois dedos de água gelada e derramá-la em seu rosto. Ao molhar da cara, dava um salto feroz da cama, com um grunhido que se acalmava no assobio a caminho do banho.
O irmão passava horas revendo umas fichas de papel, que enchiam três ou quatro caixas de sapatos. Em cada uma das fichas havia uma palavra, com definições, sinônimos e exemplos de uso. Para iludir o ramerrão do arquipélago, ele começara um pequeno dicionário da linguagem militar, que enfeitava com uns esboços ágeis e claros de coisas e gestos.
O irmão desenhava ainda melhor que o pai. Tinha o mesmo tipo de traço, como se o tivesse herdado. A mão rápida fazia o lápis mostrar uma fivela de cinto a fechar-se ou o movimento do ferrolho de um fuzil. Ao abrir uma folha de papel, o menino encontrou a bateria antiaérea junto à qual o irmão passara incontáveis dias à espera de um combate sempre adiado. Ao redor do canhão, viam-se as caricaturas dos seus companheiros de vigília, magros e gordos, baixos e altos, musculosos e franzinos, todos de bibico, camiseta, calção e botinas.
O irmão contava-lhe como, em Fernando de Noronha, cansados de conservas norte-americanas, os soldados iam caçar cabras selvagens. E como se distraíam, abatendo, a tiros, tubarões que chegavam perto dos rochedos onde ele e os amigos tomavam sol. A principal personagem de todas as histórias era sempre a ilha, com sua beleza azul, verde e dourada, mas até mesmo as que faziam rir deixavam um travo de isolamento e solidão. O mar, soube o menino, pode ser triste.
— Mais que triste, é medonho — afirmou o irmão, a dar o laço na gravata-borboleta, já de paletó, com a divisa comunista na lapela.