Pela outra calçada, a moça vinha, loura, todo vestida de pássaros. Num átimo, o menino compreendeu que, se espantasse as aves, a veria nua, com seu púbis dourado. Estivesse ali a vizinha — continuou no seu sonho —, um beliscão no braço o intimaria a mudar de rumo o olhar, de novo sem pecado, a caminho da missa obrigatória de domingo, na capela do colégio.
— Pela outra calçada — sussurrou ao padre-confessor — a moça loura vinha todo vestida de pássaros… E eu furto as moedas que minha mãe esquece nas bolsas de sair. E leio livros proibidos. E não desprego os olhos dos pés pintados das mulheres. E fico de membro duro, quando a vizinha se senta no meu colo ou pega na minha mão, no cinema. Mas o pior é que não creio em Deus nem na Virgem Maria.
Certa manhã, no calorão da missa, encontrou-se perdido. Bateu-lhe a vontade de chorar pelo Deus que esquecera dentro dele e que negava, como troco da orfandade falsa que lhe dera. Comungou — pela primeira vez, contrito. E, durante semanas, deu-se a leituras religiosas, a desenhar santos sobre a madeira e, depois, a recortar-lhes o contorno e os vazios com uma serra tico-tico. Chegou até a pensar em ser padre, monge, santo. Depois, a descrença foi retomando calmamente, e, com ela, a convicção de que Deus, se existisse, não merecia a tristeza de alguns homens.
Em outras missas, novamente o sacudiu a angústia de sua falta de fé. Novamente, rezou. E novamente, passados dias, volveu àquilo que, embora uma forma de deserto, era a verdade dele, o se saber ou querer sem amparo divino.
No externato, obrigavam-no a cumprir os deveres de católico. Alguns irmãos aceitavam sua irreligiosidade como crise passageira, que a disciplina acabaria por vencer. Outros inclinavam-se a considerá-lo um fruto podre. A ele e a um sobrinho do bispo, que se dizia ateu. Numa tarde, as palavras se fizeram ásperas e, em reação a um castigo que considerava injusto, mandou um marista àquela parte. Foi expulso da classe, à qual só retornaria, se diante dela pedisse desculpas, e em voz alta, ao professor de religião e matemática.
Este entrava, e o menino saía da sala. Punha-se de pé, frente à porta, no corredor, a decorar o “Y-Juca Pirama” e a receber zeros nos deveres.
— Você vai perder bestamente o ano, argumentava um colega. Peça desculpas ou mude depressa de externato.
O menino tinha o orgulho dos tristes. E era teimoso. Não menos obstinado era o marista, de modo que quase dois meses transcorreram, sem que o menino pudesse assistir às suas classes. Foi quando o irmão-reitor resolveu intervir. Chamou o menino ao gabinete e lhe disse que não discutiria os motivos de sua insubordinação. Vá lá que o menino se julgasse, como aluno, injustiçado. Mas não havia justificativa, a não ser a de um rompante irrefletido, que lhe cabia corrigir, para a palavra feia, jogada contra um mais velho e um professor. O menino não se humilhava, ao pedir desculpas, pois, se magoado pelo mestre, o ferira ainda mais com o insulto. Que fosse gente e aprendesse a ser perdoado. E não era preciso ser cristão para isso.
O menino pediu perdão, diante dos colegas, pela má palavra. E voltou às aulas, com o marista a comportar-se como se nada tivesse acontecido. Dava-lhe as notas corretas, mas raramente lhe falava. O menino só lhe respondia.