Quando a carroça, em sucessivas viagens, trouxe os móveis da avó, descarregou na casa do menino meia dúzia de baús. A mãe esqueceu-os durante alguns dias, num quarto dos fundos. Até que abriu o primeiro e dele tirou um leque de plumas de avestruz, sombrinhas de seda, bengalas, a casaca, o fraque e a cartola do pai, um binóculo e uma caixa grande, negra e quadrada.
Aberta, esta se revelou uma vitrola. Na parte interna da tampa, onde, a um canto, se desenhava o cachorrinho sentado, a reconhecer no gramofone a voz do dono, via-se, presa a duas alças, a manivela com que se apertavam as cordas, para fazer girar o prato do disco. A mãe pôs o aparelho para funcionar, e o menino e suas duas irmãs ouviram pela primeira vez algo que era mais que assobio, cantiga de botequim ou cantarolar à toa. Saía do pequeno alto-falante, entre fanhosa e arrastada, uma das peças do Children’s Corner, de Debussy.
Os discos não eram numerosos, mas o menino amava o continuado retorno à “Espanha” de Chabrier, à abertura do Lohengrin, à voz de Bidu Sayão. Alguém lhe disse que os espinhos de cacto, quando de tamanho igual ao das agulhas metálicas, reproduziam o som melhor que elas, com menos arranho e chiado. Passou a recolhê-los, ao passear pela manhã, e a pô-los na mesma latinha preta, forrada de papel estanhado, em que se guardavam as agulhas de cromo, e a pedir, depois, à mãe ou à tia que os usasse na vitrola. Clareava-se a música, mas, algumas vezes, a ponta do acúleo perdia o gume ou se abria antes do fim do disco.
Não se cansara ainda da vitrola e já sua atenção se entornava sobre o binóculo. O que o atraía não era ver, através das lentes, as figuras a se aproximarem dele. O aumento das formas como lhes tirava precisão e brilho. Gostava, isto sim, de pôr um dos olhos nas lentes grandes e usar o binóculo ao contrário: as coisas se reduziam na distância, porém seus contornos se tornavam mais limpos e exatos, cada diminuto pedaço de vermelho, mais vermelho. Tudo se desenhava e coloria com a força e o rigor do pequenino. O próprio movimento era mais nítido, como, de perto, o correr, sobre o muro, da formiga.
Podia ser instantânea a apreensão da beleza de um inseto. O olho o abarcava de uma só vez; não tinha de passear por sua superfície — do focinho ao rabo, da orelha ao casco de um cavalo, por exemplo. Não se perdia a totalidade da forma à vista, nem mesmo quando se cuidava de perceber melhor isto ou aquilo: na mosca, o coçar da cabeça; numa abelha, a asa crespa e transparente sobre o corpo listrado de mel e amarelo. Era distinta, portanto, a visão do realmente minúsculo da recebida através do binóculo invertido. Nesta, se a nitidez crescia, voltavam-se em grão ou nada lindezas do tamanho natural: as volutas da narina e da orelha do cavalo, o fremir nervoso da anca, certa nódoa de cor diferente nas crinas derramadas.
Ao menino não escapava o deslumbramento de uma grande árvore, mas queria também vê-la com as dimensões de uma folha. E isto lhe dava o binóculo ao contrário, ao transformar o real ainda mais do que o espelho.