Apresentação
O espelho a que faz referência o título deste livro não deve ser confundido com o espelho de Narciso. Se bem o ponto focal da sua narrativa sejam os olhos sempre alertas do protagonista, o menino das enxaquecas, não é tanto a imagens de si próprio que ele busca no cristal refletor, mas sim o diorama dos lugares e das pessoas à sua volta. Pois, mais que stendhalianos Souvenirs d’ égotisme, o que temos aqui é, parodiando Rodrigo Otávio, uma espécie de Minhas memórias dos outros. Só que estas são memórias de poeta, e em poeta que se preze o respeito pelo factual não pode excluir o gosto do ficcional, ou seja, do imaginativo: daí o apropriado subtítulo “Ficções da memória”.
Ao narrar liricamente suas recordações de infância no Ceará e do começo da adolescência no Rio de Janeiro, Alberto da Costa e Silva o faz num estilo cuja maestria, por segurança de si, desdenha ostentar-se. Um estilo discreto e castiço, tão aberto às instigações do coloquial quanto cioso do termo ou torneio capaz de pôr, flagrantes e vivos diante de nossos olhos, uma coisa, um bicho, uma cena, uma personalidade. Melhor dizendo — como o próprio memorialista quando refere uma brincadeira de sua infância —, um estilo de binóculo invertido, que busca não trazer para perto o que esteja longe, mas tornar mais nítido o que já está bem perto.
Essa metáfora do binóculo serve também para balizar implicitamente os planos de longe e de perto entre os quais se move a narração. No pano de fundo ela registra a repercussão aqui dos sucessos da Segunda Guerra Mundial. Contra esse longínquo e esfumado pano de fundo ressalta a vividez dos miúdos acontecimentos do dia a dia familiar e provinciano, evocados com uma atenção minuciosa a que não falta ora um toque de ternura, ora um assomo de comoção. Por via dessas evocações, vão sendo resgatados do esquecimento modos de vida e de convivência mais amenos e pachorrentos, se bem os tenha por anacrônicos a sôfrega e tonta modernice de nossos dias.
Talvez por isso mesmo haja Alberto da Costa e Silva posto tão amoroso cuidado no reencontro do seu tempo perdido. Tempo dos brinquedos feitos à mão pelos figureiros de feira; dos vendedores ambulantes a apregoar sua mercadoria de porta em porta; do Tico-Tico com as proezas de Chiquinho, Reco-Reco, Bolão e Azeitona; das cadeiras na calçada para o papo de fim de tarde com os vizinhos; das rezas curativas, as mezinhas caseiras, o café torrado com açúcar mascavo e moído em pilão; dos bondes elétricos com carros especiais para festas de casamento e cordões carnavalescos; da inesgotável Biblioteca Internacional de Obras Célebres que nunca se terminava de ler; dos seriados de sábado e domingo no cine-poeira. De quando em quando, um flagrante mais dramático: o horror do menino pelo abate de animais e a sua precoce descoberta da crueldade da beleza, da culpa de cada um nos crimes de todos; o seu doloroso convívio com o pai fazedor de sonetos e de pandorgas, o pai cada vez mais doente que o iniciou na arte do verso, “daquilo que se inventava para não haver silêncio, o que nascia de um solilóquio que era também dueto”.
Com este Espelho do príncipe, Alberto da Costa e Silva, o poeta de As linhas da mão e o africanólogo de A enxada e a lança que a carreira diplomática felizmente não roubou de todo à literatura, entra no memorialismo brasileiro pela estrada real, a que leva Joaquim Nabuco a Pedro Nava.
José Paulo Paes