O primo que não largava os volumes de Direito vivia provisoriamente na casa do menino. Era um rapaz magro, alourado, de pele muito alva e olhos a se inclinarem para o azul. Tinha uma conta a cobrar à vida e, talvez por isso, parecia ao menino permanentemente iluminado de um ouro muito claro e de uma espera como as que se alongam nos sonhos.
O pai dele era irmão do avô materno do menino, do que se fora para o Amazonas e lá morrera. Instalara-se bem mais perto, em Granja. Coletor de impostos, gostava de política e militava na maçonaria. Uma tarde, ao sair de casa, foi abordado por uns desconhecidos, que o retalharam a facadas. Deixou mulher e nove filhos.
Ainda mais do que depois, naquela época, viuvez era sinônimo de pobreza. Se o marido tinha posses, estas geralmente o sobreviviam por pouco tempo: parentes e compadres juntavam-se à inexperiência da viúva para despojá-la da maior parte dos bens. Se salários ou comissões tinham sustentado em vida o falecido, a morte deixava mulher e filhos sem nada e à mercê da cruel caridade da família: só conheciam o montepio os dependentes de militares.
A tia-avó era acaboclada, forte, de pescoço grosso, olhar reto, boca voluntariosa, ainda que mostrasse a curva amarga. Refugiou-se numas terras que pertenciam a seu pai e com elas alimentou, vestiu e fez estudar todos os filhos. Não deixou jamais de contar na memória as feridas do morto. Nem os garotos esqueceram o pai apunhalado.
Na imaginação familiar, o estudante de Direito acabaria por punir os assassinos. Daí que o menino visse em todos os gestos do primo a marca de quem se vai cumprindo como desejam os deuses. O primo saía do quarto, em camisa, e era, para o menino, um Aquiles à procura das armas para vingar Pátroclo. Ainda que sem lágrimas, a assobiar ou a sorrir, carregava sempre consigo a morte do pai, como se estivesse vestido com as suas roupas.