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Da sala que fora de visitas não se ouvia o quintal. Por isso, nas tardes de sábado, era o esconderijo de quem se desejava mouco aos ruídos de fora. Só desenhava e desenhava. Pois não conseguia concentrar-se na leitura. A pele ardia. Nas veias escutava o afiar da faca na pedra molhada, o cacarejar e a correria das galinhas no cercado — e, de outro tempo, longe, a voz da moça, linda, que as matava cantando. Queria abrigar-se do menor barulho. Mas acabava atento a um ciscar no jardim, a uma troca de palavras em voz baixa, ao pio de um passarinho, ao abrir da janela de uma casa defronte. Não fosse ele ouvir o grito rouco da galinha! Não fosse ele ouvir a aflição das asas! Não fosse ele ouvir a colher a bater no prato o sangue, no ritual da cabidela! Acabava por largar o lápis, as unhas das mãos a doerem como se presas na gaveta, os olhos prontos para o choro que não vinha, os ouvidos a pedirem uma surdez de quartzo, e todo o corpo, o despregar-se do agora. Quebrado por dentro e cheio de abandono e medo, não podia sair da sala, ir beber um copo d’água. Não fosse ele chegar à copa no exato momento em que se matava a galinha! Não fosse ele vê-la depenada! Pulava a janela: ia urinar no jardim. E de volta, encolhido no sofá, ou de cotovelos apoiados sobre a tábua da papeleira, as mãos a taparem as orelhas, imaginava-se a implorar à mãe que na casa não se matassem mais galinhas. E ela lhe respondia que nem galinhas, nem patos, nem perus, nem bacorinhos. E para ele, na brevidade de um bater do coração, a vida podia ser boa, com o pai curado, a mãe alegre e as aves livres da matança. As aves e os bichos pequeninos. Mas os olhos acordavam para a tarde de sábado. E o menino sabia ser inútil a súplica, porque os grandes não conheciam a piedade, nem sofriam no próprio corpo a degola e o estripar dos animais. A mãe riria, se ele lhe explicasse a dor dos sábados. A avó riria. Tinha de calar a angústia que o rasgava da garganta à virilha. Era ele o esfolado. Era sobre ele que se derramava o álcool, para queimar as sobras de pelo ou de plumagem. Eram dele as vísceras arrancadas. Era ele quem sentia o sangue a escorrer-lhe do rosto, quando o cobria com as mãos, no desespero dos sábados. Como perdoar à mãe por não atender ao que não sabia implorar-lhe? O que lhe restava era rezar à noite — venha logo! —, para que pudesse sair daquele refúgio tão frágil e, sentado no chão ao lado da cadeira do pai, encostar a cabeça em seus joelhos e prever, em silêncio, a provação do dia seguinte: a mesa posta, com tudo o que era bom — o pão, a manteiga, o arroz, o feijão, o quiabo, a macaxeira —, e o ter de afastar os olhos do corpo da galinha, inteiro ou despedaçado, e o ter de reprimir o ódio aos que a mastigavam, e o horror e o nojo de estar ali com eles, de ser como eles, na forma e nos gestos da carne e nas entonações da fala, embora se recusasse a provar da comida cruel e até mesmo de uma batata que a tocasse. Ele pressentia que cada um de nós tem dentro de si uma exigência de pureza e que é preciso dizer-lhe sim, e sim, e sim, e muitas vezes, sim, e para sempre, sim, ou, no minuto da morte, não teremos de nós senão a ausência.