O Natal punha em seus joelhos novos livros de Monteiro Lobato e o Almanaque de O Tico-Tico. O menino ia e voltava, como entre quartos da mesma casa, dos contos de Machado de Assis para as travessuras da marquesa de Rabicó, as invenções de Kaximbown, as trapalhadas de Lamparina e os cascudos de Chiquinho em Benjamim. Os bonecos de Belmonte, Storni, J. Carlos, Yantok e Luís Sá aliviavam-lhe as pálpebras, baixas pelo peso de um relato de Fernão Mendes Pinto, lido com dificuldade e insistência.
Arrumou os volumes cartonados na mala que levaria a Mecejana, onde, para fugir ao calor, a mãe havia alugado, nas férias das crianças, uma pequena chácara, com mangueiras, taperebás, abacateiros e outras árvores altas ou capadas. Numa delas, logo na primeira noite, o menino viu a gambá, com os filhotes de cabeça de fora, na bolsa da barriga. Parecia uma rata, à distância, embora tivesse cauda mais longa e fosse pouco maior do que um grande gato.
A mãe mandou chamar o caseiro, para que desse fim ao animal. Mas arrepiou a ordem, ante os rogos do menino. Não adiantou explicar-lhe que os cassacos fediam e matavam as aves e outros animais menores, para chupar-lhes o sangue.
— Está viva e tem filhotes. É sagrada.
À réplica do menino deu reforço a inquietação do pai. E para acalmar os dois, deixou-se a gambá seguir, lerda, galho acima e desaparecer na folhagem.
Esta era densa, por toda parte. O próprio caminho de barro que levava à casa estreitava-se entre árvores, arbustos, trepadeiras e moitas cerradas de bambu. Todo esse verde — e o vermelho, o amarelo, o azul e o branco que as flores a ele acrescentavam — fazia-se, de manhãzinha, molhado e brilhante. Bom de se cheirar. Bom de se ter nas mãos. Bom de se ouvir mover, com o saltitar dos passarinhos.
Bem cedo, o menino e o pai percorriam o carreiro até a vacaria. Cada qual com seu copo, para o leite mungido.
Junto ao curral, o menino retirava do bolso do macacão as moedas para a paga e as passava ao leiteiro, que, abrindo a cancela que separava as vacas dos filhotes, deixava entrar um desses. Corria o bezerro ao ubre da mãe e, mal começava a mamar esganadamente, já era puxado para trás e amarrado a uma das pernas dianteiras da vaca O homem sentava-se, depois, num banquinho, bem perto das tetas, e, com um movimento para cima e para baixo de uma e outra mão, procedia à ordenha, o leite caindo em jorro forte, primeiro, numa vasilha de lata e, em seguida, nos copos que lhe entregavam o pai e o menino.
Os dois voltavam para a casa pelo mesmo carreiro. Calados e lentos. A repetirem o simples da beleza. Até que o pai, um dia, sem precedente e aviso, descruzou os braços e se pôs a cantar. Alta, a voz — sem alegria. Mas, na rouquidão do entoado, o canto foi afastando o matagal e expandindo o céu, como depois da chuva. O menino sentiu-se no colo de tudo, pequenino e senhor da menor das coisas e das grandes rodas de espaço e luz a se moverem, enquanto os êmbolos, as polias, os rolimãs, os martelos e as cremalheiras do ar e do chão, da flora e da fauna se repetiam nas gavinhas, nos brotos, no roçar do vento nas folhas e num bater de asas na ramagem, no partir de um graveto, na frutinha vermelha e na breve pereba de seu braço. Porque o pai cantava, tudo era movimento e de novo amanhecia. Só repousavam no barco os remos dos minutos.