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No reinício das aulas, notou a ausência do companheiro de carteira. E no recreio, soube que se havia afogado, três dias antes, num açude.

O colega morto era comprido, magro e moreno, de cabelos lisos e negros, em tudo diferente do primo, que se sentava no banco logo atrás — alvíssimo, cheio de carnes e de pelo melado e crespo. Viviam no mesmo sobrado, com as mães, duas irmãs viúvas, ou separadas dos maridos, e que retiravam o sustento de uma pequena fábrica de doces.

O primo, de triste que chegara, foi-se animando de uma vaidade desajeitada, com o repetir da história do afogamento. Contava como o outro sabia de mergulhos e como o fundo do açude era lamacento e cheio de restos da mata que havia sido coberta pelas águas represadas. O garoto prendera o pé numa forquilha ou num cipoal submerso e não pudera completar a meia-lua do mergulho. Só subiria à tona nos braços dos agregados, que tinham passado a manhã, a tarde e uma outra manhã a procurá-lo. O primo descrevia o inchaço do corpo, mas ressaltava que os caranguejos não lhe haviam comido os olhos, nem os lábios, nem as pontas dos dedos e dos artelhos.

Não foi a imagem do afogado a que acudiu ao menino, quando a mestra convidou-os a um minuto de silêncio, mas a do vizinho de cotovelo, que lhe surrupiava lápis e borrachas, lhe dava, de surpresa, petelecos na orelha e lhe fazia o convite para, depois das classes, irem, com o primo, até a casa deles.

Esta ficava a umas dez quadras do colégio. Fizeram o percurso como se tivessem ido à esquina, entre passo e carreira, e mudando, perseguidores e perseguido, de papéis.

No caminho, um dos primos ensinou como mamar diretamente numa cabra, e o menino lhes disse que tomara, durante alguns meses, leite de jumenta, para ver se ficava menos mofino e amarelo. Uma tia-avó dera o conselho, mas não o animal, que vinha, de aluguel, todas as manhãs, ser amojado à porta do menino. Constava que leite de jumenta era mais forte que o de vaca, mas o menino nunca lhe sentiu diferença de sabor, nem se fez menos pálido ou mais gordo.

O sobrado dos dois primos tomava toda a esquina. A família morava nos altos, a parte baixa ocupada pela doceria, com mais de uma vintena de moças de gorro e avental brancos, a mexerem a massa das tortas, a colocarem as fôrmas nos grandes fornos de ferro, a cortarem em xadrez os bolos retangulares esparramados em amplos tabuleiros. Umas envolviam em papel celofane os quadradinhos de goiabada, bananada e marmelada. Outras protegiam com forminhas de papel as bases das cocadas, das bananas-passas, dos quindins e dos suspiros. E estas atendiam aos vendedores, molecotes descalços, a segurarem na mão a rodilha, enquanto esperavam que lhes enchessem de gulodices os vários compartimentos da grande caixa de madeira que levariam, a gritar e quase a correr, à cabeça. Se um freguês os chamava, desdobravam as quatro pernas da caixa e, atrás do pequeno balcão, recebiam o pedido. Aberta a tampa de vidro, punham na mão do cliente, com uma pinça ou uma espátula, o doce de batata ou de jerimum, o pé de moleque ou o pão de ló.

Desde a rua, sentia-se o cheiro enjoativo de açúcar — mais forte, do mesmo modo que o calor, à medida que se passava de porta em porta e de sala em sala, a caminho da enorme cozinha. Nos corredores, emaranhavam-se as vozes finas das doceiras, a conversarem sem parar, enquanto moviam sobre as mesas as mãos brancas de farinha ou morenas de melaço.