Quando se formou o Governo de Vichy, Seu Caboclinho já mudara de casa. Fora substituído por novos vizinhos, com quatro filhos — um garoto e três gurias —, todos com nomes começando por g. Após quase uma semana de tenteio, com aproximações cuidadosas e desconfiados afastamentos, eles foram aceitos pela criançada daquele canto da rua e logo envolvidos por uma nova brincadeira: fazer teatro.
A ideia era pôr em cena um auto de Natal, uma espécie de presepe vivo, com várias estórias — as dos pastores, as dos Reis Magos, a de São João Batista — a se entremearem com a de Maria e José. A mais velha das meninas em g distribuiu os papéis e desenhou o roteiro de uma peça sem texto, que se modificava ao sabor da improvisação dos figurantes, em cada um dos ensaios que se sucediam, todas as noites, na pequena sala dos vizinhos. Do lado de fora das janelas abertas, havia sempre público — outras crianças, meninotes, amas-secas, pais, tios e curiosos, que aparteavam os atores, sugeriam alterações nas cenas ou nas falas, reprovavam com muxoxos uma personagem ou a aplaudiam com o estalar de dedos.
Havia reuniões para desenhar figurinos, para decidir o preço dos ingressos, para resolver como pendurar o que seria o pano de boca e para fixar a data de estreia, mas tudo era apenas pretexto para os ensaios, para o jogo de inventar incessantemente novos diálogos, dos quais saíam novas situações, novas estórias e novos milagres.
Todos queriam fazer milagres e proclamá-los. Não só a Virgem Maria e São José. Não só cada um dos três Reis Magos. Mas também o empregado que lhes levava pelo cabresto o camelo. E também a pequena fingindo-se pastorinha. E também o molecote que cortava a cabeça do Profeta. Como cada qual se esforçasse para que seu papel, por mais secundário no esboço primitivo, ganhasse relevo, a peça foi crescendo de tamanho e perdendo, no correr das noites, quase tudo que a ligava ao Novo Testamento.
Foi então que as meninas maiores decidiram que não mais se representaria o auto de Natal, e, sim, uma outra história, e depois, quando esta se esgotou por inchaço, uma outra, e outra, e um espetáculo de variedades, com danças, canções, quadros cômicos e palhaços.
Por pouco tempo trocou-se o palco pela arena do circo. A mais velha das irmãs do menino ganhara uns patins de presente, e logo, por contágio, a brincadeira de teatrinho foi substituída pelo deslizar das rodas nas calçadas, pelas voltas e rodopios cada vez mais elaborados e pelas competições de velocidade.