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Santo Antônio falando aos peixes — era isto o que o pai desenhava para o menino, a folha de papel de embrulho estendida sobre a mesa da copa. O santo, de bordão, no alto de uma rocha, dirigia-se aos peixes, que, à esquerda do papel, punham, às dezenas, a cabeça fora d’água, para ouvi-lo. O pai traçara o pregador e seu auditório com a mão canhota, como lhe era normal. Porém, ao começar a encher de passarinhos o espaço atrás do santo, mudou o lápis de mão e continuou o desenho com a direita. Sem que se alterasse a precisão das linhas.

O menino calou a surpresa. E esperou alguns minutos, antes de perguntar ao pai se também escrevia com a mão direita. Escrevia. E, para prová-lo, pôs com ela, embaixo do desenho, título e assinatura. Em seguida, sem sorriso e como se fosse a coisa mais comum do mundo, pediu ao menino que prendesse firme o papel, tomou dois lápis e escreveu ao mesmo tempo as mesmas palavras com as duas mãos. O talhe das letras era idêntico, mas não o tamanho: da direita saíam caracteres um pouco maiores do que os da esquerda.

À noite, o menino transmitiu o seu espanto ao grupo que ouvia pelo rádio as notícias da guerra. A mãe sabia ser o pai ambidestro, mas ignorava que pudesse duplicar a escrita. O irmão da avó já ouvira falar de um caso desses: o do médico e escritor Afrânio Peixoto, que podia emitir concomitantemente dois originais da mesma receita, um de cada mão.

Não conseguiu o menino que o pai, nos dias seguintes, repetisse o feito. Ao ouvir o pedido, se o ouviu, o pai perguntou de volta:

— Você sabia que as asas dos colibris só param de girar quando se banham na chuva?