Capítulo 7

Como descrever Jared Keaton a alguém que não o conhece?

Charmoso. Carismático. Altamente inteligente. Um chef genial. Totalmente desprovido de consciência. O homem mais perigoso que Poe alguma vez conhecera. Antipatizara de imediato com ele. Era demasiado superficial, demasiado arranjado, demasiado polido. Fez lembrar a Poe uma reprodução de um pub irlandês. Bonito, mas sem substância.

— Deparei-me com uma pessoa diferente daquela que vemos nos programas de culinária aos sábados de manhã — explicou Poe. — O chef feliz, atrevido e brincalhão é uma farsa. Um papel que se via na obrigação de representar. Longe das câmaras, era distante, inflexível e manipulador. Não me pareceu que ele gostasse do estilo de vida das celebridades, mas era um chef a sério. Todas as pessoas com quem falei disseram que o Jared Keaton era um homem focado e brilhante. Intuitivo no que diz respeito a tendências gastronómicas, vanguardista em termos de novas técnicas, um perfecionista na harmonização com vinhos. A sua hospitalidade era ímpar. Sob todos os aspetos, ele era o melhor que o país já tinha produzido. Colocou o Reino Unido no mapa gastronómico. Chefs, celebridades e críticos de todo o mundo continuam a ir comer ao Bullace & Sloe.

— É o que leio aqui, sim — disse Rigg, enquanto passava os olhos por uma página com partes sublinhadas a marcador cor-de-rosa. — Os depoimentos dizem que ele era espirituoso, inteligente, genial, dedicado, lindo.

— Mas nunca ninguém disse que ele era simpático — retorquiu Poe. — E isso porque ele não o era. Era um homem cruel. Tinha um prazer sádico em causar dor. Era capaz de guardar rancor, executar vinganças excessivas contra desprezos imaginários e castigar chefs que cometiam erros.

— Explique-se melhor — instou Gamble.

— Um chef contou-me um episódio em que tinha exagerado no tempero de um caldo. O Keaton obrigou-o a beber água salgada durante o resto do dia. Passou três dias no hospital com problemas nos rins.

Rigg folheou o processo, franzindo o sobrolho.

— Isso não está aqui, inspetor Poe.

— Não. Há muitas coisas que não estão. Têm de compreender que o Jared Keaton era considerado um deus vivo por quase todos os chefs do país. Uma palavra negativa dele podia dar cabo de uma carreira. Ninguém queria falar oficialmente.

— Mais alguma coisa? — perguntou Gamble.

— Muitas coisas, agente, mas posso contar-lhe uma que mostra bem o tipo de pessoa que ele era. Ouvi isto de três fontes diferentes, e, na minha opinião, é credível. O Jared Keaton tinha uma cozinha tradicional, o que significa que estava dividida em diferentes secções. Secções de quentes, como peixe, sopas e molhos, e secções de frios, como acepipes, saladas e peças de assinatura. Pastelaria e sobremesas. Pesagem e verificação, preparação de vegetais, lavagem de tachos e empratamento.

— E então? — perguntou Rigg.

— Uma cozinha é como qualquer outro local de trabalho. Alguns trabalhos são mais apetecíveis. Têm um estatuto mais elevado e são mais bem remunerados. Por outras palavras, os chefs e o pessoal de cozinha podem ser promovidos. — Rigg e Gamble aguardaram pela explicação. — Na polícia, existem quadros de promoções. Temos a formação necessária e concorremos aos cargos quando são abertos concursos. Vamos a entrevistas. O Jared Keaton fazia as coisas de forma diferente. Organizava o chamado desafio da chapa. Se duas ou mais pessoas queriam o mesmo cargo, ele obrigava-as a pôr as mãos sobre uma chapa quente. O que aguentasse mais tempo, aquele que estivesse disposto a sofrer queimaduras graves pelo cargo, conseguia a promoção.

— Isso tem tudo para ser um mito urbano — disse Rigg.

— As três pessoas com quem falei tinham mãos como as minhas. — Virou as palmas para cima, mostrou as cicatrizes e esperou pelo efeito das suas palavras. — Era esta pessoa que tínhamos pela frente, meus senhores. Nunca conhecerão homem mais inteligente e maléfico. — Fez uma pausa e bebeu mais um gole de água. — Mas a sua inteligência era também a sua maior fraqueza. Julgo que ele não considerava possível que alguém não acreditasse nele. Tinha passado a vida a vergar e a moldar as pessoas segundo a sua vontade, e não concebia que alguém pudesse ser imune. Quando realizei um exame forense ao restaurante, descobri que ele tinha adquirido recentemente vários artigos.

— Que artigos?

— Um serrote de talhante, um cutelo europeu e um cutelo chinês, e uma faca de desossar.

— Presumo que o que acaba de descrever sejam as ferramentas do seu ofício.

— De facto, são. E o Bullace & Sloe compra peças de carne inteiras para desmanchar no local. É um método mais económico. Mas há duas coisas que devem saber: por norma, o Jared Keaton não faria tarefas de somenos importância como encomendar equipamento (isso competia à Elizabeth), e as facas e os cutelos que ele encomendou correspondem aos que usavam na cozinha.

— E então?

— Eu estava convencido de que ele tinha matado a Elizabeth com esses utensílios.

— Com todos?

Poe encolheu os ombros.

— Sabemos que houve uma luta. Ele pode não ter conseguido dominar a situação por completo. Não tinha ferimentos defensivos, mas isso não significa que a Elizabeth não tenha pegado em algo para se defender. Julgo que os utensílios originais estão onde ela está.

— Mas continuava sem saber como é que ele transportou o cadáver ou como se desfez dele — insistiu Rigg. — Não é uma tese perfeita, Poe.

— Não há teses perfeitas. E, seja como for, a perfeição é a inimiga do bom.

— Chegou a determinar o móbil do crime? — perguntou Rigg. — Mesmo que não o tenha revelado?

— À exceção de ele ser um psicopata, não — admitiu Poe.

— Um palpite?

— Os palpites são um perigo para os investigadores. Tento não ir por aí.

Rigg corou com aquela farpa. Voltou a concentrar-se no processo.

— Acredita que ele planeou o crime?

Poe fez uma pausa.

— Sem dúvida que é suficientemente inteligente para escapar incólume a um crime. O facto de isso não ter acontecido faz-me acreditar que não, que ele não planeou o homicídio.

— Terá sido um crime passional?

— Provavelmente. Mas, se tentar aplicar o raciocínio de uma pessoa normal ao que o Jared Keaton pode ter feito sob pressão, nunca vai conseguir acertar.

— Portanto, não tinha os meios nem o móbil, e havia apenas uma ténue janela de oportunidade — concluiu Rigg. — Admira-me que o Ministério Público tenha avançado com a acusação.

Não se tratou de uma pergunta, por isso Poe manteve-se em silêncio. A decisão do Ministério Público de acusar Keaton de homicídio tinha tido por base duas premissas: a sua recusa categórica em explicar as discrepâncias e o facto de ser quase certo que tivesse ocorrido um homicídio.

Rigg esboçou um esgar perante o silêncio de Poe.

— Admira-me que ele tenha sido condenado — acrescentou Gamble. Parecia estar cansado.

— A mim, não — ripostou Poe. — O Ministério Público fez um bom trabalho a convencer os jurados, mas a verdade é que o Keaton foi prejudicado pelo seu próprio ego.

— O seu ego? — perguntou Rigg.

— O advogado não queria que ele testemunhasse, mas ele insistiu. Julgo que ele pensava que bastava sorrir e piscar o olho às duas juradas.

— O júri tinha apenas duas mulheres? — perguntou Rigg. — É uma improbabilidade estatística.

— Foi um daqueles caprichos do destino. E o seu charme não foi muito eficaz nos homens da classe operária de Cúmbria.

— Mas bastaria que as duas juradas o considerassem inocente.

— Pois, mas o porta-voz tinha uma personalidade forte — disse Poe. — E demoraram muito tempo a deliberar. Quase dois dias. Quando o veredito foi lido, o Keaton ficou revoltado. Não queria acreditar que tinha sido considerado culpado. Mas foi a decisão certa, e eu dormi bem nessa noite. Não é todos os dias que tiramos um verdadeiro psicopata das ruas.

Rigg não comentou. Em vez disso, virou-se para Gamble à procura da deixa.

— Senhor superintendente?

Gamble acenou uma vez com a cabeça.

— Então, como reagiria, inspetor Poe, se eu lhe dissesse que a Elizabeth Keaton entrou na biblioteca de Alston há três dias sã e salva?