Capítulo 9

— Vai querer ver as gravações — disse Gamble, levantando-se. — O agente Rigg vai arranjar-lhe um computador.

Obviamente, sabia que, quando um homem via ser estilhaçada uma das suas crenças fundamentais, a transição de descrente para convertido não era instantânea. Há alturas em que impera a máxima do ver para crer.

O superintendente deixou Poe por sua conta enquanto Rigg foi buscar um portátil. Poe bebeu o resto da água. Estava tépida e coberta por uma película de pó, mas isso não lhe fez diferença; a sua boca estava completamente ressequida. Sentia um nó no estômago e não conseguia parar de mexer a perna. Tudo indícios do nervosismo que se apoderara dele. Não fazia sentido. Elizabeth Keaton estava morta. Ele estava certo disso.

Ou não estava?

Ele estivera certo disso. Disso, lembrava-se bem. Mas também se lembrava de sentir uma imediata e profunda antipatia por Jared Keaton. Assim que o conhecera, percebeu que ele era um homem desonesto e manipulador. Mas também sabia que, quando contamos com o logro, vemo-lo em toda a parte. Teria sido isso que acontecera naquele caso? A sua antipatia por Keaton tê-lo-ia feito ver coisas que não existiam? Tê-lo-ia feito interpretar as provas de uma só forma, construir uma narrativa que só tinha em consideração os factos que a sustentavam, descartando como irrelevantes os factos contraditórios? Não lhe parecia que o tivesse feito, mas aí é que estava: nunca ninguém pensa que está perante um caso de confirmação preconcebida — o mais fiável dos bloqueios mentais.

Além disso, o facto de não saber como Keaton se conseguira desfazer do cadáver de Elizabeth sempre o perturbara. Convencera-se de que Keaton tinha conseguido enganá-los; de que, um dia, o corpo de Elizabeth seria descoberto algures. A lei contemplava condenações por homicídio na ausência do cadáver precisamente para casos como o de Keaton.

A sua mente estava a mil. Ele era um bom polícia, mas não era infalível. Se ficasse provado sem sombra de dúvida que se enganara, ele seria o principal causador de seis anos de terror absoluto para Elizabeth Keaton. E de seis anos não muito melhores para Jared.

Como poderia ele pedir desculpa por algo dessa dimensão? Como poderia emendar tal erro?

Rigg voltou a entrar na sala, trazendo um portátil. Pousou-o diante de Poe e abriu-o. Já estava no sítio certo.

— As conversas estão configuradas para serem reproduzidas por ordem cronológica. O primeiro ficheiro contém as imagens de videovigilância da biblioteca de Alston. Pode assistir ao primeiro contacto.

Poe não se mexeu.

— Se tiver cometido um erro, admiti-lo-ei, Rigg. Não me furtarei às consequências.

Rigg abandonou a sala sem responder.

O ficheiro da biblioteca de Alston não era particularmente útil. A imagem era nítida, mas não tinha som. Mostrava a jovem a entrar na biblioteca, a hesitar como se estivesse a ganhar coragem para fazer alguma coisa, e a aproximar-se da secretária onde estava sentado um polícia fardado com ar de enfado.

Era indesmentível — a jovem era mesmo muito parecida com Elizabeth Keaton. Estava magérrima e imunda, mas as semelhanças eram extraordinárias.

Depois de se sentar, ela articulou algumas palavras. Deve ter dito o seu nome, visto que o polícia reagiu de imediato. O homem pegou no rádio (Poe percebeu que os seus lábios se mexeram) e depois contornou a secretária para consolar a rapariga. Gritou qualquer coisa. Fora do plano, alguém teria preparado um chá, visto que poucos minutos depois chegava uma chávena de chá e um prato com bolachas pela mão de uma mulher de meia-idade. O polícia dispensou-a assim que ela pousou a bandeja.

A jovem não esboçou o menor gesto na direção da chávena ou da comida.

Não aconteceu nada de muito relevante nos 30 minutos que se seguiram; ainda assim Poe não se sentiu tentado a pôr as imagens a andar mais depressa. O polícia e a jovem aguardaram sem trocar uma palavra. Poe alcançou o processo que tinha sido deixado para que o pudesse consultar. Encontrou os apontamentos que o solucionador de problemas Alsop tirara. Se atualmente chamavam solucionadores de problemas aos polícias, então o mundo estava definitivamente perdido… Eram anotações apressadas, mas davam conta do que se tinha passado. A rapariga dissera chamar-se Elizabeth Keaton, e, a partir desse momento, ele passara a tratá-la como uma vítima de crime. Contactara o seu superior, que lhe dissera para se manter junto dela e não fazer perguntas, mas para anotar tudo o que ela dissesse. Deveria aguardar pela chegada de reforços.

Os reforços assumiram a forma de dois agentes. Um deles era Rigg. Não admira que estivesse tão zangado; tinha estado envolvido desde o início. Rigg e o outro agente falaram com Elizabeth durante algum tempo. Em seguida, conduziram-na para fora da biblioteca, e não mais foram vistos.

Poe abriu o ficheiro com o nome «Interrogatórios policiais». Tinha três vídeos no total.

O ficheiro identificava o local das conversas como sendo a esquadra de Penrith. Eram imagens de boa qualidade — daquelas que são admissíveis como prova em tribunal —, e Poe assistiu ao desenrolar da conversa.

Na primeira conversa, ela ainda tinha a roupa que usava quando entrou na biblioteca de Alston. Poe ficou surpreendido ao constatar que não lhe tinham dado um fato forense descartável, para preservação das provas. Rigg referira que ela não queria que lhe tocassem, pelo que despir-se em frente a estranhos teria sido ainda mais difícil para ela. Apesar do calor que se fazia sentir por ser verão, mantinha o gorro bem enfiado na cabeça. O queixo tocava o peito e os braços envolviam o tronco. Parecia estar aterrorizada.

Rigg, apesar da sua abrasividade inicial, sabia o que estava a fazer. Mostrara-se empático, mas focado. Quando a jovem se desviava do essencial, ele voltava a encarreirá-la com delicadeza. Ao longo de uma hora, conseguira montar uma narrativa coerente — desde o desaparecimento até ao ressurgimento. Os pormenores ficariam para mais tarde. A primeira conversa servia sempre para definir os traços gerais.

Ela explicara-lhes o que tinha acontecido na noite do rapto. O homem entrara na cozinha vindo do restaurante. Ela ficara surpreendida, mas não assustada. Não era a primeira vez que um cliente sucumbia à excelência da sua carta de vinhos e acabava por adormecer na casa de banho. Tinha havido uma luta que ele vencera, maniatando-a depois com um cordel de talhante. Em seguida, tudo se passara como Rigg descrevera anteriormente. O homem recolhera parte do sangue dela, que espalhara pela cozinha, antes de passar algum tempo a limpá-lo.

Ela fora encaminhada para uma carrinha e atirada para a parte de trás. O homem pressionara-lhe um objeto que não identificara contra a cara, e ela acordara mais tarde numa sala subterrânea. Pensava tratar-se de uma adega, mas não tinha a certeza.

Fora um relato emocionalmente extenuante, pelo que Rigg insistira, e bem, que todos fizessem uma pausa. A câmara não fora desligada, e Poe continuou a ver as imagens — queria ver tudo. A jovem ficara sentada a olhar para o vazio durante quase 20 minutos. Não tocara em nada.

Por fim, a conversa retomara, e Rigg avançara para a questão do raptor. Ela não se lembrava de alguma vez o ter visto a comer no Bullace & Sloe. Em seguida, fizera uma descrição dele — que seria indubitavelmente trabalhada mais tarde por um retratista da polícia —, explicando depois como tinham sido os últimos seis anos. O cenário era tão horrível como se poderia esperar em tais circunstâncias. Quando acordara na primeira manhã de cativeiro, ansiara por algo, mas não sabia o quê. Quando o homem entrara com comida e uma seringa, ela pegara na seringa primeiro; soubera instintivamente que era aquilo de que precisava. Bastara um dia para estar viciada. Era assim que o homem a controlava, que garantia que ela fazia o que ele queria quando a visitava.

Faz o que eu quero e eu dou-te a seringa. Se me fizeres frente, não levas nada…

Fora nessa altura que ela se desfizera em lágrimas. A conversa fora interrompida e a médica-legista chamada. Poe consultou o processo. A médica-legista chamava-se Felicity Jakeman e estava de serviço quando a jovem chegou à esquadra de Penrith. Aparentava ter 40 e poucos anos e tinha o aspeto pragmático e atormentado que todos os médicos têm. Examinara os sinais vitais da jovem: pulsação, tensão e temperatura, e dera o interrogatório por terminado. Informara os agentes de que iria enviá-la para o hospital para fazer um exame médico completo. Rigg concordara. Nesse momento, olhara para a câmara, e a ansiedade dele era notória — acreditava na história dela sem sombra de dúvida.

A bem da verdade, Poe também.

O vídeo seguinte fora gravado mais tarde nessa mesma noite. Ainda era Rigg quem conduzia a entrevista. A médica-legista não estava presente, mas informaram a jovem de que ela estava no exterior da sala, para o caso de ser necessário. Para registo, Rigg explicara que a jovem tinha acabado por não ir para o hospital. Recusara-se a deixar a esquadra. Ainda não se sentia em segurança. Para chegarem a um meio-termo, a médica-legista examinara a rapariga no seu gabinete.

Ela prosseguira com o relato da sua história. Os seis anos que passara em cativeiro foram descritos num tom de voz monocórdico e frio. Não foi agradável de ouvir. No final, Rigg tivera mais uma vez o bom senso de fazer uma nova pausa.

Quando voltaram, ela falara sobre a sua fuga. À semelhança da maior parte das suas provações, levantara mais perguntas do que respostas. As visitas do homem haviam parado inexplicavelmente, e, passados quatro dias, quando a compulsão pela heroína a obrigara a agir, ela conseguira finalmente arrombar a porta e fugir. Dera por si numa casa no meio do nada. Num local montanhoso.

Caminhara a noite toda, mantendo-se afastada das estradas, não fosse o homem ter regressado e andar à sua procura. Pelos seus cálculos, teria caminhado uns 15 quilómetros antes de amanhecer e ela conseguir perceber onde estava. Vira as tabuletas da aldeia de Alston e lembrara-se de que ia lá em criança. Sabia que tinham uma esquadra da polícia. Quando pedira indicações a alguém, disseram-lhe que a esquadra tinha fechado há vários anos. Passara a ser um posto da polícia mensal, mas ela estava com sorte: era a quarta quarta-feira do mês…

Rigg fizera-a recuar um pouco e perguntara-lhe o que achava que tinha acontecido ao raptor. Ela não fazia ideia.

«Acha que ele morreu?»

Ela achava que não. Não era um homem de idade, e, a julgar pelo seu apetite sexual, parecia ser saudável.

Rigg inclinara-se e sussurrara algo ao ouvido da outra agente. Esta acenara com a cabeça e saíra da sala. Poe consultou as anotações para saber o que tinha sido dito. Rigg pensara que o homem podia ter sido acusado de um qualquer crime que implicasse uma possível detenção. A linha de inquérito atual passava por verificar todas as residências e locais frequentados por todos os habitantes da zona que tivessem estado detidos ou sido condenados na última semana.

Poe resmungou. Era o que ele teria feito. Assistiu ao resto do vídeo, que revelava pouco mais do que a rotina normal daqueles procedimentos. Fez uma pausa para esticar as pernas. Deambulou até ao refeitório. Tinha um cartão de visitante, mas não sabia o código da porta. Mostrou o cartão da National Crime Agency a dois polícias aos risinhos que o deixaram entrar. Pagou uma sandes de atum ressequida e tirou uma lata de Coca-Cola e uma embalagem de Quavers da máquina de venda automática.

Enquanto comia, refletiu naquilo que vira até então. Não era nada que não lhe tivessem já relatado. A jovem era parecida com Elizabeth Keaton… E então? Muitas raparigas o seriam. Ainda não tinha visto o último vídeo — aquele em que Rigg certamente conseguiria sacar provas de como ela era Elizabeth Keaton —, mas a verdade é que só uma coisa interessava. Teria o sangue sido manuseado corretamente? Gamble afirmara que a cadeia de custódia (a forma como se comprova que as provas apresentadas em tribunal são as mesmas que foram recolhidas no local do crime; uma cadeia de custódia inviolável que não possibilitasse a oportunidade de alteração ou substituição) era irrepreensível, mas Poe precisava de ver com os seus próprios olhos. O primeiro elo da cadeia de custódia era sempre o mais fraco; era aquele que envolvia os intervenientes menos familiarizados com os procedimentos.

 

Rigg estava à espera de Poe quando este regressou à sala.

— Primeiras impressões? — Parecia agora menos ríspido.

— É demasiado cedo — respondeu Poe, sentando-se à frente do portátil. — Não me lembro da Elizabeth Keaton tão magra e pálida, mas se esteve trancada numa adega durante seis anos…

Rigg não comentou.

Poe reproduziu o vídeo.

Tal como Poe pensara, Rigg interrogara a jovem a respeito da sua identidade. Pedira desculpa por isso. Dissera que compreendia que ela tivesse passado por um verdadeiro inferno, mas que o pai havia sido condenado pelo seu homicídio e que, para que a Criminal Cases Review Commission — a organização que investigava os erros judiciais — pudesse encaminhar o seu caso para o Tribunal da Relação, a sua identidade teria de ser comprovada incontestavelmente.

A jovem assentira com a cabeça. Não parecera perturbada, e não tinha quaisquer dúvidas de que o pai não seria libertado enquanto ela não fizesse o que lhe pediam. Fornecera todos os pormenores possíveis sobre a sua antiga vida: quem eram os seus amigos, quais eram os seus passatempos, quais as suas funções no Bullace & Sloe. Revelara episódios da vida na cozinha e falara dos funcionários. Contara-lhes como tinha sido crescer com um pai famoso e que a mãe havia morrido num acidente de viação.

Fora bastante convincente. Mais ninguém teria conhecimento de algumas coisas que contara, e Rigg confirmara que haviam sido verificadas desde então. Ela estava a dizer a verdade, ou então tinha sido muito bem informada.

Enquanto falava e a sua voz sumida cativava os interlocutores, as dúvidas de Poe intensificavam-se. Sempre se orgulhara da sua capacidade de identificar um mentiroso, e não via isso nela. Via apenas uma vítima.

E depois receberam o resultado das análises ao sangue.

Não eram provas circunstanciais ou corroborantes.

Eram provas concretas.