Capítulo 22

— Está anormalmente calado, inspetor Poe.

Poe podia ter dito o mesmo. Estavam novamente na estrada, já a meio caminho, e era a primeira vez que Rigg se pronunciava. Há meia hora que deitava olhares a Poe, como se procurasse algumas garantias. Os seus dedos tamborilavam no volante desde que tinham entrado na A1. Era evidente que o comportamento de macho alfa de Keaton o deixara perturbado. O mau humor inicial fora substituído pelo que parecia ser uma reflexão. Poe sabia bem do que se tratava — sentira o mesmo quando conhecera Keaton. O homem tinha a estranha capacidade de dominar qualquer espaço onde entrasse. Estivesse onde estivesse ou fizesse o que fizesse. Não fizera a menor diferença que ele fosse um criminoso condenado e que Rigg fosse um agente experiente e empedernido; com um gesto do pulso, tornara-o irrelevante. Tornara-o impotente.

— Não pode permitir que ele o afete, Andrew.

Rigg apertou o volante com mais força.

— Ele quem, Poe?

— O Keaton. Não se deixe manipular por ele. Se o fizer, nunca mais se livra dele. Vá por mim.

Rigg virou-se para Poe. Os seus olhos estavam semicerrados.

— Quem é que você pensa que é, Poe? — Este não respondeu. Rigg espetou-lhe um dedo na cara. — O Jared Keaton não me manipulou. Estamos entendidos?

— Perfeitamente, agente Rigg.

— E você também não.

Rigg agarrou novamente no volante e olhou em frente, com uma contração muscular no queixo.

— Como queira.

Se Rigg precisava de salvar a face, Poe não se importava de ser o saco de pancada momentâneo. Abriu o caderno e apontou os seus pensamentos. No final, leu-os para si. Algo não batia certo, mas ele não sabia o quê. Era uma sensação bem no fundo da sua mente. Voltou a ler os apontamentos, esforçando-se por encontrar o que faltava.

E ali estava. Como lhe podia ter escapado? Keaton não fizera o menor esforço para o esconder. Olhou para Rigg. Ele continuava zangado, mas aquilo não podia esperar.

— Lembra-se de o Keaton perguntar pela filha?

Rigg virou a cabeça. Porém, em vez de vociferar contra ele, foi o polícia em si que respondeu.

— Na verdade, não.

Poe tinha a certeza de que ele não o fizera. Não de uma forma significativa. Não perguntara como a filha estava. Rigg fizera um ponto da situação relativamente às buscas pelo raptor, mas Keaton não tinha feito perguntas adicionais. Parecera entediado com tudo aquilo.

— E isso não lhe parece estranho?

— Há dias, falaram ao telefone — disse Rigg. — Talvez tenha ficado satisfeito com isso.

— Talvez.

Poe dissera a Rigg e a Gamble que chef e celebridade representavam a terceira e a nona escolhas de carreira mais populares dos psicopatas, mas isso fora apenas uma forma loquaz de demonstrar a psique invulgar de Keaton. Tanto quanto ele sabia, Keaton não fora formalmente diagnosticado. Recusara-se a fazer qualquer tipo de testes antes de o juiz proferir a sentença de prisão perpétua com possibilidade de liberdade condicional aos 25 anos.

Talvez Keaton tivesse recusado fazer os testes por saber qual seria o resultado.

E então? Sendo um agente da SCAS, Poe sabia que quase um por cento da população cumpria os critérios, mas como Hollywood se apropriara do termo e usara um diagnóstico de saúde mental como estratégia de marketing, a maioria das pessoas partia do princípio de que todos os psicopatas eram assassinos em série. A verdade, no entanto, era muito diferente. A maioria eram cidadãos cumpridores da lei, que viviam e trabalhavam integrados na comunidade como todos os outros.

O facto de Keaton ser um psicopata era um dado adquirido para Poe. Tudo apontava nesse sentido. Provavelmente, era a isso que se devia o seu sucesso — tinha a falta de escrúpulos necessária para suplantar os seus concorrentes.

Mas… para atingir os seus intentos, Keaton teria tido de esconder a sua condição, de se tornar exímio a replicar emoções que seria incapaz de sentir. Como um daltónico que não distingue o vermelho, mas que sabe que a primeira luz do semáforo obriga a parar, Keaton teria praticado as suas emoções até estas se tornarem naturais. Podia não saber o que era a empatia, mas saberia quando a demonstrar. Teria aprendido a rir com os outros e a prestar atenção quando lhe falavam dos seus filhos; a falar sobre o tempo e os planos para as férias. Saberia fingir interesse numa conversa fiada, mesmo que visse os interlocutores como mero gado; irrelevantes, a menos que precisasse deles para alguma coisa. Se demonstrasse algum interesse por alguém, seria porque essa pessoa representava os meios para alcançar um determinado fim.

Keaton era excecional a fazer isso, como nunca Poe tinha visto. Compreendia o que as pessoas queriam ver e ouvir, e satisfazia-lhes essas necessidades.

O que tornava ainda mais implausível que se tivesse esquecido de fingir empatia pela terrível experiência por que a filha passara. Onde estava a raiva fingida? As juras vazias de vingança contra o seu raptor? E onde estava a sua indignação com a polícia pelos seus fracassos catastróficos?

Porque não tinha ele usado a máscara?

A resposta era óbvia: não quis fazê-lo.

Mas porquê?

Os pensamentos de Poe foram interrompidos por um som de vibração abafado proveniente do porta-luvas. Tinha-se esquecido do telemóvel — nem mesmo a NCA podia entrar com telemóveis na prisão — e este estava agora a vibrar.

Olhou para o número. Era Estelle Doyle.

— Poe — disse, ao atender.

— Recebi os testes do despiste de drogas, Poe — disse Doyle numa voz rouca.

— Obrigado, chefe. — Não queria que Rigg percebesse que Gamble lhe pedira que confirmasse as suas descobertas. Já estava suficientemente zangado com ele.

— Não pode falar?

— Exatamente.

— O que anda a tramar, Poe?

Ele percebia que ela estava a sorrir.

— O que tens para mim, chefe?

— O teste deu negativo para heroína. Só permanece no organismo durante algumas horas, por isso não me surpreendeu.

— Já se contava com isso. Obrigado…

— Poe, meu querido, deixe-me continuar. Não detetámos heroína, mas encontrámos uma anomalia relativamente àquilo que me contou da experiência da vítima.

Poe sentiu um aperto no estômago.

— Continua.

— Se tivéssemos utilizado qualquer outro processo que não a técnica da cromatografia líquida acoplada à espectrometria de massa, não teríamos detetado. Mas como a NCA estava disposta a gastar quatro mil libras — Poe engoliu em seco; já se esquecera do valor do teste —, encontrámos algo que não batia certo. A princípio, julgámos que se tratasse de tetraidrocanabinol, que, pelo menos, teria sido consistente com o que me contou.

— Ah, sim?

— O tetraidrocanabinol, ou THC, indica vestígios de canábis, e é claro que a canábis permanece no organismo durante muito mais tempo do que a heroína. Se detetássemos alguma droga, seria essa.

— Mas não foi… essa?

— Não, Poe. Um patologista qualquer podia não ter reparado, mas, como todos sabemos, eu não sou uma patologista qualquer. Não era THC; era algo muito diferente. Quando decompusemos as proteínas e voltámos a fazer o teste, descobrimos que se tratava de um químico que só existe em Tuber aestivum.

— Tuber aestivum? — Não se importou que Rigg ouvisse. Não significaria nada para ele.

— Trufas de verão, Poe. Peso por peso, são mais valiosas do que o ouro.

— Então, estás a dizer…

— Sabe bem o que eu estou a dizer, Poe. Antes de aparecer na biblioteca de Alston, Elizabeth Keaton comeu um dos ingredientes mais caros do mundo.