Capítulo 26

— Poe… Poe… Poe…

A voz penetrava nos seus sonhos. Era insistente e repetitiva. Já a ouvia há algum tempo. Abriu os olhos remelosos e olhou fixamente para a silhueta desfocada que pairava sobre ele.

A cara de Bradshaw estava a menos de 15 centímetros da sua. Ele estremeceu para trás com a surpresa, e ela também.

— Mas que raio…?

— Acorda, dorminhoco. — Sentou-se ao seu lado no sofá.

Ele recolheu as pernas para lhe dar mais espaço. Edgar saltou para o sofá e cheirou-lhe o pescoço.

— Tilly… que horas são?

Ele lembrava-se de estar sentado no sofá enquanto ela fazia diagnósticos e testes de acessibilidade nas bases de dados que tencionava usar. Pouco depois, estavam a ter uma das suas conversas unilaterais nas quais o seu único contributo era manter-se acordado. Obviamente, falhara nesse aspeto. Perguntava-se quanto tempo teria dormido. Réstias de luz solar irrompiam pelas frestas estreitas das portadas de madeira. Metade do chalé estava iluminado como um palco. Sendo o pico do verão, àquela altitude, amanhecia muito cedo.

— São 5h36, Poe. — Este brindou-a com um grunhido. Dormira menos de uma hora. Bradshaw parecia revigorada. — Tenho andado a pensar em regras e padrões definidos.

— Tu e todos.

— O problema é que, apesar de termos dados, temos o tipo de dados errado.

— Por amor de Deus, Tilly. Deixa-me acordar e beber um café.

Ela esbugalhou os olhos e ele pediu desculpa. Tilly não tinha culpa de que ele tivesse adormecido.

— Não tem importância, Poe. Sei que isto deve ser muito stressante para ti. — Ela esticou o braço e fez-lhe uma festa constrangedora na cabeça.

— Pois… Presumo que sim.

— E sabia que ias querer café, por isso… preparei-o de antemão.

Ela entregou-lhe uma caneca. Estava cheia e bem quente.

— És a maior, Tilly.

Ela não bebia café, por isso não sabia dosear a intensidade, mas acertara na perfeição. Enquanto ele beberricava a bebida a ferver, traduziu mentalmente o que Bradshaw acabara de dizer. Qualquer coisa como ter o tipo de dados errado. Estava prestes a perguntar-lhe o que queria dizer com aquilo quando ela disse algo que lhe deu a volta ao estômago.

— Agendei uma videoconferência com a inspetora Flynn para as 11 horas, Poe.

— Fizeste o quê?!

— Eu disse que agendei uma…

— Porque fizeste tal coisa?! — Ele tencionava ligar a Flynn primeiro para lhe explicar o que se passara. Agora, ia parecer que andava a evitá-la.

— Foi a condição da chefe. Temos de fazer relatórios diários. Ela disse que precisava de controlar os parâmetros do inquérito de modo a garantir que cumprimos os protocolos da SCAS.

Poe fez uma pausa. Aquilo soava a discurso de Bradshaw, não de Flynn.

— O que disse ela ao certo, Tilly?

Bradshaw corou.

— «Se o Poe pensa que pode fazer o que quiser sem a supervisão de um adulto, está muito enganado.»

— Ela disse isso?

— Sim. Mas com palavrões à mistura.

— Que indelicada.

— Já podemos começar?

— Podemos, Tilly. Vamos revirar umas pedras e encontrar o que não quer ser encontrado.

Bradshaw assentiu.

— Bem dito, Poe.

 

Quando estavam sentados a beber chá e a comer torradas, Poe fez a pergunta que receava fazer desde que Bradshaw chegara.

— A tua mãe sabe onde estás, Tilly? — Sentiu-se um pouco parvo por estar a fazer aquela pergunta, mas não tinha alternativa. A Sra. Bradshaw sabia o número de telefone dele. Bradshaw era apenas alguns anos mais nova do que Poe, mas, para a mãe dela, ela nunca devia ter largado o mundo académico para enveredar por uma carreira na NCA.

— Sabe, Poe.

Reparou que ela não dissera que a mãe não se importava que a sua única filha tivesse arrancado para o norte em mais uma missão de duração indeterminada. A última vez que haviam trabalhado em Cúmbria tinha sido… desnecessariamente estimulante. Bradshaw acabara por ter de ir buscá-lo ao interior de um edifício em chamas. Ambos tinham as cicatrizes que os lembravam disso mesmo.

— E?

— Não ficou contente, Poe.

— O que disse ela ao certo?

— Disse que não tinhas o direito de me pedir para vir e que o mais certo era voltares a pôr-me em perigo.

— E o que disse o teu pai?

— Ora… «Fez o Washington Poe muito bem, porra!» — respondeu Bradshaw. — A minha mãe repreendeu-o pela linguagem.

Poe sorriu. Só falara com o pai de Bradshaw uma vez. Era soldador. Um operário até ao tutano. Um tipo às direitas. Amava a mulher e a filha. Poe não fazia ideia de como é que os seus genes se combinaram com os da Sra. Bradshaw para gerar a pessoa que estava à sua frente em Herdwick Croft.

Contudo, Bradshaw estava diferente. Quando se conheceram, houvera uma antipatia imediata entre os dois: ele era o Ludita e ela era o génio idiota. Mas… acabaram por encaixar na perfeição. E, como isso aconteceu, as atitudes dos dois tornaram-se mais brandas. Bradshaw já não se sentia frustrada com a sua indiferença relativamente a questões matemáticas e científicas, e ele deixou de corrigir todas as suas gafes sociais. Ao invés, começou a apreciá-las. Enternecedora e constrangedora, era assim que ela era. Poe já não conseguia imaginá-la de outra forma. E parte da sua inaptidão desaparecera. Ela já não mantinha os olhos fixos nos seus enquanto conversavam, já não falava tanto dos seus movimentos intestinais e deixara de começar todas as frases com «Adivinha-me isto, Poe». Até começara a reconhecer a altura durante os seus monólogos em que o olhar dele ficava vazio. Por mais de uma vez, acontecera ele adormecer e perceber, ao acordar, que ela continuara a falar.