— Acabei de falar com a chefe da polícia de Cúmbria — disse Van Zyl —, mas, antes de falarmos sobre isso, podem pôr-me ao corrente da investigação?
Flynn fez um ponto da situação minucioso. Consultou os seus apontamentos apenas uma vez e, quando tinha dúvidas, pedia ajuda a Poe e Bradshaw.
Quando terminou, Van Zyl ficou em silêncio.
— Poe — disse ele, por fim —, amanhã à tarde, às 15 horas, deverá apresentar-se na esquadra de Durranhill para ser formalmente interrogado. — Consultou um papel que tinha na mão. — Tendo em conta o seu posto, será interrogado pelo inspetor-chefe Wardle. Conhece-o?
Poe assentiu. Esperava aquele desfecho desde que Keaton fizera a sua ameaça velada no estabelecimento prisional de Durham, mas não deixava de ser um choque.
— A chefe da polícia explicou porquê, senhor diretor?
— Não. Se precisar, posso tentar ganhar algum tempo. Posso dizer que o representante do sindicato da polícia só está disponível daqui a uns dias. Seja como for, estou com ganas de lhe ligar a dizer que não pode interrogar um dos meus inspetores sem me informar primeiro do que se trata. Não é de bom-tom.
— Não, senhor diretor. Eu vou. Isto é bom.
— Como assim?
— Mesmo que eu responda a tudo com um «sem comentários», eles terão de abrir o jogo. A partilha de informações beneficia os dois lados, e assim vamos ficar com uma ideia das intenções do Keaton.
— Muito bem. — Poe percebeu que Van Zyl já chegara à mesma conclusão. Se quisesse mesmo impedir o interrogatório, tê-lo-ia feito. — Mas tenha cautela, Poe — advertiu. — Preciso que faça isso como deve ser. Sem alaridos e sem artimanhas. É chegar, descobrir o que eles sabem e vir embora. A chefe da polícia garantiu-me que não será detido amanhã, mas, quanto menos disser, menos eles poderão descontextualizar mais tarde.
— Vou portar-me bem, senhor diretor.
— Ótimo. E quem é esse tal inspetor-chefe Wardle? Parece tê-lo tomado de ponta.
— É alguém com quem tive um mal-entendido, senhor diretor.
Van Zyl esfregou os olhos, esticou os braços atrás do pescoço e bocejou.
— Não sei como consegue arranjar inimigos assim.
— Estamos a falar do Poe, senhor diretor — esclareceu Flynn. — O mais certo é ele arranjar amigos assim.
Finda a videoconferência, e como nenhum queria deitar-se cedo, Poe e Bradshaw meteram mãos à obra. Poe aconchegou os óculos na ponta do nariz e concentrou-se nos registos prisionais.
Procurava qualquer coisa que sustentasse as alegações de Bunney de que Keaton fora esfaqueado. Não demorou muito a encontrar: um período de três semanas em que não havia referência a Jared Keaton no P-NOMIS. Até então o agente destacado para acompanhar Keaton fora meticuloso no registo das interações, mas como lidavam sobretudo com ocorrências nas alas da prisão, se Keaton não estivesse na prisão — mas no hospital, por exemplo —, não haveria nada a registar. E, se tivesse sido esfaqueado, Keaton seria suficientemente esperto para não apresentar uma queixa formal — ser rotulado de chibo na prisão era pior do que ser rotulado de pedófilo. Tudo aquilo teria sido resolvido sem grande alarido, daí não haver nada nos registos a que eles pudessem aceder. Teria ficado registado na sua ficha clínica, mas fora recusado o acesso à mesma a Flynn — o sigilo profissional também se estendia, e bem, aos reclusos a cumprir pena de prisão. O agente destacado para acompanhar Keaton registara por diversas vezes as alturas em que Keaton se dirigira ao hospital prisional, mas nunca por que motivo. Poe ficou com a ideia de que o agente pensava que Keaton inventava doenças para se afastar dos outros reclusos. Isso era comum em reclusos nervosos ou assustados. A ala hospitalar era mais segura, mas, apesar de Keaton ser o manda-chuva no Bullace & Sloe, a verdade é que numa prisão para adultos era apenas um tipo que ganhava a vida a polvilhar bolos com açúcar em pó. Isso, a sua fortuna e o crime que teria cometido faziam dele um alvo.
Poe escreveu uma mensagem a Flynn para a informar do que descobrira sobre o buraco negro nos registos de Keaton. As datas em que o agente não picara o ponto no P-NOMIS podiam ajudar na investigação àquilo que deixara Keaton de bom humor.
Olhou para Bradshaw. Ela estava invulgarmente calada. Por norma, quando trabalhavam juntos, havia sempre um fluxo unívoco de tagarelice. Só nos últimos dias, já ficara a saber que o nome do meio do ator Michael J. Fox era Andrew, que um papel dobrado 42 vezes percorreria a distância até à Lua, e que 70 por cento dos animais selvagens sobrevivem com uma dieta à base de figos. Coisas que não precisava de saber, mas de que nunca se esqueceria.
Porém, hoje Bradshaw estava carrancuda em frente ao portátil. Enquanto a observava, ela tirou os óculos e limpou-os no pano especial que tinha sempre à mão. De repente, inclinou-se para diante e disse:
— C’um camandro!
Estudou a página que tinha à frente durante mais alguns instantes, acenou uma vez e depois virou-se para trás. Pareceu surpreendida por ver que ele a observava.
— O que se passa, Tilly?
— Tenho uma coisa para te contar, Poe.
— É algo que as outras pessoas guardariam para si?
— Engraçadinho… Isto é importante.
Poe sentou-se ao lado dela. O site que ela estava a consultar tinha que ver com o registo de propriedades. No ecrã estava uma morada de Kendal.
— O Jared Keaton tentou comprar esta loja, Poe. Queriam um restaurante-satélite no coração da região dos lagos.
— Que site é esse? — Ela não respondeu, e Poe decidiu não insistir. Havia coisas que era melhor ele não saber. Voltou a concentrar-se no que via no ecrã. Reconheceu a rua. Ficava numa zona agradável de Kendal. Suburbana, mas perto do centro da cidade. — O que tem? — perguntou.
— A venda esteve para se concretizar, mas o proprietário voltou atrás à última hora. Segundo os comentários online, deveu-se a uma questão de princípios. Aparentemente, disseram ao proprietário que os Keatons queriam abrir um restaurante com uma componente social, mas quando ele descobriu que era mentira e que eles tinham agido de má-fé tirou o imóvel do mercado.
— Certo… Mas o que tem isso que ver comigo?
— O dono da loja é o teu pai, Poe.
A mente de Poe entrou em sobressalto. Antes de ter noção do que fazia, interrogou-se que pai seria: aquele que o criara com todo o amor e carinho, ou o que violara a sua mãe? Deu um abanão mental a si próprio — poucas pessoas sabiam do que acontecera à sua mãe, e Bradshaw não era uma dessas pessoas.
— Isso não é possível, Tilly — disse. — O meu pai não tem uma loja. Ele é o maior hippie que existe à face da Terra. Nem sequer acredita no conceito de propriedade… ou de desodorizante.
Ela imprimiu um documento e entregou-lho. Poe leu-o, atónito. O seu pai não tinha apenas uma loja. Tinha várias lojas. E casas. Contou-as. Eram 14 no total. Duas em Keswick, três em Windermere e uma em Ambleside. As restantes localizavam-se em Kendal. O portefólio valia milhões. As rendas que cobrava anualmente atingiam valores na casa dos seis dígitos. Poe olhou para Bradshaw.
— Mas como?
Ela encolheu os ombros.
— O dinheiro resultante das rendas é encaminhado para um fundo gerido com base em princípios éticos. Não consegui saber mais nada.
Poe não sabia o que dizer. O facto de o seu pai beatnik ser um homem de negócios astuto e milionário que tivera um desentendimento com os Keatons era quase inacreditável. Apesar de se questionar algumas vezes sobre a forma como o pai sustentava o seu modo de vida, partira do princípio de que ele andava sempre à boleia, pagava para dormir em beliches nos navios e trabalhava nos sítios para onde viajava. Nunca pusera sequer a hipótese de ele poder viajar em classe executiva.
Uma hora depois, Poe não chegara a conclusão nenhuma. Só conseguia pensar no pai. Era um milionário. Pelo menos, no papel. Perguntava-se se a sua mãe saberia. Provavelmente. Mas o mais certo era não dar grande importância a isso.
Por fim, regressou do seu passado. Algo mudara. Pôs-se à escuta, mas, além das ventoinhas dos três portáteis, o chalé estava em silêncio. Era isso mesmo: a impressora trabalhara ininterruptamente durante uma hora. Mas agora estava parada.
Sem perguntar a razão, ele pôs a chaleira ao lume e preparou um chá. Depois de ter infundido tempo suficiente, pegou nas duas chávenas e voltou para o seu lugar.
— Obrigada, Poe — agradeceu Bradshaw, soprando o vapor e bebendo um gole.
Ele folheou as primeiras páginas daquilo que ela estivera a imprimir. Eram perfis das redes sociais. Página após página de fotografias, comentários e publicações. Na sua maioria, contas que pertenciam a jovens mulheres. Poe ergueu os olhos, perplexo.
— Poe, 76 por cento das mulheres e 82 por cento dos jovens dos 18 aos 29 anos usam redes sociais todos os dias. E 24 por cento fazem-no de forma quase constante. Se a Elizabeth Keaton esteve este tempo todo viva, seria uma improbabilidade estatística que ela tivesse ignorado as redes sociais por completo.
— Mas os perfis dela estão todos inativos — disse Poe. — Foi a primeira coisa que verificaste.
— Os dela sim, mas os dos amigos dela não. Pesquisei quem são e, com base na escola que a maioria frequentou, criei uma identidade e enviei alguns pedidos de amizade.
— Algum deles aceitou?
— Todos.
Ele franziu o sobrolho. Apesar de os adolescentes modernos não conseguirem fazer nada sem o vomitarem para as redes sociais, e apesar de estarem na idade em que ter «gostos» e partilhas é mais importante do que proteger a sua identidade, parecia implausível que todos tivessem aceitado o pedido de amizade de Bradshaw. Não obstante, ela era uma especialista na matéria, por isso talvez não fosse tão implausível. Ela tinha um intelecto ao nível de um génio, jeito para computadores e uma coleção de perfis prontos a usar. Na verdade, lendas. Havia-os construído ao longo do tempo. Tinham passatempos e amigos. Publicavam coisas. Aderiam a grupos. Interagiam com pessoas de carne e osso. Resumindo, faziam tudo o que uma pessoa real faria. Usar as redes sociais como uma ferramenta de investigação era agora uma parte essencial do que ela e a sua equipa faziam.
Mas os documentos impressos incluíam mais do que apenas os perfis dos seus novos amigos. Alguns continham mensagens privadas e informações de grupos fechados. Coisas às quais ela não devia ter tido acesso.
— Como conseguiste isto tudo, Tilly? — Ela fez um ar evasivo. — Tiiiilly? — insistiu, arrastando o nome dela. — O que fizeste?
— Prometes que não te zangas, Poe? — Ele cruzou os braços. — Criei um questionário de personalidade «Se eu fosse uma professora de Harraby».
— E o que é isso?
— É um questionário criado por mim. Todos eles frequentaram Harraby, por isso enviei de uma conta que pode passar a ideia de que frequentei aquela escola.
Poe desconfiava que o que ela queria dizer era que enviara de uma conta que dizia mesmo que ela frequentara a escola.
— Presumo que tenhas um bom motivo para fazer isso… — Ela acenou vigorosamente. — Mostra.
Bradshaw abriu um ficheiro no computador. Tinha muitas indicações de código, mas ele conseguia descortinar texto simples. Eram as perguntas do questionário. Embora infantil, era o tipo de coisas que despertava o interesse nos jovens que passam a vida nas redes sociais.
o nome do teu primeiro animal de estimação é a tua alcunha na escola:
o nome de solteira da tua mãe é o nome do gerbilo de estimação da turma:
a tua comida preferida é a nódoa que tens no teu lenço:
o sítio onde nasceste é onde vais levar a turma numa visita de estudo:
E por aí fora.
Poe pegou num pedaço de papel e apontou quais seriam as suas respostas. Franziu o sobrolho. Tudo aquilo era familiar.
— Isto são…
— As respostas às perguntas de segurança mais comuns a que temos de responder quando queremos recuperar a nossa palavra-passe.
— E isto é legal? — Ela ignorou-o. — Tilly — insistiu ele, desta vez mais alto. — É legal?
Ele não via como pudesse ser. Bradshaw roubara as suas perguntas de segurança e pirateara as suas contas.
— É uma área cinzenta — admitiu.
Ele ponderou naquilo por alguns instantes e chegou à conclusão de que, se era uma área cinzenta, o tom de cinzento era mesmo muito escuro. Tão escuro que uma pessoa cínica podia mesmo pensar que era preto. Fez questão de lho dizer.
— Poe, estás em apuros — replicou ela, com firmeza na voz. — Quero que compreendas que sou capaz de tudo para te proteger. Agora, podemos avançar, por favor? Queres saber o que descobri ou não?
Ele cedeu. Nunca ninguém saberia. Bradshaw entrara e saíra sem deixar rasto.
— O que descobriste?
— É estranho, Poe. Não há nada. Desde o seu desaparecimento que ela não tinha publicado nada em nenhuma das principais plataformas. Além disso, ela nem sequer acedeu para ver o que os amigos andavam a fazer. Nem sequer visitou a página de condolências que os amigos criaram.
— Isso requer… disciplina.
— Extrema, Poe. Todos os dados disponíveis sugerem que as redes sociais são uma parte tão integrante das vidas do grupo de amigos da Elizabeth que um afastamento total seria praticamente impossível.
— Qual era o comportamento dela nas redes sociais antes do desaparecimento? Há algo que te tenha despertado a atenção?
— Nada, Poe. Estava tudo normal. Muita interação com os amigos, muitas publicações sobre o Bullace & Sloe. Nenhuma inclinação política óbvia.
Poe analisou as fotografias que Bradshaw imprimira. Elizabeth Keaton sorria em todas elas e parecia ser aquilo que todas as pessoas tinham descrito: uma adolescente sociável e feliz. Algumas fotografias haviam sido tiradas em festas e outras em discotecas e bares. Outras ainda eram do trabalho. A dada altura, deve ter ido de férias com os amigos. À Madeira, em Portugal, a julgar pelos tags. Poe sabia que a Madeira era uma ilha vulcânica, o que explicava que todas as fotografias em biquíni tivessem sido tiradas em cima de rocha sólida e não em praias.
Franziu o sobrolho. Algo não batia certo. Verificou as fotografias duas vezes para ter a certeza.
— Tilly, o que usarias na praia? — O olhar dela ficou vazio. Era o mesmo que lhe perguntarem o que usava no ginásio. — Esquece — disse ele. — Olha para isto. Diz-me o que vês.
Bradshaw analisou as fotografias da Madeira. Não demorou muito tempo até o seu rosto denunciar que tinha chegado onde ele pretendia.
— Ela não está a usar biquíni, Poe. Todas as amigas estão, mas ela tem sempre uma camisa ou camisola de mangas compridas.
— Exatamente. Acho que está a esconder as cicatrizes da automutilação. — Mostrou a Bradshaw mais fotografias de férias de Elizabeth tiradas quando ela tinha 15 anos. Estas não tinham tags, mas parecia estar em Allonby, na zona oeste de Cúmbria, num raro dia de sol. Nessas fotografias, ela estava de biquíni. — A automutilação deve ter começado entre estes dois períodos de férias — disse ele.
Qual teria sido a causa? Provavelmente, a morte da mãe. Estaria Jared Keaton a par? Se estivesse, sem dúvida que lhe teria dito para tapar as cicatrizes quando estivesse em público. Uma filha que se automutilava não se enquadrava na imagem que ele queria projetar.
Poe pousou as folhas. Se ficasse a olhar para miúdas em biquíni durante muito tempo, Bradshaw diria alguma coisa constrangedora.
Um dos seus computadores emitiu um sinal sonoro. Ela virou-se para ler o e-mail que acabara de entrar na caixa de entrada.
— É da inspetora-chefe Flynn, Poe. Ainda não tem a morada do Jefferson Black, mas sabe onde ele vai estar amanhã.
— Onde?
Ela disse-lhe.
Ele desejou não ter sabido.