— Ah, sim, estava a dizer-vos que tinha tudo: uma nova carreira e uma miúda que me amava. Agora, olhem para mim. Só me sinto vivo quando acontecem merdas destas. — Black apontou para os dois homens inconscientes.
— Oh, meu Deus! — exclamou Bradshaw. Não conseguia desviar os olhos da cena de devastação ainda estendida no chão. Então, levantou-se e gritou: — Há aqui algum médico?
Poe não sabia bem o que se estava a passar, mas uma coisa era certa: não havia médicos no Dog.
— Senta-te, Tilly — disse com brandura. — Eles vão ficar bem. O Sr. Black colocou-os numa posição de recobro.
— Mas…
— Eles vão ficar bem — confirmou Black.
Pelo menos, Bradshaw conseguiu libertar a tensão que começava a acumular-se. Dois clientes riram-se da pergunta que fez sobre o médico. Pouco depois, o riso já contagiara todo o bar.
No meio da algazarra, o homem que tinha a t-shirt na cabeça gritou:
— Se houver, eu sou o próximo!
O Dog voltou ao seu normal. O Gordalhufo e o Lingrinhas foram arrastados pelos membros do grupo que lhes tinha destinado a tarefa. Um deles olhou para Black e pediu desculpa com um breve aceno.
Bradshaw continuava preocupada. O mais certo era estar em choque e a precisar de alguma distração.
— Tilly, podes mostrar ao Sr. Black os documentos que retiraste das redes sociais?
Após uma pausa, ela disse:
— Está bem, Poe.
Abriu a mala e retirou o iPad. Os gestos familiares pareceram acalmá-la. Percorreu algumas páginas até encontrar a que procurava. Passou o iPad a Black, que analisou as imagens. Depois, olhou para os dois, perplexo.
— O que é isto?
Poe fingiu não ouvir.
— Em nenhuma das fotografias mais recentes ela está vestida como as amigas. — Achou por bem não dizer a Black que estivera a ver fotografias de Elizabeth com 15 anos em biquíni. — Presumo que tivesse uns 17 anos quando começou a tapar os braços, supostamente para esconder as cicatrizes de automutilação.
Black olhava fixamente para as fotografias no iPad de Bradshaw.
— A Elizabeth não se automutilava.
Poe estava prestes a dizer que isso não era verdade, mas conteve-se. Black não desviara os olhos do iPad, nem o seu tom de voz se alterara. Limitara-se a constatar um facto.
— Tem a certeza?
Black acenou com a cabeça.
— Porque é que achou que o fazia?
Poe não respondeu. Se Black tivesse razão, a automutilação de Elizabeth começara após o seu desaparecimento. Mas, nesse caso, porque usara uma camisola de manga comprida num dia que pedia biquíni?
— Encontraram-na? — perguntou Black. Poe não respondeu. — ENCONTRARAM-NA?!
Bradshaw estremeceu. E Poe também. O Dog voltou a ficar mergulhado em silêncio. Poe fixou os olhos de Black. Sabia que a melhor forma de acalmar a situação era falar abertamente. Também desconfiava que Black se estava a referir aos restos mortais de Elizabeth, não ao facto de poder ter sido encontrada com vida.
— Não, Jefferson, não a encontrámos — disse Poe. Não era uma mentira descarada. Apesar do que acabara de acontecer, ele até gostava de Jefferson Black.
— Então, porque é que…? — Os olhos de Black ficaram rasos de água. — O que não me estão a contar? Porque é que acham que ela se automutilava?
— Não lhe posso dizer — disse Poe. — Pelo menos para já, mas prometo que assim que puder lhe conto.
Black ponderou nas palavras de Poe.
— Esta coisa da t-shirt é importante?
— Talvez — limitou-se Poe a responder.
Esperaram que Black tomasse uma decisão. Sem avisar, ele tirou a camisola. O seu tronco musculado luzia com o suor. No ombro tinha uma tatuagem que remetia para as alturas: uma águia que gritava, com as garras em riste, a atirar-se a uma vítima incauta. As palavras «1 Para: A Morte Chega das Alturas» estavam tatuadas por cima.
Black virou-se para que Poe pudesse ver o seu outro ombro.
Outra tatuagem, mais simples: uma peça de um puzzle. Um quadrado com cerca de 4 centímetros. O contorno era vermelho e no centro lia-se: Elizabeth.
Poe olhou fixamente, com o coração a bater descompassado. Esperou alguns instantes para assentar as ideias. Aquilo significava o que ele pensava? Se sim, podia mudar tudo.
Tudo.
Manteve o tom de voz o mais calmo possível e fez a única pergunta que interessava:
— A Elizabeth tinha uma tatuagem que encaixava aí, Jefferson?
Black derramou uma lágrima solitária.
— Fizemos as tatuagens juntos. As peças encaixam uma na outra. O meu nome estava no centro da tatuagem dela. O Keaton teria dado em doido se tivesse descoberto. Como ela usava vestidos com alças quando o acompanhava a eventos, teve de fazer a tatuagem num local mais discreto; a dela ficava por cima da anca direita.
Bradshaw pegou no iPad e procurou aquilo que Poe já sabia. Flick Jakeman não referira uma tatuagem quando fizera o exame médico. Alguns minutos depois, Bradshaw ergueu os olhos com a perplexidade estampada no rosto.
— O que significa isto, Poe? — perguntou.
Ele quase respondeu que não sabia, mas as palavras morreram-lhe na garganta.
Porque começava a pensar que sabia…
Agradeceram a Black e deixaram-no entregue à bebida. Assim que saiu para a rua, Poe ligou para Flick Jakeman. Apesar de a médica ter parecido competente, ele queria ter a certeza.
— Estou?
— Dra. Jakeman, fala o inspetor Poe. Desculpe estar a incomodá-la, mas lembra-se se a Elizabeth Keaton tinha uma tatuagem?
Pausa.
— Creio que não, mas tenho de consultar os meus apontamentos. Porque pergunta?
— Foi uma informação que surgiu — respondeu Poe, sem oferecer mais explicações. Não queria dizer-lhe o que procurava, não fosse algum advogado alegar que ele condicionara uma testemunha. — Tem os seus apontamentos à mão?
— Neste momento, estou no consultório, inspetor Poe. Tenho uma cópia no meu computador pessoal, mas terá de esperar até eu chegar a casa. É importante?
— Talvez.
— Está contactável neste número?
— Sim.
— Ligo-lhe assim que chegar a casa.
Ele transmitiu a Bradshaw o que Jakeman lhe dissera.
— Gostas dela, não gostas, Poe?
Ele encolheu os ombros.
— É simpática.
Bradshaw sorriu, mas não acrescentou mais nada.
Poe encaminhou-os para um restaurante que conhecia ali perto. Apesar de terem carnes fumadas e grelhadas na brasa, ele pediu uma salada igual à de Bradshaw; não porque o seu discurso sobre a alimentação saudável estivesse a surtir efeito, mas porque não queria sentir-se muito pesado quando fosse interrogado por Wardle.
Enquanto aguardavam, Bradshaw abriu os seus e-mails e sorriu.
— A inspetora-chefe Flynn enviou-nos todas as informações que solicitámos, Poe.
Passou-lhe o iPad. Havia dois e-mails. O título do primeiro era: «Lauren Keaton: Auto do Acidente». O outro dizia: «Jared Keaton: Esfaqueamento». Ele abriu este primeiro.
Era conciso e direto. Jared Keaton fora esfaqueado, mas, como não apresentara queixa contra o agressor, o episódio fora registado como «acidente» na sua ficha clínica. As agressões prejudicavam a classificação das prisões, por isso, sempre que podiam ser registadas de outra forma, era isso mesmo que acontecia. A lâmina roçara-lhe a bexiga, e ele passara quase um mês no hospital.
Poe procurou informações sobre a pessoa que o esfaqueara, mas não encontrou nada nos registos. Keaton ou não conhecia o homem, ou tinha demasiado medo dele, ou era suficientemente inteligente para saber que os bufos tinham um triste fim.
Crawford Bunney dissera que o bom humor de Keaton era anterior ao esfaqueamento e que as suas lesões não o tinham desanimado. Poe precisava de descobrir o que acontecera para o deixar tão animado. Tinha a sensação de que era importante.
Enviou uma mensagem a Flynn a pedir que aprofundasse as suas averiguações. Não tocou no assunto da tatuagem. Recebeu uma mensagem imediata, mas seca, de concordância com o pedido. Flynn lembrava-lhe ainda que tinha uma reunião marcada com o inspetor Wardle.
As saladas chegaram à mesa e Poe parou de ler enquanto comiam. No final, abriu o outro e-mail. O resumo de Flynn era mais interessante do que o relatório técnico que ela anexara. Numa noite de chuva, Keaton perdera o controlo do carro numa curva e embatera de frente contra uma árvore. Havia lama na estrada — um fenómeno comum em Cúmbria. Apesar de Keaton ter batido com o peito no volante, o airbag do condutor salvara-o de lesões graves. Lauren Keaton não tivera tanta sorte: o seu airbag não fora ativado. O inquérito concluíra que ela o desativara no dia anterior, quando levara o carro cheio de crianças a ver Aladdin num teatro local. A criança que viajava no banco do passageiro seguia sentada numa cadeirinha, e a ideia aceite na altura era a de que os airbags faziam mais mal do que bem às crianças mais novas. O auto concluíra que Lauren se esquecera de o ativar. O médico-legista concordara e registara a morte como acidental. Poe examinou o relatório técnico, mas chegou à conclusão de que tinham feito a dedução certa: a morte de Lauren Keaton podia ter sido benéfica para Jared, mas não passara de um acidente.
Pediram dois chás e beberam-nos em silêncio.
Poe tinha muito em que pensar. Não se livrava da terrível sensação de que ignorara a sua regra de ouro: pensar que sabemos o que se passa é o indício mais claro de que não sabemos. Apesar de a tatuagem só vir acrescentar caos ao caso, desconfiava que já tinha a maioria das respostas — agora, só lhe faltava reformular as perguntas. Para tal, tinha de regressar a Herdwick Croft.
Mas, primeiro, tinha de se reunir com um cretino.