Capítulo 2

As luzes azuis desapareceram da Inglaterra rural. As imponentes esquadras da polícia vitorianas foram votadas à História, reduzidas em número e substituídas por centros de excelência modernos, bem equipados e desprovidos de alma.

Desapareceu também o guarda local, uma figura que agora existe apenas no imaginário daqueles que anseiam por um idílio campestre. Nos dias que correm, os agentes da polícia cumprem o seu turno praticamente a partir da janela do carro-patrulha.

Os supermercados Tesco têm duas vezes mais lojas abertas 24 horas por dia do que a polícia tem esquadras abertas 24 horas por dia.

Nenhuma região sofreu mais com a situação do que Cúmbria. Um condado com mais de 7500 quilómetros quadrados — em termos geográficos, o terceiro maior de Inglaterra — tem apenas cinco esquadras a tempo inteiro.

Alston, em North Pennines, a vila mercantil mais elevada do país, seguiu obviamente pelo mesmo caminho. A sua esquadra, um enorme e lindíssimo edifício independente, foi vendida em 2012 e substituída por um posto de polícia. Todas as quartas quartas-feiras de cada mês, um elemento da equipa de policiamento local Eden Rural — os chamados «solucionadores de problemas» — desloca-se até à vila, senta-se a uma secretária na biblioteca e regista as queixas dos cidadãos.

O agente solucionador de problemas Graham Alsop detestava as quartas quartas-feiras de cada mês. Também detestava que lhe chamassem solucionador de problemas. Algumas das queixas que tinha de ouvir eram tão enfadonhamente insignificantes, tão desesperadoramente insolúveis que muitas vezes pensava que a vila tinha a inteligência coletiva de um balde de isco.

Não precisava de recuar mais de um mês para encontrar um bom exemplo daquilo que tinha de aturar. Um senhor de idade avançada aproximara-se dele e despejara um saco cheio de excrementos de cão em cima da sua secretária. Poias de cão. O homem disse que estava farto de as encontrar junto das suas galardoadas rosas Lady Penzance. Alegava que a sua vizinha permitia que o seu dachshund coxo defecasse nas suas rosas para se vingar do facto de ele ter ganhado o concurso da vila. Exigia que Alsop levasse os excrementos para o «laboratório» para determinar o ADN do autor. Ficou espantado ao descobrir que não existia nenhum «laboratório», nem tão-pouco uma base de dados canina que pudesse comparar duas poias de cão. Era uma questão do foro cívico, e o agente aconselhou-o a procurar um advogado. E, por favor, que levasse consigo o seu saco de merda. É claro que, se a questão se agravasse para um infame homicídio de dejetos de cão, o agente solucionador de problemas Alsop teria contas a prestar, mas há riscos que vale a pena correr.

Não obstante, foi um dia calmo. A biblioteca abria às 9 horas, e, até à chegada do primeiro grupo de leitura, cerca de uma hora depois, Alsop e os funcionários da biblioteca costumavam ter o espaço por sua conta. Havia tempo suficiente para um chá e torradas antes da chegada dos maluquinhos.

Naquela manhã, ele até tinha um plano. Tencionava ler o jornal e depois seguir para a charcutaria para comprar um pedaço de queijo Alston. Uma das bibliotecárias ia ensiná-lo a fazer um soufflé. Alsop acreditava que preparar um soufflé de queijo para a sua pobre mulher seria a forma perfeita de a amolecer antes de lhe falar da proposta que recebera para fazer uma viagem de golfe a Portugal.

Era um bom plano.

O problema dos planos é que podem transformar-se num saco de merda em menos de nada.

 

De início, ele pensou que a rapariga estava a arrastar-se para casa após uma noite de borga que acabara numa cama que não a dela. Trazia um gorro de lã, uma camisola lisa de mangas compridas e leggings pretas. Vinha a coxear, avançando de forma irregular e titubeante. Os seus ténis baratos arrastavam-se pela alcatifa.

Parou a meio da biblioteca e olhou em volta. Não parecia ter um livro específico em mente. Os seus olhos passaram pela secção de livros infantis, depois pela de história local e, por fim, pela secção de autobiografias. Provavelmente, um estratagema para poder usar a casa de banho. Passar água pelo corpo, talvez cheirar uma linha de coca e depois apanhar um táxi para Carlisle. Alston não tinha população estudantil residente, mas mesmo assim havia festas ocasionais.

Porém… Alsop fizera a sua carreira quase toda como polícia de giro no centro de Carlisle, e não tinha perdido os seus instintos.

Algo não batia certo.

A sua avaliação inicial não correspondia à verdade. A rapariga não parecia estar envergonhada; parecia assustada. O seu olhar galgava de um lado para o outro, em busca de alguma coisa. Depois, semicerrou os olhos através do pó que pairava languidamente no ar, sem nunca os incidir numa única coisa mais de um segundo. Mas não eram os livros — cuidadosamente arrumados, com as lombadas para fora e dispostos por ordem alfabética — que mereciam a sua atenção. Não… O seu olhar percorria os funcionários da biblioteca, descartando-os sucessivamente assim que se fixava neles.

Quando ela o viu, Alsop percebeu que a sua manhã já não seria dedicada a aprender a fazer o soufflé perfeito. Era por ele que ela estava ali. Coxeou até à sua secretária, a cara num esgar de esforço. Parou à frente dele, o braço esquerdo sobre o peito magro e a mão pousada no ombro direito. A cabeça pendia para o lado. Seria uma imagem amorosa se não fosse tão inquietante.

— É a polícia? — perguntou, num tom neutro.

— Toda, toda, não — respondeu ele.

Ela não sorriu ao ouvir o gracejo. Não reagiu minimamente. Alsop observou-a, à procura de um sinal, de um prenúncio do que aí vinha. Porque ele não tinha ilusões: alguma coisa estava prestes a acontecer.

A rapariga estava exausta. Uns olhos castanhos cansados assentavam sobre as órbitas pisadas e encolhidas. Os fiapos de cabelos que espreitavam por baixo do gorro estavam emaranhados, baços e sem vida. Emolduravam um rosto severo. Tinha umas maçãs do rosto pálidas e pronunciadas, e a sujidade da sua pele estava serpenteada pelo rasto de lágrimas. Uma viscosidade branca formara-se à volta de uma boca pontilhada por manchas. E ela era magra. Mas não magra como uma modelo. Esquelética. Subnutrida.

Alsop passou para a frente da secretária, puxou uma cadeira e instou-a a sentar-se. A rapariga aterrou na cadeira com gratidão. Ele voltou para a sua cadeira, uniu os dedos das mãos e pousou sobre eles o queixo.

— Diga-me, então: em que posso ajudá-la, minha querida? — Ele era um polícia da velha guarda, e não estava habituado aos formalismos neutros que sabia que devia empregar.

Ela não respondeu. Limitou-se a fitá-lo com o seu olhar perdido. Era como se ele não estivesse ali.

Mas não havia pressa. Ele estava habituado a lidar com o público e sabia que as pessoas tinham o seu próprio tempo para começar a falar.

— Fazemos assim, que tal começarmos por uma fácil? Comece por dizer-me o seu nome. — Ela pestanejou e pareceu despertar do transe em que estava mergulhada, mas aparentemente o conceito de nome era-lhe totalmente desconhecido. — Sabe o que é um nome? Todos temos um, certo?

Ela não sorriu.

Mas disse-lhe como se chamava.

E Alsop percebeu que estava em apuros.

Ele e todos.