Dez minutos depois, Poe estava na estrada. A chuva parara, mas as nuvens pareciam estar ainda mais baixas. Ele conduziu o seu pequeno carro alugado — aquele que Wardle desconhecia — até ao primeiro marco do correio que sabia não estar a ser vigiado pelas câmaras de videovigilância, e ali despachou o envelope com o seu BlackBerry. Mais valia começar já a deixar o rasto falso. Em seguida, inverteu a marcha e dirigiu-se para Herdwick Croft. No entanto, não tencionava voltar para casa. Precisava de um sítio onde pudesse estabelecer a sua base local, e conhecia alguém que lhe devia um favor…
Flynn aguardou na berma da estrada. Queria ficar descansada quanto ao isolamento do sítio onde ele ia ficar. Também precisava de saber como chegar até lá rapidamente, caso fosse necessário. Tinha consigo o telemóvel descartável, mas deixara o telemóvel de trabalho com Bradshaw. Parecia que estavam num filme de Jason Bourne. Até seria divertido, se a situação não fosse tão grave.
Poe passou por ela e encaminhou-a pelo caminho lamacento até à quinta. Estacionou e saiu. Flynn fez o mesmo.
Da última vez que ali estivera, havia quatro carros naquele pátio. Agora, havia apenas dois: o Mercedes de Thomas Hume e um Ford Focus vermelho.
Poe bateu à porta, com Flynn a seu lado.
Victoria Hume veio abrir. Parecia estar a fazer limpezas. Tinha o cabelo apanhado, as mangas arregaçadas e luvas de borracha amarelas calçadas.
— Washington — disse ela. — Veio buscar o Edgar?
Flynn virou-se para Poe com as sobrancelhas arqueadas.
— Washington?
Ele encolheu os ombros e corou ligeiramente. Flynn não sabia que ele descobrira a origem do seu nome. Tanto quanto ela sabia, ele ainda odiava aquele nome.
Victoria olhou com nervosismo para Flynn. Poe percebeu porquê: ele fora enganado pelo pai dela, e ali estava ele com uma mulher de fato que tinha todo o ar de ser advogada.
— Preciso da sua ajuda — disse-lhe.
Feitas as apresentações, Poe explicou que precisava de um sítio para ficar que ninguém conhecesse. Ela não estaria a fazer nada de ilegal e podia pedir-lhe que se fosse embora quando quisesse.
Ela disse-lhes para entrarem e encaminhou-os para a cozinha. Era uma divisão ampla aquecida por um fogão a lenha. Uma mesa em madeira de carvalho do tamanho de um portão de garagem dominava o espaço. Ela já tinha uma chaleira ao lume e tratou de servir três chávenas.
Victoria fez meia dúzia de perguntas pertinentes. Eles responderam a algumas, mas a outras não puderam dar resposta. Poe concluiu dizendo que não devia sentir-se obrigada a ajudar se isso a deixasse desconfortável.
— Tendo em conta as circunstâncias, é o mínimo que posso fazer — disse ela.
Mais uma vez, Flynn lançou um olhar de perplexidade a Poe — também desconhecia o recente problema com a sua casa.
— Obrigada — disse Flynn.
— Ele pode ficar o tempo que quiser e precisar. Parece ser um tipo às direitas.
— Ah, mas isso é porque não o conhece há muito tempo.
Poe respondeu por entre dentes quando o telemóvel de Flynn deu sinal de vida. A tensão tomou conta de si, mas depressa percebeu tratar-se do telemóvel descartável, o que significava que só podia ser Bradshaw.
Flynn ouviu o que ela tinha a dizer e não demorou muito até que o seu sobrolho franzisse.
— É a Tilly — disse, baixando ligeiramente o telemóvel. — Diz que te enviou o relatório que pediste por e-mail.
— Mas qual relatório? — perguntou Poe. Não se lembrava de ter pedido algo que ainda não tivesse recebido.
— Qual relatório, Tilly? — perguntou Flynn, por sua vez. Voltou a olhar para Poe. — Um relatório sobre trufas?
Claro. A forma como Keaton encontrara o local onde apanhava trufas despertara a sua atenção, até isso ter ficado em segundo plano quando surgiram coisas mais importantes.
— Diz-lhe que leio quando tiver tempo.
Flynn repetiu a sua resposta e lançou-lhe um olhar que denotava impaciência.
— Sim, Tilly — suspirou —, já podes desligar.
Quando Flynn se foi embora, Victoria insistiu em levar Poe até ao seu quarto, que ficava num anexo antigo. Era espartano, mas confortável. Uma cama de casal, uma mesinha de cabeceira e um roupeiro. Estava colado à casa principal, mas só era acessível através de uma entrada autónoma. Provavelmente construído para albergar os trabalhadores da quinta, imaginou Poe. Era um quarto para dormir e pouco mais.
— Vou buscar o Edgar.
Quando ela regressou com o spaniel frenético, entregou-lhe também um papel.
— A senha do wi-fi — explicou, tocando na parede adjacente. — Creio que o sinal é suficientemente forte para chegar aqui.
Poe agradeceu-lhe.
Abriu o tablet que Bradshaw lhe emprestara. Já estava configurado para que ele pudesse utilizá-lo, e ele inseriu a senha do wi-fi. O sinal era forte e o e-mail de Bradshaw descarregou em menos de nada.
Mas Poe tinha um problema.
Era inspetor há tempo suficiente para saber que as incursões no terreno rapidamente se transformavam em turnos de 72 horas longe de casa. Apesar de o ritmo na SCAS ser mais calmo, ele nunca perdeu o hábito de ter uma mala com bens essenciais sempre pronta. Assim que chegara a Cúmbria, preparara uma mala e guardara-a na bagageira do carro alugado. O problema é que arrumara a mala em piloto automático: garrafas de água, alimentos não perecíveis, mudas de roupa, lanterna e pilhas, luvas forenses; artigos que podiam ser necessários em longos períodos passados em locais de crime. Os mesmos artigos que arrumava há anos.
Mas não guardara os óculos. Não precisava deles há tempo suficiente para esse gesto ser natural. Levou a mão ao bolso do casaco, mas sabia que não estariam ali. Lembrou-se de os ver em cima da mesa quando saíra da sala verde em Shap Wells.
Raios.
O texto era demasiado pequeno para o conseguir ler e, quando tentou aumentar a letra com os dedos em pinça como Bradshaw fazia, não aconteceu nada. Frustrado, atirou com o tablet para cima da cama.
Um som abafado proveniente do outro lado da parede recordou-o que não era a única pessoa na casa. Se conseguisse que Victoria imprimisse o e-mail de Bradshaw, tinha a certeza de que conseguiria ler qualquer coisa numa folha A4.
Mas, primeiro, um duche.
Victoria sorriu quando ele bateu à porta e entrou na cozinha. Deixara as limpezas e andava de volta dos tachos.
— Ia agora ver se queria almoçar comigo, Washington. Tenho o guisado de ontem no forno.
Poe estava prestes a dizer que tomara o pequeno-almoço há pouco tempo, mas o estômago falou mais alto do que o cérebro. Há muito tempo que não comia um belo guisado.
— Com todo o gosto, Victoria. Obrigado.
Então, sentou-se à mesa e ela serviu-lhe uma porção generosa. Inclinou-se para a frente e inalou aquele aroma inebriante. Dos deuses. Levou uma colher cheia de borrego untuoso, morcela e batata à boca. Fechou os olhos e suspirou. Estava delicioso — incomparavelmente melhor do que qualquer coisa que tivesse comido no Bullace & Sloe. Em menos de nada, Poe devorou a tigela, que Victoria voltou a encher.
Depois de repetir pela terceira vez, Poe deu-se por satisfeito. Victoria passou-lhe uma chávena de chá e serviu-se de outra. Beberam num silêncio sociável. Por fim, Poe disse:
— O seu pai tinha impressora, Victoria? Tenho um documento no meu tablet que preciso de ler.
— Não. Ele só tinha wi-fi para tratar da gestão da quinta.
Raios.
Ela reparou na sua desilusão.
— Mas vou a Kendal mais tarde. Posso pedir para imprimirem lá.
Poe abanou a cabeça e agradeceu-lhe. Era um relatório sobre trufas, não seria nada de relevante.
O silêncio voltou a instalar-se. Pouco depois, Poe disse:
— Sabe muito sobre mim, ou pelo menos sobre os meus problemas de alojamento, mas eu não sei quase nada sobre si.
— Não há muito para contar.
Poe recostou-se na cadeira confortável enquanto Victoria lhe falava da sua infância na quinta e sobre a desilusão que Thomas sentira quando nem ela nem as irmãs tinham mostrado vontade de perpetuar a tradição agrícola da família. Fora a última a sair de casa, mas fora também a que se deslocara para mais longe: Chudleigh, em Devon, onde dava aulas.
— Adoro aquilo, mas agora que voltei não sei se me apetece partir de novo. A agricultura não me interessava na altura, mas agora estou mais velha. Talvez me veja a fazer isto, a perpetuar o legado do meu pai.
Poe compreendia perfeitamente: Cúmbria entranhava-se numa pessoa como mais nenhum condado. Sobretudo quando já se passara a flor da idade e as prioridades eram outras.
— Mas… adiante — atalhou ela. — Que documento é esse que quer imprimir?
Poe falou-lhe do relatório e da questão dos óculos.
— Vou trazer-lhe um par logo à tarde. Mas o meu pai tinha um computador. Se me enviar o documento por e-mail, pode lê-lo no ecrã, que é maior.
Poe hesitou. Duvidava que houvesse algo de confidencial num relatório sobre fungos subterrâneos, mas não podia enviar documentos encriptados para redes inseguras. Bradshaw já lhe explicara porquê. Aparentemente, tinha algo que ver com cavalos de Troia. Já desligara muito antes de ela terminar a explicação, por isso nunca veio a saber porque é que uma manobra militar da mitologia grega o impedia de encaminhar um e-mail, mas partiu do princípio de que ela sabia do que estava a falar.
— Infelizmente, não posso. — Logo a seguir teve uma ideia que o deixou mais animado. — Mas posso deixá-la lê-lo.