Capítulo 54

Poe, temos um problema…

Ouvia aquela frase tantas vezes que mais valia usá-la como toque do telemóvel. Da última vez, fora Van Zyl a dizer-lhe que seria interrogado; antes disso, fora Gamble a dizer-lhe que Elizabeth Keaton regressara do mundo dos mortos.

Desta vez, era ainda pior.

O pedido de audiência privada tinha sido aprovado e Keaton fora libertado sob fiança. O Ministério Público já insinuara que não apresentaria quaisquer provas no seu julgamento.

E essa não foi a pior coisa que Flynn lhe dissera.

Estava confirmado que o sangue encontrado no reboque de Poe pertencia a Elizabeth Keaton. Poe passara a ser oficialmente um suspeito num inquérito de homicídio. Van Zyl instruíra Flynn para que o detivesse pessoalmente, sendo que já lhe arranjara um advogado.

Poe disse que não iria a lado nenhum.

Flynn perguntou onde estava.

Poe desligou. Lembrou-se do aviso de Bradshaw sobre os telemóveis descartáveis poderem ficar expostos e apressou-se a retirar a bateria do seu.

Para todos os efeitos, não fazia diferença. O corpo policial de Cúmbria andava à sua procura. O mandado de detenção sem possibilidade de fiança de Wardle era garantia disso mesmo.

Nada mudara.

Eles tinham de encontrar Chloe Bloxwich ou conseguir explicar o sangue.

 

Les Morris vivia em Armathwaite, uma povoação muito semelhante a Cotehill, a aldeia onde ficava o Bullace & Sloe. Pequena, bonita e inserida num cenário deslumbrante composto por prados e terrenos de pasto. Nas entradas das casas encontravam-se estacionados reboques para cavalos e veículos todo-o-terreno. A aldeia tinha inclusivamente uma cabina telefónica vermelha.

Era idílica, saída de um poema de Rupert Brooke.

Cricket no parque da aldeia e mel com o chá…

Morris morava num bungalow com janelas de ambos os lados da porta. O relvado estava perfeitamente aparado e o jardim era delimitado por canteiros de flores perenes de cores vivas. Havia um comedouro para pássaros empoleirado numa macieira.

Uma mulher abriu-lhe a porta. Poe mostrou a sua identificação.

— Posso falar com o Sr. Morris, por favor?

— Eu sou a Sra. Morris — respondeu ela.

Não lhe disse o primeiro nome. Parecia estar zangada, e ele ainda nem lhe dissera o que fazia ali. Era alta e irritante, de 40 e muitos ou 50 e poucos anos, e parecia ser o tipo de mulher que sorria quando matava um animal na estrada. O coque grisalho que lhe encimava a cabeça estava tão apertado que lhe esticava a cara.

Apesar do dilúvio que teimava em não dar tréguas, só depois de examinar ao pormenor a sua identificação é que ela o convidou a entrar. Foi a resmungar até à cozinha, fazendo-lhe saber, sem margem para dúvidas, que lhe estava a sujar a casa toda. A bem da verdade, estava mesmo.

Ela sentou-se na única cadeira disponível, e não lhe perguntou se aceitava uma bebida quente.

— Contava falar com o Sr. Morris. Ele está a trabalhar?

Ela soltou um riso escarninho.

— Como quer que saiba? Não vejo esse mandrião vai para oito anos.

Poe pestanejou para tentar afastar a água da chuva dos olhos. Acabou por desistir e pedir para usar uma toalha. Foi como se tivesse pedido para urinar na chaleira. Ela resmungou por entre dentes e atirou-lhe um pano de cozinha húmido. Poe não deixou de agradecer. Afadigou-se a tentar tirar a maior parte da água do cabelo.

— O que quer com esse imprestável? — perguntou, enquanto ele se secava.

— O nome dele surgiu num inquérito.

Ela ficou ligeiramente mais animada.

— Quer dizer que ele está em apuros?

Poe estava prestes a responder que não, mas percebeu que não era isso que a Sra. Morris queria ouvir. Lembrou-se de repente da palavra alemã Schadenfreude: rejubilar com o infortúnio alheio.

— É muito provável — respondeu, com cautela.

Foi a decisão certa. Um sorriso retorcido começou a formar-se nos cantos da boca da mulher.

— Vou pôr a chaleira ao lume — anunciou.

— Diz que não vê o Sr. Morris há oito anos — sondou Poe, enquanto ela preparava o chá.

— Exatamente. Saiu uma tarde e nunca mais voltou. A polícia não demonstrou grande interesse. Pensaram que ele estaria metido com uma galdéria qualquer. Uma daquelas de nariz empinado do clube dele.

Poe acrescentou «clube» à sua lista de perguntas.

— E acha que ele fugiu?

Ela virou-se e levou as mãos às ancas escanzeladas.

— Ele há de voltar um dia quando ela se fartar dele. Com o rabinho entre as pernas, vai ver.

Poe tinha as suas dúvidas. Se Morris tinha de facto fugido, Poe duvidava que voltasse. A Sra. Morris era o tipo de mulher que, se estivéssemos acorrentados a ela, roeríamos o próprio braço só para conseguir escapar.

Ele mudou de assunto.

— O Sr. Morris costumava apanhar trufas?

— O que é isso? — indagou ela, respondendo assim à sua pergunta. Poe explicou-lhe o que eram trufas e onde se apanhavam. — E só se encontram nos bosques? — perguntou, trocista. — O meu Les é mais aquele género de homem que gosta de ficar sentado no clube a beber cerveja artesanal, inspetor Poe. Muito me espantaria se ele soubesse o que isso é.

Pelo menos, batia certo com o que lhe tinham dito. Nem a chef nem o carteiro achavam que ele fizesse da apanha das trufas profissão.

A Sra. Morris voltou a sentar-se e serviu duas chávenas de um chá muito ralo, acrescentando leite para o chá ganhar a mesma tonalidade branca. Até Bradshaw sabia fazer um chá melhor do que aquele. Poe agradeceu mesmo assim e bebeu um gole daquela mistela insípida e tépida. Tentou não fazer um esgar.

— Ele tinha um cão?

A Sra. Morris sorriu.

— O meu Les? Com um cão? Não me parece. O pelo fazia-lhe mal por causa da asma.

— Era amigo de alguém que tivesse cães?

Ela encolheu os ombros.

— Toda a gente tem cães.

Estava bem visto. De repente, surgiu-lhe uma ideia. A Sra. Morris dissera que era possível que o marido tivesse um caso com uma «galdéria». Talvez a tal galdéria tivesse um cão. Os homens eram capazes de aguentar quase tudo quando se deixavam guiar pelas partes baixas. Sem dúvida que isso incluía peitos fartos. Um caso com uma mulher casada também explicaria a sua hesitação em dizer a Wratten como encontrara as trufas.

Mas Poe não podia perguntar isso à Sra. Morris. Se o fizesse, não lhe arrancaria mais nada.

— Ele tinha um percurso preferido para caminhar? Talvez um que passasse por um bosque?

A Sra. Morris repetiu o sorriso escarninho.

— O meu Les não se interessava por bosques e muito menos por caminhadas, inspetor Poe. — Aquilo estava rapidamente a tornar-se um beco sem saída. — No entanto, se fosse um campo…

Ela deixou a frase em suspenso. Poe mordeu o isco.

— Um campo?

— Por causa do tal clube de que lhe falei.

Falara num clube, mas não especificara de que tipo era. Ele sabia disso e ela sabia disso. Basicamente, ela estava armada em parva. Mas ele era um polícia e os polícias lidam constantemente com gente idiota.

— Recorde-me.

Ela sorriu, feliz da vida com a sua pequena vitória.

— Ele pertencia à delegação de Cúmbria da ROCA.

— Rock?

— Não é rock como em punk rock. É ROCA, Royal Observer Corps Association. ROCA.

Poe estava perdido. Não fazia ideia do que era a Royal Observer Corps Association. Teria perguntado à Sra. Morris, mas, como esta já percebera que o marido não estava em apuros, o seu humor voltara a azedar.

— Não quero falar desse maldito clube. Já era suficientemente mau que ele passasse os dias lá enfiado; não preciso agora que um polícia abelhudo me venha lembrar essas tristezas.

Poe levantou-se. Estava prestes a despedir-se quando viu um barracão no quintal. O quintal estava bem cuidado, mas ele duvidava que fosse a Sra. Morris a responsável pela manutenção. Era demasiado… afetada. Demasiado implicante. O mais certo era ter um jardineiro.

E os jardineiros têm o seu próprio equipamento.

Já os barracões britânicos são o paraíso dos homens de meia-idade. As mulheres afetadas nunca entravam em barracões. Tinham demasiada sujidade. Demasiadas aranhas.

— Aquele era o barracão dele?

— O que tem?

— Acha que ele guardava ali material da Royal Observer Corps Association?

Ela soltou um suspiro exasperado.

— Nem consigo entrar ali, de tanta tralha que está lá dentro.

— Importa-se que vá lá dar uma vista de olhos?

— O que ganho eu com isso? — sondou ela, com um sorriso matreiro.

Ganha a sua liberdade, foi o que Poe quase deixou escapar. Em vez disso, levou a mão à carteira e deu-lhe três notas de 20 libras. Ela guardou-as no bolso do casaco de malha e entregou-lhe a chave do barracão.

— Mas olhe que não pode tirar nada — gritou-lhe quando ele já ia a sair. — O meu Les há de voltar um dia e não vai gostar de saber que andaram a mexer nas coisas dele.

Poe saiu para o quintal pela porta da cozinha. Abriu o cadeado do barracão e entrou.

Ficou estarrecido. O barracão mais parecia um museu. Havia centenas de mapas, documentos e fotografias afixados às paredes, alguns deles amarelecidos com o passar dos anos, outros muito mais recentes. Havia prateleiras abauladas com o peso de instrumentos estranhos, fardas antigas e objetos de coleção da ROCA. Um antigo medidor Geiger e uma sirene manual assumiam o lugar de destaque num expositor de pinho. Era uma verdadeira arca do tesouro.

Com que então é isto que significa ter uma obsessão, pensou Poe.