Flynn assumiu o comando.
— Tilly, ficas ao computador.
— Duh, havia de ser o Poe a fazer isso? — Ambos olharam espantados para ela. — Desculpem.
— Não te preocupes, estamos todos exaustos — disse Flynn. Virou-se para Poe. — Dizes que todos os abrigos de Cúmbria foram contabilizados?
Ele assentiu e verificou os seus apontamentos.
— Segundo o Harold, os abrigos locais estavam aglomerados em polos estratégicos. Os observadores locais prestavam contas ao Carlisle Control Group, que transmitia as informações para a sede do setor ocidental, em Preston. Por sua vez, Preston prestava contas a uma organização chamada «NATO Strike Command Operations Centre», que ficava algures a sul.
— E, na tua opinião, o Morris terá encontrado as trufas perto do Bullace & Sloe?
— Desconfio de que tenha sido mais perto do Gamekeeper’s Kitchen. Foi lá que ele as tentou vender primeiro.
— Será que ia de carro a caminho de casa? Pode tê-las encontrado a quilómetros de distância, no meio do nada.
— Não me parece. A chef do Gamekeeper’s Kitchen disse que o Morris tinha um aspeto «encardido» e que as trufas pareciam frescas e acabadas de apanhar. E o abrigo ficaria próximo de um já existente. Só foi substituído porque o sítio específico onde foi construído não era apropriado, mas a localização era boa. Se tivesse ficado operacional, teria integrado o polo original.
Bradshaw exibiu um mapa da zona.
— O abrigo mais próximo do Gamekeeper’s Kitchen é este — disse Poe, apontando para o ecrã. — No registo, é-nos dito que fica situado em Armathwaite, que é onde o Morris morava, mas o Harold disse-me que fica mais próximo da aldeia de Aiketgate.
— Presumo que esse não seja o abrigo que procuramos — sugeriu Flynn.
Poe abanou a cabeça. Era uma pergunta sensata, que ele próprio fizera a Harold.
— Não. Este abrigo está intacto e é conhecido. E fica num campo de cultivo, não num bosque.
— Mas, tendo em conta que o Morris visitou restaurantes nas redondezas, é provável que tenha sido o abrigo de Aiketgate a substituir o desaparecido — argumentou Bradshaw. — Nesse caso, o abrigo perdido não pode ficar longe.
— Concordo — disse Poe. — Estará certamente num bosque nos arredores da aldeia de Aiketgate.
— Muito bem — rematou Flynn. — Precisamos de um diagrama de Venn com as necessidades das trufas negras de verão de um lado e com os requisitos dos postos de observação nuclear do ROC do outro. Assim, podemos ver o que têm em comum.
Uma hora depois, já tinham uma lista.
Flynn fez-lhes um resumo.
— O posto do ROC tinha de ficar situado numa posição que tivesse um campo de visão de 360 graus.
— Sim. Ao contrário dos postos de observação de aeronaves originais que necessitavam apenas de uma vista desimpedida para o céu, os abrigos nucleares também precisavam de vistas desobstruídas ao nível do solo, de modo a permitirem a medição de ondas de choque e calor. Quase todos ficavam situados em campos de cultivo. E, como os terrenos desta região não são planos, significava que tinham de ficar situados em posições elevadas — explicou Poe.
— Portanto, foi construído num campo. Mas esse campo é agora um bosque?
— Parece que sim. Um bosque recente.
— Mas não tão recente que as árvores não tenham maturidade suficiente para ter trufas — disse Bradshaw.
— Não compreendo porque haveria um agricultor de plantar árvores — comentou Flynn. — Um campo de cultivo não seria mais útil?
Poe sabia a resposta a essa pergunta. Tinha-lhe sido dada por Thomas Hume.
— O solo arável exposto em posições elevadas começa a sofrer erosão. Os agricultores plantam árvores para impedir que o solo se torne árido e rochoso. Os bosques também protegem os terrenos em declive absorvendo parte da água durante a época das chuvas. E, além de fornecerem abrigo para os animais e as colheitas ao constituírem uma barreira natural contra o vento, muitas das quintas em Cúmbria dedicam-se agora à prática da caça, e os bosques e arvoredos são o habitat ideal para faisões e outras aves de caça.
— Muito bem. Portanto, precisamos de árvores de rápido crescimento que sustentem trufas.
— Carvalhos, não — esclareceu Bradshaw. — São árvores de crescimento lento. Restam as faias e as bétulas. São as únicas que crescem com a rapidez desejada e que têm as raízes que as trufas preferem.
— Acho que podemos eliminar as faias — disse Poe. — Muitos dos habitantes locais não aceitam as faias como árvores nativas desta zona. Mais a sul, sim, mas a norte não são consideradas nativas. Os agricultores desta zona são tradicionais, sobretudo quando isso não lhes sai do bolso.
— Como é que sabes? — Bradshaw parecia divertida com o facto de ele saber factos de cultura geral que ela não sabia.
Poe encolheu os ombros.
— O deputado eleito por Kendal fez parte de um grupo que visava alterar a sua classificação. Saiu nos jornais há uns anos. — O quarto ficou em silêncio. — Acho que temos de nos preocupar com alguma coisa — concluiu ele.
— A bétula é uma boa escolha — sugeriu Bradshaw. — Tem um crescimento rápido e é barata. A subespécie mais provável é a bétula-branca. Necessitam de solos com boa drenagem, o que encaixa na posição elevada que procuramos.
— Então, procuramos um bosque de bétulas recente numa posição elevada perto do abrigo da aldeia de Aiketgate?
Poe anuiu.
Bradshaw também.
— Pois bem — disse Flynn. — Vamos encontrá-lo. — Poe encarou-a com o olhar vazio. — E quando digo «vamos», é claro que me refiro à Tilly…
Com todos os instrumentos aéreos e de satélite que Bradshaw tinha à disposição, encontrar um bosque de bétula-branca numa área circunscrita não devia ser muito difícil. E, se estivessem em Manchester, Sheffield ou Birmingham, não seria.
Mas ela estava a procurar em Cúmbria.
Encontrar bosques de bétulas não era difícil; a sua casca prateada e friável era distinta. Já encontrar o bosque de bétulas certo era muito mais difícil.
Por fim, conseguiu reduzir os candidatos a nove.
Três deles pareciam mais antigos e não continham apenas bétulas. Poe descartou-os, uma vez que, se um agricultor estava a plantar um bosque do nada, o mais certo era comprar árvores por atacado. Não havia razões para misturar as espécies. Dois bosques ficavam próximos do rio Eden, o que indiciava que eram dados a inundações.
Restavam quatro.
Bradshaw apresentou as melhores imagens de satélite numa grelha no seu portátil. Os três debruçaram-se sobre o ecrã. Durante alguns instantes, ninguém abriu a boca.
Poe verificou a sua localização no mapa. Decidiu que um deles sobressaía como o favorito. Ficava perto da aldeia, tinha bons acessos por estrada e ficava próximo do abrigo existente. Os bosques números dois e três também eram uma possibilidade. Não tinham a facilidade de acesso por estrada como o primeiro, mas cumpriam todos os outros critérios. Poe pensou em descartar o quarto. Implicava uma caminhada através de três campos e mais dois bosques. Não ficava nos arredores de Aiketgate nem perto da casa de Les Morris. Estava também coberto por vegetação rasteira. Mas acabou por deixá-lo ficar. Realisticamente, podia ser qualquer um deles ou nenhum.
— Achas que a Chloe Bloxwich está ali escondida? — perguntou Flynn em surdina, com os olhos ainda cravados no ecrã.
Ele não pensara nisso. Era um sítio tão bom como outro qualquer. Um sítio seguro onde ela se pudesse esconder durante uns tempos, à espera da recompensa, fosse ela qual fosse, que Keaton lhe tivesse prometido.
Um trovão lembrou-o de algo que Harold lhe dissera. Espreitou por cima do ombro de Flynn para a janela desfocada pela chuva. O céu negro como carvão disparava chuva como balas. Os trovões ribombavam, dando provas do seu poder indómito. A tempestade Wendy estava a cumprir todas as expetativas.
— Se estiver, espero que tenha um bom par de galochas — disse Poe. — Aqueles abrigos não tinham drenagem, apenas fossas. É por isso que a maioria dos que foram abandonados sofreram inundações.
Foi então que Bradshaw gritou do nada:
— DRENAGEM! — Sem dar explicações, fechou as imagens dos bosques e começou a escrever furiosamente. Os seus óculos refletiam páginas e mais páginas de uma busca desenfreada. — Oh, meu Deus, oh, meu Deus, oh, meu Deus… — repetia ela, sem cessar.
Vinte segundos depois, parou de escrever e leu o que estava no ecrã. Saltou da cadeira e correu para a impressora. Saltitava alternando os pés enquanto aguardava que o documento surgisse em formato de papel.
Poe e Flynn trocaram olhares.
— Estamos a gostar muito deste silêncio constrangedor, Tilly — disse Flynn.
A impressora terminou o seu trabalho e Bradshaw entregou a cada um deles um documento de duas páginas. Também entregou a Poe os óculos que ele deixara em Shap Wells.
— Aqui está. Foi assim que a Chloe Bloxwich manipulou a análise ao sangue.
Poe olhou para o papel. Era uma entrada da Wikipédia sobre um cidadão canadiano criado na Rodésia chamado John Schneeberger. Poe franziu a testa para Bradshaw, confuso. Com um aceno, ela indicou-lhe que lesse.
E foi o que ele fez.
Antes de Poe chegar ao fim da primeira página, a sua respiração ficou em suspenso.
Porque John Schneeberger tinha sido o homem que tornara possível o impossível — descobrira uma forma de ter o sangue de outra pessoa no seu corpo. Em 1992, depois de ser acusado de violação, conseguira manipular duas vezes o teste de ADN que fora ordenado pelo tribunal, e a queixa fora retirada. Só quando a sua mulher o denunciara à polícia por violar a filha do seu primeiro casamento é que foram recolhidas múltiplas amostras, incluindo esfregaços de saliva e folículos capilares. Dessa vez, o seu ADN correspondera ao ADN encontrado na primeira vítima de violação. Poe retomou a leitura e ficou a saber como o homem o conseguira fazer. Tinha razão — tratava-se de uma solução de tecnologia muito simples. Brilhante, na sua simplicidade.
Poe comparou o método de Schneeberger com o seu próprio caso, passo a passo, para garantir que se enquadrava nos factos.
E enquadrava mesmo.
Tudo batia certo.
Tudo estava explicado.
Foi quando se fez luz. Olhou fixamente para Bradshaw.
— Mas isto significa…
— Sim, Poe — disse Bradshaw, compungida. — Sinto muito.