Poe, Flynn e Bradshaw assistiram a uma transmissão em direto do interrogatório a Jared Keaton. Era um caso da polícia de Cúmbria, por isso fazia todo o sentido que fossem eles a encabeçá-lo. Estavam em Durranhill, o centro de comando da área norte de Carlisle e a maior esquadra policial de Cúmbria. A sala de interrogatório era moderna e espaçosa.
A porta abriu-se e o superintendente Gamble entrou na sala. Acenou a Poe.
— O que se passa?
— O agente Rigg está a fazer o trabalho de sapa.
— O Keaton continua sem falar?
Poe assentiu.
— Não parece muito preocupado.
Poe não comentou. Era verdade. Keaton não transparecia qualquer sinal de preocupação.
— Como é que o Wardle viu o seu regresso?
Gamble sorriu.
— Já alguma vez viu um reitor no momento em que descobre que um dos seus professores é um pedófilo?
— Já.
— Foi assim.
— Como está a Chloe Bloxwich?
A cara de Gamble fechou-se.
— Continua nos cuidados intensivos. Acreditam que, se tivessem demorado mais três horas, ela teria morrido. Os médicos dir-nos-ão quando ela estiver a salvo. Vamos pedir ao Ministério Público que considere acusar o Keaton de tentativa de homicídio, além de tudo o resto.
Quando a escotilha fora aberta e Flick Jakeman fora detida, Poe descera para dar uma vista de olhos ao interior do abrigo. Queria confirmar as suas suspeitas. Os restos mortais desmembrados de Elizabeth e o cadáver ressequido de Les Morris estavam lá em baixo. Também encontrara Chloe Bloxwich. Moribunda e a alternar entre a consciência e a inconsciência.
Poe certificara-se de que Flick Jakeman era obrigada a esperar enquanto os bombeiros e a equipa de salvamento retiravam Chloe do abrigo e os paramédicos prestavam os primeiros socorros de emergência. Ele precisava que ela visse aquilo que ajudara a fazer.
Assim que vira Chloe, ela colapsara aos gritos.
— A Chloe já disse alguma coisa? — perguntou Poe a Gamble.
— Muito pouco — respondeu ele. — Mas a miúda está toda queimada. Começou a descarrilar quando a mãe morreu de cancro há uns anos. Parece que o pai gostava muito dela, mas não era capaz de o expressar. Ele queria que ela fosse contabilista; ela quis ser rebelde e tornou-se atriz. Vivia do dinheiro que a mãe lhe dava. Quando esta morreu, a Chloe envolveu-se com um traste que a viciou em heroína. Entrou numa fase de automutilação. Não conhecia a Elizabeth ou o Keaton. Nunca conheceu nenhum dos dois. Mas teve a infelicidade de se parecer com a Elizabeth numa fotografia que o Keaton encontrou na cela do pai. Desempenhou o papel dela para a câmara da polícia e foi parar àquele abrigo ainda antes de você chegar.
Foi aprisionada naquele abrigo, emendou Poe em silêncio. A escada original do abrigo não tinha sido montada — teria sido levada pelos empreiteiros da obra ou requisitada para outro fim —, por isso Morris usara uma escada de enrolar de escalada para entrar e sair. Certamente, prendê-la-ia ao anel de ferro que estava junto à escotilha e que serviria esse propósito. Poe supunha que, depois de Morris ter mostrado o abrigo a Keaton, este teria subido cá para fora e trocado os pontos de fixação da escada do anel de ferro para a parte interior da escotilha. Em seguida, tê-la-ia fechado, trancando Morris no interior. O peso do seu corpo manteria a escotilha fechada. Como a escada estava pendurada na própria escotilha, ele nunca teria conseguido subir e empurrá-la em simultâneo.
Mesmo que o seu corpo tivesse sido descoberto, pareceria simplesmente que ele cometera um erro trágico. O médico-legista decretaria um «óbito por infortúnio» num piscar de olhos.
Chloe Bloxwich dera por si na mesma situação — enterrada num abrigo e impossibilitada de fugir ou gritar por ajuda. Após o recobro, passaria algum tempo na prisão por obstrução à justiça. Mas do que ela precisava mesmo era de um psiquiatra.
— Ela já falou com o pai? — perguntou Poe.
Gamble franziu o sobrolho.
— Sim. A prisão autorizou um telefonema. Porquê?
— Por nada — disse Poe, voltando a concentrar-se no monitor.
Rigg estava a mostrar a Keaton uma fotografia que fora tirada no interior do abrigo…
Era o local de crime mais complexo que qualquer um deles já tinha visto. Depois de Chloe Bloxwich ter sido resgatada, Flynn voltara a selar a escotilha e aguardara que Rigg contactasse todos os recursos da polícia de Cúmbria. Não tardara muito até que o bosque estivesse iluminado como Glastonbury.
O patologista forense no local era o mesmo que mudara de opinião sobre a quantidade de sangue que fora derramado na cozinha do Bullace & Sloe seis anos antes. Rigg dissera-lhe para desaparecer.
Por fim, e por especial favor a Poe, Estelle Doyle conduzira desde Newcastle para supervisionar o local do crime. Munidos de fatos de proteção, ela e a equipa demorariam dois dias a retirar o cadáver de Les Morris e os restos mortais desmembrados de Elizabeth Keaton do inferno em que se tornara o abrigo de observação nuclear do ROC.
No caso de Les Morris, o processo foi simples. Bem, tão simples como seria num abrigo subterrâneo com paredes de betão a cair, material biológico perigoso em todas as superfícies e com os elementos do CSI a terem de fotografar tudo aquilo em que tocavam ou queriam deslocar. Morris estava em avançado estado de decomposição, mas a pele mantivera a estrutura óssea intacta, pelo que pôde ser retirado todo de uma vez e sem incidentes.
O resgate dos restos mortais de Elizabeth fora mais complexo. O seu corpo estava espalhado por 43 sacos de sous-vide distintos, alguns dos quais tinham rebentado ou estavam a vazar líquidos pútridos e perigosos. Estelle Doyle recolhera cada um deles cuidadosamente. Enquanto outros elementos da sua equipa vomitavam, ela não mostrava sinais de nojo ou desagrado.
Doyle levara depois os dois corpos para Newcastle para realizar os exames post mortem.
Não demorara muito a determinar que Les Morris morrera de desidratação. Também tinha um tornozelo partido, quase de certeza por ter caído da escada durante uma tentativa vã de sair do abrigo. Os seus exames post mortem levaram seis horas.
Os de Elizabeth levaram três dias.
Estelle Doyle tivera de abrir cada um dos sacos de sous-vide — que eram, por si só, locais de crime que tinham de ser manuseados como tal — antes de determinar de que parte do corpo se tratava. Mesmo para um perito em anatomia humana, que era seguramente o caso de Doyle, teria sido um quebra-cabeças complicado de montar, mas como a carne de Elizabeth se tinha desfeito e liquefeito, e os seus ossos e cartilagens eram agora macios e esponjosos, revelara-se quase impossível. Um patologista comum não saberia por onde começar.
Ao terceiro dia, ela chamara Poe, Flynn, Rigg e o regressado superintendente Gamble à sua morgue em Newcastle. Dispusera os restos mortais de Elizabeth sobre uma marquesa de aço inoxidável.
Durante uma hora, enquanto eles estavam por trás do vidro da sala de observação, ela expusera cuidadosamente o que acontecera.
Elizabeth morrera de uma hemorragia causada por um único ferimento de perfuração no coração. Com pouco mais de sete centímetros, o ferimento não era muito profundo, e Doyle acreditava que para o efeito fora usada uma faca curta. Igual àquela que tinham encontrado no abrigo…
Depois de determinar a causa e o modo da morte, ela passara a descrever o que Keaton fizera a seguir. Começara pela cabeça de Elizabeth, que fora cortada ao meio com recurso a um serrote de talhante e depois martelada com um cutelo — outro dos utensílios de cozinha selados que tinham encontrado — até estar suficientemente achatada para ser embrulhada a vácuo.
O resto do corpo tinha sido desmanchado — não havia outra forma de o descrever — como se de um porco se tratasse. Os joelhos, ombros, cotovelos, ancas e tornozelos tinham sido desarticulados. Os ossos maiores e mais volumosos, como o fémur e a tíbia, tinham depois sido serrados em partes mais pequenas, de modo que Keaton pudesse enfiá-los na máquina a vácuo. Os ossos mais longos e finos, como o perónio e o úmero, tinham sido partidos ao meio.
Poe assistira à explicação de Estelle Doyle sem demonstrar qualquer tipo de emoção. Só quando Doyle apontou para uma zona de carne pútrida no exterior da pélvis desfeita de Elizabeth é que ele se permitiu dar ao luxo de derramar uma lágrima solitária.
Com uma análise mais atenta e aproximada, era possível discernir os contornos da tatuagem — a peça do puzzle que Jefferson Black descrevera e que encaixava na sua própria tatuagem. Supostamente, Keaton não a vira enquanto desmembrava a filha. Era difícil ver uma tatuagem vermelha no meio de tanto sangue.
Poe sorriu para Keaton quando este se sentou na sala de interrogatório. Keaton encarou-o de rosto vazio. Rigg estava sentado ao lado de Poe. O agente aceitara não falar durante esta fase.
Findas as formalidades, David Collingwood, advogado de Keaton, tentou controlar a conversa. Era um homem gordo com uma cara bolachuda.
— Meus senhores, creio que está na altura de dizerem ao Sr. Keaton que provas julgam ter contra ele. Quanto mais depressa o fizerem, mais depressa poderemos desmascarar esta farsa.
Poe colocou uma fotografia virada para baixo em cima da mesa.
— Vou dizer-lhe o que julgamos que aconteceu, Sr. Keaton. Em seguida, vai esclarecer as partes que ainda nos levantam dúvidas. — Ele ergueu os olhos e sorriu. — E garanto-lhe que vai confessar.
A expressão de Keaton alternou de neutra para maliciosa. Não abriu a boca.
Poe virou a fotografia.
— O falecido Les Morris. Morreu de desidratação há cerca de oito anos. O seu cadáver foi transferido para a divisão que seria a casa de banho do abrigo. Quer dizer-me como o prendeu lá em baixo?
Silêncio.
— Nesse caso, permita-me que prossiga — disse Poe. Keaton olhou para as unhas e poliu-as na camisa. — Como desconfiávamos, o Sr. Morris encontrou o abrigo através dos registos de empresas construtoras que operavam na zona nas décadas de 50 e 60. Havia cópias no abrigo com ele. Presumimos que estivesse a preparar a sua divulgação.
Keaton manteve-se em silêncio.
— É um palpite — continuou Poe —, mas acreditamos que, quando ele estava a limpar a terra e os detritos para tentar localizar a parte superior do abrigo, acabou por se deparar com as trufas negras de verão. — Poe interrompeu o discurso para beber qualquer coisa. — E, durante algum tempo, essa solução agradou aos dois. Ele obtinha dinheiro para financiar o projeto de restauro secreto dele e você tinha acesso a ingredientes caros muito abaixo do preço de mercado. Mas… você é um psicopata, Keaton, pelo que essa relação tinha os dias contados. Terá oportunidade de o confirmar mais tarde, mas deixe-me dizer-lhe o que eu acho que aconteceu. Usou o seu famoso charme para o convencer a mostrar-lhe o bosque. E, já que estava ali, obviamente, ele não resistiu a mostrar-lhe o abrigo. Embora você não estivesse interessado, ainda assim desceu. E percebeu que, se o Morris morresse ali, nunca seria encontrado. Ele não partilhara com ninguém a localização do abrigo, e as únicas pessoas que podiam dar-se ao trabalho de o procurar não acreditavam na sua existência. Terá sido uma decisão tomada em cima do joelho, mas decidiu sair dali e encurralá-lo lá em baixo, sujeitando-o a uma morte aterradora. — O indício de um sorriso assomou ao canto dos lábios de Keaton. — Como me estou a sair?
Nada.
Colocou outra fotografia em cima da mesa. Esta era do acidente de viação que vitimara Lauren Keaton.
Keaton mexeu-se na cadeira.
Poe colocou mais uma fotografia à sua frente. Desta feita, de um portátil. Destruído.
— Este é o seu computador, Sr. Keaton. Destruiu-o. Estava guardado a vácuo num saco de sous-vide. Encontrámo-lo na mesma divisão onde estava o Sr. Morris.
— Se está destruído, como é que consegue provar que pertenceu ao meu cliente? — inquiriu Collingwood. — É uma marca comum; pode ser de qualquer pessoa.
— Eu disse destruído, Dr. Collingwood, não pulverizado — respondeu Poe. — É que eu trabalho com uma mulher brilhante, sabe? Às vezes, dá connosco em doidos, mas o que ela não souber sobre computadores… Acho que está a perceber. No espaço de uma hora, ela conseguiu extrair as informações do disco rígido e carregou-as para o seu próprio computador. — Os olhos de Keaton denotaram medo pela primeira vez. Não contava com aquilo. — E, pasme-se, o histório mostrou-nos que uma das pesquisas foi «como matar alguém num acidente de viação e escapar impune». A página que visitava mais frequentemente descrevia motivos legítimos para desativar os airbags. Havia ainda outra página que explicava como impedi-los de reiniciar depois de o motor voltar a pegar. — Keaton resfolegou. — Que vergonha, Keaton! Matou a sua mulher para manter uma estrela Michelin.
— Isso nem chega a ser circunstancial, inspetor Poe — disse Collingwood.
Poe ignorou-o.
— Resumindo e concluindo, o médico-legista alterou o parecer relativamente à morte da sua mulher de morte acidental para homicídio. Ah, e caso queira saber, vai considerar-se culpado pela morte dela. Pelas três, aliás. Lauren Keaton, Elizabeth Keaton e Les Morris.
— Está a ameaçar o meu cliente, inspetor Poe?
— Ouviu-me a ameaçar o seu cliente, Dr. Collingwood? Não, chamemos-lhe… prever o futuro.
O sorriso escarninho de Keaton desapareceu. Estava nervoso.
— Com a morte da sua mulher — prosseguiu Poe —, a Elizabeth começou a estar mais envolvida no negócio. Segundo a minha amiga Tilly, foi quando a Elizabeth usou o seu computador para confirmar uma discrepância na folha de pagamentos que ela encontrou as mesmas provas que nós: o método que usou para assassinar a mãe dela. — Poe olhou fixamente para o homem que tinha à sua frente. Keaton virou a cara. — Confrontou-o com aquilo que tinha descoberto e você assassinou-a por causa disso.