Tinha acabado de anoitecer quando Poe regressou a Shap Wells. Foi buscar o correio, despediu-se de Flynn e Bradshaw, e deixou-se cair em cima da moto-quatro, sentindo-se curiosamente vazio.
Não sabia quanto tempo demoraria o interrogatório, por isso Victoria aceitara cuidar de Edgar. Iria buscá-lo de manhã. Flynn e Bradshaw ficariam por ali, e já tinham combinado todos ir jantar caril a Kendal na noite seguinte. Poe tencionava convidar Victoria, como forma de agradecimento.
O procurador do Ministério Público demorara seis horas a escrutinar a confissão de Keaton e a garantir que era incontestável.
Richard Bloxwich nunca falara com o tipo que aparecia na fotografia. Era arraia demasiado miúda. As chefias da Entity B não se encontravam com branqueadores de capitais. No entanto, não era isso que parecia na fotografia, graças ao software de manipulação de imagem de Bradshaw. E nem Poe nem a inspetora-chefe Stephens referiram explicitamente o que estava na fotografia. Limitaram-se a sugerir a possibilidade e a deixar que Keaton preenchesse as lacunas.
Resultara. Keaton confessara tudo. Que matara Les Morris.
Poe tinha razão nas suas suspeitas: ele transferira a escada do anel de fixação para a parte interior da escotilha. Morris não conseguira sair de lá. Keaton voltara lá três meses depois para transferir o cadáver para a casa de banho.
Contara-lhes que matara a mulher para manter a estrela Michelin e que depois matara Elizabeth quando esta descobrira as provas no seu portátil. E que usara a máquina de sous-vide para selar o cadáver desmembrado antes de o depositar, juntamente com tudo o resto, na divisão do abrigo onde já estava Morris.
O sangue que guardara serviria para incriminar Jefferson Black.
O resto estava em consonância com o que já tinham ouvido de Chloe Bloxwich e Flick Jakeman. Recrutara Jakeman enquanto estava no hospital e depois esfaqueara-se para poderem ter algum tempo para planear as coisas — os guardas prisionais tinham de deixar os médicos e os doentes a sós, quando estes se deslocavam a hospitais no exterior da prisão, de modo a salvaguardar o sigilo profissional. Keaton admitira que Jakeman não saberia que estava a aprisionar Chloe no abrigo, e que pensava que a gasolina serviria para queimar os vestígios da sua passagem pelo local. Não fazia ideia de que estaria a destruir cadáveres.
Flick Jakeman e Chloe Bloxwich cumpririam uma pena de prisão. Mais duas vidas arruinadas para juntar ao rol de três pessoas que tinham sido assassinadas por Keaton.
Keaton seria acusado do homicídio de Les Morris, assim como do da mulher e da tentativa de homicídio de Chloe Bloxwich. Já apresentara uma admissão de culpa antecipada pelo homicídio de Elizabeth. O Ministério Público tencionava pedir pena de prisão perpétua, o que era raro. Sem possibilidade de sair em liberdade condicional.
Poe perguntara a Keaton se tentara incriminá-lo porque o seu pai se recusara a vender-lhe a propriedade em Kendal. Keaton não sabia do que é que ele estava a falar. Fora uma coincidência, algo que ele estava disposto a aceitar de bom grado. Keaton escolhera Poe pelo simples facto de que tinha de escolher alguém, e o inspetor era o único que não se deixara enganar anos antes.
Antes de sair de Carlisle, Poe apertara a mão a Rigg e a Gamble. Os dois homens não haviam desiludido. E não só a ele. Tinham garantido justiça para Elizabeth, Morris e Lauren. A justiça não era célere, mas naquele caso havia sido cumprida.
Enquanto seguia pela M6, ligou a Jefferson Black a dar-lhe a notícia. Talvez o facto de saber o que acontecera a Elizabeth desse finalmente alguma paz de espírito ao ex-paraquedista. Poe tinha as suas dúvidas, mas era o mínimo que podia fazer. Involuntariamente, Jefferson Black fora o responsável por desbloquear a investigação.
Poe transpôs a cumeeira e avistou a sua casa. Fez uma travagem brusca. As luzes estavam acesas. Não todas, mas algumas. Estava alguém lá dentro. Já falara com Victoria, e acabara de deixar Flynn e Bradshaw.
Não conhecia mais ninguém.
Usou os binóculos, mas não conseguiu detetar movimento no interior. Acelerou um pouco a moto-quatro e aproximou-se de casa com cautela. Estacionou no lugar habitual e desmontou. Continuou a não haver movimento.
Reparou num documento que estava dentro de um plástico e colado à porta. Arrancou-o e leu-o. Era da autarquia. Desconfiava que haveria um documento igual no correio que acabara de recolher. Rasgou o plástico com os dentes.
Era uma ordem oficial para restaurar a propriedade nas condições iniciais.
Filhos da mãe. Victoria tinha razão: era uma ordem de despejo.
Verificou a correspondência e deu com uma carta que se destacava das demais. Um envelope pardo normal com o seu nome impresso na parte da frente. Tinha sido entregue por estafeta no hotel. Abriu-o.
Era um pedido em branco de revisão das autorizações de planeamento de edifícios no Parque Nacional do Lake District. Virou a folha e leu a mensagem: «Vá-se foder, Poe», com um «W» impresso por baixo. Wardle, aquele sacana vingativo — qual ratazana que fareja uma poia não vigiada, descobrira o novo ponto fraco de Poe.
Mas… isso não explicava o facto de haver gente dentro da sua casa.
Poe abriu a porta e permitiu que os seus olhos se habituassem à penumbra. Um homem dormia no seu sofá. Não podia ser… pois não?
Olhou mais de perto.
Mas era.
Poe estava chocado por ele parecer tão mais velho.
Acendeu as luzes todas e o homem acordou sobressaltado. Semicerrou os olhos com a luminosidade súbita.
— Assustaste-me — disse.
Poe passou por ele e abriu o frigorífico para tirar uma cerveja. Estava cheio com fruta e água engarrafada, o que o fez esboçar um sorriso trocista. Bradshaw ainda insistia em cuidar dele. Pegou em duas cervejas, abriu as respetivas tampas e entregou uma ao homem.
— Acho que temos de falar, Washington — disse o velho, depois de beber um gole.
— Amanhã, pai — respondeu Poe. — Podemos falar amanhã.