Quando George encontrou Rose a chorar, naquela noite, percebeu logo que estava fora do seu meio. Achava-se talvez capaz de lidar com raiva, mas tinha pouca experiência com lágrimas.
– Venho pagar a conta – disse.
Ela olhou para ele e abanou a cabeça.
– Então – disse ele –, pode enviar-ma depois?
Ela fez que sim com a cabeça e virou-se. George fez então uma coisa ousada. Estendeu a mão, deu-lhe uma palmadinha na parte de cima do braço, sorriu e saiu, para ir até ao rio, para pensar – ele, que nunca caminhava. Ele que nunca caminhara junto daquele rio, nunca antes ouvira o ligeiro som no meio da corrente onde a água indolente se dividia em torno de um banco de areia. Imaginem, pensou, se alguém o encontrasse ali, ao luar, sentado na margem de um rio onde nunca estivera antes. Bom, pensou, e se alguém o encontrasse?
Ela ficou estupefacta quando o voltou a ver algumas semanas depois.
Rose geria um hotel e restaurante e as pessoas simplesmente entravam quando queriam. Quem lida com o público pode dizer adeus à privacidade.
Mas George Burbank bateu à porta.
– Lembrei-me de a vir ver – disse.
– Entre, por favor – convidou ela. Estava apreensiva, pois que motivo teria George Burbank para a visitar? Mandara-lhe a conta. Recebera um cheque. Calculou que o carro dele teria sido visto a passar pelos saloons e que a sua reputação estaria a ir por água abaixo. – Tenho um grupo para almoçar ao meio-dia – disse. – Compreende, estou ocupada na cozinha.
– Senhora Gordon, não quero incomodá-la.
Então porque não se ia embora, se não queria incomodá-la?
– Quer sentar-se um bocadinho na cozinha?
– Sim, obrigado – disse George Burbank.
Junto à janela da cozinha estava a mesa onde ela e Peter comiam.
– Quer sentar-se aqui? Tenho de fazer a massa dos biscoitos.
– Trate lá dos biscoitos. Eu fico aqui sentado.
E assim fez, e começou a ler as palavras nos frascos de molho. Peter tinha uma queda para molhos e especiarias. Este molho robusto, leu George, fica excelente com carnes, queijo e peixe. Delineou com a ponta do dedo as flores na toalha de oleado.
– Tem sido um outono bem seco – comentou. – Reparei que o rio está baixo.
– Tem mesmo sido seco, não tem? Ainda no outro dia estavam aqui umas pessoas a dizer que era o outono mais seco de que se lembravam.
– E tinham razão, essas pessoas – disse George. – Um outono seco.
– Suponho que há de acontecer de vez em quando – disse Rose.
Ele gostava de ver as mãos dela sujas de farinha.
– Sim, de vez em quando acontece. É mesmo assim.
Não sabia mais de amor, disse a si próprio, do que de lágrimas, mas gostava de estar aqui sentado. E gostava da conversa, que lhe parecia prestes a ficar um pouco mais animada. Por outras palavras, sabia tudo o que havia a saber sobre o amor, que é o prazer de estar na presença da pessoa amada.
– O Peter está na escola, a lavar as janelas. – Fez uma pausa e temeu que ele visse o facto de ela estar a falar da ausência de Peter como algum tipo de provocação.
– Imagino que deve estar muito orgulhosa dele, pelo que oiço dizer.
Ela sentiu-se subitamente feroz na necessidade de proteger Peter, e as lágrimas arderam-lhe nos olhos.
– Pelo que ouve dizer?
– Oh, ouvi dizer que ele é um rapaz muito inteligente.
Dois carros pararam à frente do estabelecimento, o grupo de Herndon. A porta abriu-se e a sineta por cima avisou, e as vozes dos comensais vinham excitadas pelo frio e gratas pelo calor da lareira.
– Vou sentá-los – disse Rose. – O Peter deve estar a chegar.
George achou que o grupo estava a ser bastante barulhento. Quando Rose reapareceu, disse:
– Trouxeram vinho com eles. Quem me dera que não fizessem isso. Não sei bem o que diz a lei nova a esse respeito, mas dá mau aspeto, se alguém entrar.
George levantou-se lentamente.
– Quer que eu vá falar com eles?
Rose riu-se, chocada.
– Oh, não! Eu trato do assunto depois.
Imaginem, pensou, se George Burbank irrompesse de repente na sala de jantar. Vindo da cozinha.
– Como queira – disse George.
– Não sei o que está a demorar tanto o Peter.
George inalou o aroma dos biscoitos.
– Calculo que ainda não esteja despachado com as janelas – disse.
– E os clientes estão adiantados. – Adiantados e barulhentos.
– Parece-me a mim – comentou George –, que não foi só vinho que trouxeram. Parece-me coisa mais forte.
Estavam adiantados e a ficar demasiado barulhentos. Gente de Herndon – o cangalheiro que parecia Teddy Roosevelt e cujo sorriso deliciado antevia a posse do corpo dos outros no futuro. Um farmacêutico e duas mulheres loiras. O grupo incluía ainda o principal dentista de Herndon, um homem que recentemente fizera história de alguma maneira ao percorrer South Pacific Street com um fato de Palm Beach e uma bengala, e com ele nesta tarde de outono fria estava uma mulher que não era a sua esposa, mas sim uma mulher chamada Consuela que lhe entregava os instrumentos no consultório; era uma beldade morena muito admirada em Herndon, e a esposa do dentista era uma mulher que pensava muito nos missionários e nos pagãos e que gostava de se passear por Herndon com o marido dentista, ao domingo à tarde, no seu Cadillac castanho, com o sacerdote no banco de trás. A esposa estava de momento com uma amiga doente, algures fora do estado. E aqui estava a nova sociedade, a sociedade moderna de Herndon, pessoas sempre em movimento, sempre conhecedoras dos novos sítios que surgiam, o Green Lantern, o Red Rooster, restaurantes à média luz que abriam e fechavam, sítios duvidosos, sítios cheios de fumo, com pequenas orquestras que tocavam música sugestiva. A nova sociedade, com dinheiro novo, mas entre eles havia jovens rancheiros que aceleravam pelas estradas poeirentas em grandes carros, depois de deitarem mão de alguma forma ao livro de cheques da família. Alguns já tinham sido vistos a regressar de festas ao nascer do dia, com uma rapariga bonita no banco de trás do descapotável com os pés no volante e com um casal embriagado a aplaudi-la e a incentivá-la. Ninguém sabia onde é que isto iria parar, pessoas acordadas a noite toda, a ouvir estações de rádio distantes.
– Nunca devia ter posto ali o piano – disse Rose. – Oiça só!
Quando ela saiu da cozinha pelas portas de batente, George viu que os clientes estavam a dançar uma espécie qualquer de dança selvagem, e não pareciam estar a fazê-lo muito bem.
O chão estremeceu todo, até à cozinha.
– Valha-me Deus – disse Rose. – Quem me dera que o Peter chegasse depressa. Tenho de começar a fazer o frango e o Peter devia estar a servir-lhes a salada. Às vezes, se pusermos a comida na mesa... – Fez uma pausa, pensativa. – Senhor Burbank, vou num instante buscar o Peter.
– Oh, boneca! – gritaram na sala.
– Toca a abanar! – gritou alguém.
George disse:
– Senhora Gordon, eu sirvo-lhes a salada.
Antes que ela conseguisse protestar, ele já tinha pegado nos dois pratos em cima do balcão e saíra da cozinha, empurrando a porta de batente com o ombro. Rose viu que, lá fora, a beldade morena estava a dançar animadamente, baloiçando os colares de contas compridos.
Quando as portas se imobilizaram atrás de George, Rose aproximou-se delas, chocada com o que ele fizera.
Por um momento o barulho e os risos continuaram, as vozes elevaram-se. Depois abateu-se um silêncio súbito e absoluto; um acorde de piano ficou suspenso no ar, órfão. No silêncio, Rose ouviu George.
– Boa tarde – disse ele, e riu-se. – Parece que sou o novo empregado de mesa. Como está, doutor?
Quando George voltou para vir buscar mais salada, encontrou Rose encostada ao lava-loiça. Correu para ela, partindo do princípio de que estava a chorar, uma vez que já a encontrara nesse estado antes. E ela estava de facto a chorar, mas de tanto rir.
– Foi tão perfeito – murmurou. – Eles ficaram tão chocados. Nunca imaginariam... – e inclinou-se novamente para a frente, perdida de riso. – Foi tão perfeito.
Bom! pensou ele com os seus botões. Afinal saíra-se bem. E nunca ninguém o achara divertido antes.
– Senhor Burbank – disse-lhe ela mais tarde, enquanto bebiam café na cozinha. – Já são duas vezes em que estou preocupada e o senhor está presente. E, sabe, eu não sou pessoa que me preocupe muitas vezes.
Se Johnny Gordon lhe tivesse contado quem lhe rasgara a camisa e quem o arremessara contra a parede como um trapo velho, Rose nunca teria aceitado George Burbank. Mas Johnny não lhe contara, pois era da opinião de que ao dar nome a um homem, lhe daria rosto também, e a sua humilhação era mais fácil de suportar se o homem não tivesse rosto, fosse apenas uma força, como o Destino. À medida que começava a apreciar a companhia tranquila de George – e até a desejá-la – Rose racionalizou o incidente das flores de papel. Talvez o senhor Phil Burbank não tivesse má intenção. Afinal, que homem adulto havia de querer humilhar um rapaz? Teria ela sido demasiado sensível, demasiado rápida a recordar as antigas provocações no recreio da escola, a ressuscitá-las nas palavras de uma conversa perfeitamente normal? Que homem adulto havia de querer humilhar um rapaz?
George fez um pedido, em tom sério.
– Posso tratá-la por Rose? E pedir-lhe que me trate por George?
– Claro que sim, George.
Um domingo depois, outro pedido sério.
– Aceita casar comigo?
Ela não se fingiu surpreendida.
– Quero ser justa consigo, George. Amava o meu marido. Não sei se uma mulher é capaz de amar duas vezes.
– Claro. Como poderia saber? Mas se simpatizar comigo, então talvez mais tarde?... E eu podia pagar os estudos do seu filho. Na escola que ele quiser.
– Eu podia tratar disso sozinha. Era tão importante para o John que ele continuasse a estudar. Talvez tenha sido a última coisa em que ele acreditou.
– Compreende que eu lhe pagava os estudos, ou lhe emprestava o dinheiro, ou aquilo que preferisse, quer case comigo ou não. Sabe, quando estamos juntos, quando rimos e falamos, ora, isso vale mais do que tudo o que eu alguma vez poderia fazer por si ou pelo rapaz.
– Mas não percebe, eu não quero o seu dinheiro.
– Tem graça – disse ele. – Dantes, achava que isso era tudo o que eu tinha, dinheiro, até nos sentarmos aqui a rir e a conversar. É engraçado, mas agora mesmo quando estou sozinho sinto-me tão bem.
Ela baixou os olhos para os pés dele. Os seus sapatos eram velhos mas estavam bem engraxados. Ergueu os olhos para as mãos dele, quase tão largas como compridas, e quentes, mesmo quando ele acabava de sair do frio. De súbito, achou que sabia exatamente como ele fora em criança.
– Por favor, não chore – pediu ele.
– Não vou chorar. Mas estava a pensar na sorte que tenho, por ter conhecido dois homens bons.
No regresso a casa, atrás do volante do velho Reo, George trauteou baixinho, uma e outra vez, a valsa de The Pink Lady. E se ela o ensinasse a dançar? Imaginem. Quando olhou para as estrelas com os olhos semicerrados a luz parecia disparada até ao chão, como lanças. E que Natal teriam juntos!
Os velhos Burbank tinham mais sorte do que a maioria dos rancheiros aposentados; muitos deles, finalmente quebrados pelos invernos longos e frios, pelo vento uivante, pela noção de espaço desabitado – incapacitados pelo reumatismo, com os dedos artríticos distorcidos, dobrados em direção às palmas das mãos calejadas como as garras de um pássaro morto, obrigados a verem-se substituídos pelos jovens, a verem os jovens montar e laçar e caçar e organizar como eles nunca mais fariam – muitos refugiavam-se na dipsomania, procurando os bares em Beech ou Herndon, onde ficavam a olhar para os reflexos dos seus velhos rostos desapontados nos espelhos cruéis atrás do balcão; os que tinham começado por baixo e subido a pulso acabavam assim a beber precisamente com os homens de quem tinham passado a vida a tentar distanciar-se, à procura do mesmo esquecimento, a afundar-se na mesma velhice. Apenas uma cerca de tabuinhas, refletiam, separava o Cemitério de Mountain View da vala comum.
Em casa, vigiavam e criticavam, ofendiam-se por tudo e por nada, insistiam em passar os cheques, amuavam, certos de que os filhos e filhas os desejavam ver mortos antes de também eles virarem a última esquina.
Não era que os velhos Burbank fossem mais ricos do que os outros, pois uma boa meia dúzia de rancheiros conseguia dispor de duzentos mil dólares em dinheiro vivo. O velho Tom Bart, por exemplo – apesar dos rumores de gastos extravagantes e de festas pela noite fora em quartos de hotel; os Bart e os Burbank raramente se cruzavam, exceto talvez nas ruas de Herndon, e era sempre Tom Bart que se desviava respeitosamente do caminho, ele que era conhecido como a alma da festa; ficava tenso, sorridente e mudo, perante o aprumo da Velha Dama e o bom corte das roupas do Velho Cavalheiro. George, imagine-se, admirava secretamente Tom Bart. Phil achava-o um idiota e referia-se a ele como um Labrego Linguarudo.
Não, não era por serem mais ricos, mas sim por serem cultos e terem contactos sociais; a leitura e a reflexão ocupavam o lugar do uísque; tocavam Melba e Galli-Curci na Vitrola, perdiam-se nos textos de Town & Country, International Studio, Mentor e Century, revistas que se acumulavam em cima da mesa até alguém as levar para Beech e as deixar na escola. Discussões sérias sobre acontecimentos da atualidade ocupavam o lugar da excitação curiosa que algumas pessoas encontravam na raiva e no desespero – discussões furiosas durante as quais de vez em quando faziam uma pausa e se entreolhavam no silêncio súbito.
Nada do que faziam agradava a Phil, nada o satisfazia, e os olhares dele recordavam-lhes de como eram inúteis as suas vidas. Após certos episódios desagradáveis, os velhotes instalaram-se numa suite de canto no melhor hotel de Salt Lake City, mandaram retirar as mobílias do hotel (apesar de ser mobília de qualidade) e substituíram-nas pelas suas, fizeram amizade com outros como eles, rancheiros aposentados, gente do negócio da madeira, das minas, pessoas que conheciam a Austrália e a África do Sul tão bem como conheciam o Oeste americano. Escreviam frequentemente para a família a leste, liam o Boston Evening Transcript, passeavam ao sol ou admiravam as montanhas cobertas de neve das suas grandes janelas no último piso. Mas no meio dos silêncios por vezes longos, um deles olhava subitamente para o outro e sorria-lhe um sorriso breve e encorajador, um sorriso rapidamente retribuído, e depois novamente o silêncio.
A Velha Dama ergueu abruptamente as sobrancelhas quando leu que George talvez fosse casar. Depois de receber a primeira carta de Phil, a Velha Dama escreveu várias cartas para George mas rasgou-as a todas, exceto a última. Que absurdo, pensou, estar a escrever a um homem feito a pedir-lhe para não casar enquanto a sua noiva não fosse aprovada, pois a carta de Phil dizia que a mulher tocara música num bar e que tinha um filho já grande. E nem uma palavra sobre um primeiro marido. Na sua última carta, suplicou a George que «pensasse bem», uma expressão que há muito era o lema da família, e de qualquer modo que permitisse que eles estivessem presentes no casamento.
«Pareceria mal», escreveu a George, «se lá não estivéssemos.»
Mostrou a carta ao Velho Cavalheiro, que percorria a sala com passos nervosos e parou para a ler.
– Não me parece que o George se importe que pareça mal. Nunca fez nada que parecesse mal antes. Porque havia de se importar com uma coisa?
– O Phil importa-se.
O Velho Cavalheiro virou-se para ela. A pergunta que lhe ia fazer ocorria-lhe frequentemente. Por mais de cem vezes começara a formulá-la, abrira a boca para lhe dar voz. Mas olhara para ela e mantivera o silêncio até aqui, com receio de que ela visse na pergunta alguma forma de crítica a si própria.
– Achas que?...
Chocado, apercebeu-se repentinamente de que ela tinha a mesma pergunta em mente. Foi ela, então, que a exprimiu.
– Se acho que pode haver algo... alguma coisa errada... algo errado com o Phil?
O Velho Cavalheiro sentiu um aperto no estômago, mas era um alívio deitar tudo cá para fora.
– Se houver, a culpa não é tua.
– Nem tua – disse ela, e olhou para o relógio. – Que horas são, por favor? Detesto estes relógios pequeninos. Não consigo ver os ponteiros e estão sempre a atrasar-se.
Enviaram a carta e prepararam-se para a seguir, fizeram as malas e pediram à criada para regar os gerânios. Telegrafaram para George, para que os fosse buscar a Beech.
Ele estava na plataforma à espera deles e aproximou-se a sorrir, com o casaco de búfalo que o fazia parecer enorme, inclinado contra o vento de inverno que soprava a neve seca sobre a plataforma.
– Olá, mãe – disse, e inclinou-se para a beijar. – Olá, pai – e apertou formalmente a mão do Velho Cavalheiro. – Já viram, começou a nevar.
– É bom ver-te – disse o Velho Cavalheiro.
– Igualmente – disse George. – O carro está do outro lado.
– Como sempre? – perguntou o homem mais velho.
A Velha Dama espremeu o cérebro à procura de alguma coisa para dizer, uma palavra sobre a viagem, sobre a refeição no comboio, algo avistado pela janela, um episódio qualquer. Só se lembrava de uma criança a chorar e uma mãe irritada e o cheiro a casca de laranja.
– Trouxeste alguém contigo? – perguntou.
– A minha mulher – disse George.
*
– Bom, o que achaste dela?
Os velhos Burbank tinham sido instalados no seu antigo quarto.
– O relógio está outra vez a funcionar – disse o Velho Cavalheiro. – Mas as janelas ainda abanam. – Aproximou-se da janela e olhou para fora.
– Não ouviste? Perguntei o que achaste dela?
– O que achei dela? Acho que foi muito atencioso da sua parte ceder-nos o quarto enquanto aqui estamos. Mas que mais posso dizer de uma viagem de carro de trinta quilómetros em silêncio?
– São mais de trinta quilómetros. Quando estavas no escritório a falar com o George, ela bateu à porta e eu fui abrir. E disse-me uma coisa estranhíssima.
– Que diabo é que ela disse?
– Disse, «Conhecendo o George, sabia que podia contar com a vossa bondade.»
– E então?
– Gostei de saber que ela vê a bondade no George.
O Velho Cavalheiro virou costas à janela que refletia o candeeiro atrás de si.
– Vais dar-lhe alguma joia, ou coisa parecida?
A Velha Dama tossicou e deu uma palmadinha no peito e aproximou-se da janela. No parapeito, estava um vaso com um gerânio morto.
– Vejo que a menina Jones está morta. Acho que é melhor esperar e ver. É pena ela já ter um filho. Lealdades.
– Já estava a morrer antes de nos irmos embora, lembras-te? Não é... o rapaz. Sabes disso. – O Velho Cavalheiro deu meia-volta, atravessou o quarto, deu meia-volta outra vez e regressou. – Uma coisa posso dizer-te. Tenho pena dela.
– Não te vejo nesse estado de nervos desde que deixámos esta casa – disse a Velha Dama.
Começaram a desfazer as malas.
– Não está tanto frio neste quarto? Uma pessoa até se esquece do que é o frio.
Ele ergueu os olhos da mala.
– Não te oiço falar no frio desde que deixámos esta casa.
Rose também sentira o frio, na sua primeira noite na casa. Tinham casado depois do Natal, na casa paroquial em Herndon. George perguntara-lhe se deviam convidar algumas pessoas. Ela disse que, por causa de Peter, devia ser privado. Esperava que ele compreendesse.
Ele parecia compreender.
– Como queiras – disse, mas com um sorriso.
– Mas o teu irmão sim, claro – disse ela.
– Ele nunca põe os pés na igreja. Detesta ter de se vestir bem.
Peter também compreendeu o que havia a compreender.
– Sabes que sempre amarei o teu pai. Se eu achasse que te magoaria eu voltar a casar, se achasse que tu não compreenderias... – Peter sorriu. – Compreendes?
Peter olhou pela janela para a artemísia rasteira que se estendia para além da escola, até ao rio, e para o maciço de salgueiros onde costumava sentar-se a fazer planos e a ver a lua.
– Compreendo.
O tom afetado do discurso dele há muito que a desconcertava, os seus «com certeza», os seus «dadas as circunstâncias» – bem como o facto de a tratar por Rose. Não questionava os seus motivos, talvez com medo da resposta, que esta revelasse alguma espécie de amor inferior por ela. Na verdade, o nome Rose adequava-se mais à imagem que Peter tinha da mãe, por ser mais uma amada do que uma mãe, o único alvo, depois da morte do pai, do seu estranho afeto, o único sujeito restante do livro de recortes que lhe servira de guia e de Bíblia durante cinco longos anos. Não sentia quaisquer ciúmes de George Burbank ou, se sentia, eram ciúmes tão controlados e impessoais como o ódio que tinha por quem pudesse tentar destruir as suas imagens privadas. O casamento simplesmente tornaria possível para ela aquilo que merecia, muito antes de ele próprio alguma vez poder concretizá-lo, e que a mãe tivesse aquilo que merecia era tudo o que importava para ele. O casamento afastá-la-ia para sempre do Red Mill, onde servia as pessoas que ele odiava e desprezava, onde tinha de se defender de comentários embriagados e de sorrisos insinuantes porque precisava de ganhar a vida, de garantir um futuro para ele, quando ele só queria garantir um futuro para ela. Mais depressa do que Peter sonhara, ela poderia viajar vestida com as últimas modas da Harper’s Bazaar, conduzir um Lincoln ou um Pierce, reservar um camarote de luxo num transatlântico e fazer arranjos de flores frescas.
Nas horas antes do casamento, a mãe ficou num quarto no Herndon House e George levou-o as armazéns Green’s para comprar um fato.
– Arranje a este jovem o que ele quiser – disse George ao homem, e Peter sorriu quando viu George olhar rapidamente para si próprio com o novo fato de sarja azul, encolher a barriga e apertar mais um furo no cinto. – A tua mãe quer que jantemos os dois sozinhos – disse George. – Suponho que quer arranjar-se para nos fazer uma surpresa. Meu Deus, mas ela já está sempre tão bonita!
Comeram no Sugar Bowl Cafe.
– Podes pedir o que quiseres. Eu como sempre o peixe frito quando saio. Para variar. Mas tu escolhe o que quiseres, estás à vontade.
Nunca, em toda a sua vida, Peter comera todo o chili con carne que lhe apetecia.
– Traga lá mais uma tigela ao rapaz – pediu George à empregada. – Hoje é uma espécie de celebração.
Peter foi o único convidado do casamento, e assim é que devia ser, pensou, pois era a única outra pessoa diretamente envolvida. Gostou do ramo de rosas que George comprou, e a florista tinha composto também os vasos de bronze no altar. Ficou sinceramente sensibilizado por George ter feito um gesto tão sentimental, e mal respirou durante toda a cerimónia, limitou-se a humedecer os lábios quando George pegou na mão da mãe e lhe enfiou a aliança no dedo; mas o seu coração deu um salto quando a mãe se virou e sorriu e ajeitou a gola do fato de viagem azul-escuro, o gesto mais descontraído e elegante que ele alguma vez vira – de uma beleza comovente – o gesto da charmosa, encantadora e rica senhora Burbank. Ela caminha em beleza, citou, uma frase retirada de um dos livros do pai. Ela caminha em beleza, como a noite.
Tinha de ficar com uma daquelas rosas. Algumas pétalas secas seriam uma boa entrada para a última página do livro de recortes.
Rose encontrou uma senhora Mueller em Herndon, que era dietista no hospital, uma mulher asseada, engomada, que teria todo o gosto em dar cama e mesa a Peter até ao fim do ano letivo.
– Tentarei vir ver-te todos os fins de semana – prometeu Rose a Peter. – E talvez possas vir também ao rancho de vez em quando? Não seria divertido?
Peter achava que não seria nada divertido, mas não o disse. Sorriu o seu sorriso leve e pegou-lhe na mão. E assim saiu de Beech, onde fora gozado e posto de parte por ser filho de um suicida. Na escola em Herndon havia uma biblioteca a sério, aulas de Química e Física.
– O quarto é muito confortável – disse.
– Peter – disse ela –, às vezes acho que não me ouves. Estás a ouvir? Nunca sei o que estás a pensar.
– Vou prestar mais atenção – disse ele. Pensou que era um alívio ter de pensar agora apenas no seu próprio futuro. – Diz olá ao... George.
– Eu sei – disse ela. – É complicado saber o que lhe hás de chamar, não é? Mas ele quer tudo o que é melhor para ti.
Rose lembrou-se do frio naqueles primeiros momentos na casa do rancho. O irmão de George estava no meio da sala quando ela e George entraram, naquela tarde de inverno; Rose esperara nos degraus enquanto George guardava o velho Reo na garagem; o som do escape do gerador elétrico ecoava na colina à frente da casa. Os cães do rancho, alertados pelo barulho do carro e pela luz dos faróis, ladraram e apareceram a correr e depois ficaram a ganir e a saltar aos pés de George enquanto este regressava da garagem com as malas. Pousou-as e abriu a porta. Rose entrou primeiro e ali estava o irmão, de pé no meio da sala.
– Olá, Phil – disse George. – Lembras-te da Rose.
– Oh, olá – disse Phil.
– Passa-se alguma coisa com a fornalha? – perguntou George.
– Não faço ideia – disse Phil.
Era uma sala enorme, com pouca mobília, pois a Velha Dama e o Velho Cavalheiro tinham levado poltronas que haviam deixado espaços vazios; ninguém reorganizara as mobílias depois da partida deles, alguns anos antes. Tinham deixado ficar os tapetes navajo que adquiriam de vez em quando por acharem que ficavam bem numa casa de rancho, mas o tema índio nunca conseguira eliminar o ar de elegância desapontada. A lenha estava preparada na lareira, mas por acender. Por cima, o retrato da Velha Dama fitava-a com a sua expressão de Boston, os olhos sempre fixos em Rose para onde quer que ela se movesse.
– Bom, vou lá a baixo dar uma vista de olhos – disse George.
– A viagem foi tão agradável – disse Rose.
– George – disse Phil –, o Velho Cavalheiro escreveu. A carta chegou na mala-posta esta manhã. Ele quer uma escritura que eu não consigo encontrar. Importas-te de a procurar?
– Suponho que isso pode ficar para amanhã – disse George.
– Estive aqui o dia inteiro à tua espera – disse Phil.
– Rose – chamou George, ajoelhando-se em frente à lareira e encostando um fósforo à lenha. – Vem aquecer-te. Eu vou lá a baixo ligar a fornalha.
– Eu estou bem, não tenho frio nenhum – disse Rose, mas aproximou-se. Estava morta de medo de ficar sozinha.
– Não, vou só lá a baixo – disse George. – É um minuto. – Olhou para a lareira por um instante enquanto as chamas saltavam dos raminhos mais finos para a casca dura e resistente dos troncos verdes, depois virou-se e atravessou a grande sala de jantar com as suas mobílias de mogno pesadas e atarracadas. Rose ouviu uma porta abrir e fechar e passos a descer.
Viria a conhecer muito bem aquela cave, aquela cave que ficava alagada todas as primaveras; a água, ao subir, suja do óleo da bomba de água, encontrava as tocas dos ratos, que se afogavam e ficavam a boiar, inchados, de barriga para cima, sob a luz fraca que entrava pelas janelas estreitas rente ao teto. Ouviu um ribombar frenético lá em baixo, depois o som arrepiante de uma pá a raspar no cimento, e depois o som grave de uma portinhola de ferro. Sentiu o cheiro de fumo de carvão.
Não conseguia controlar os tremores, nem afastar o início de uma dor de cabeça inesperada. Phil sentara-se junto do candeeiro com quebra-luz de franjas em cima da mesa no meio da sala, e tinha nas mãos uma revista, inclinada para apanhar a luz; quando lia, os seus lábios moviam-se. Ela sentiu que o silêncio seria pior do que qualquer coisa que pudesse dizer, mas quando falou a voz ficou-lhe presa na garganta.
– Bem, irmão Phil – começou –, é muito bom estar aqui.
Os lábios dele continuaram a mover-se enquanto lia. Depois ergueu os olhos da revista, fitou-a diretamente e sorriu. Sorriu enquanto os passos pesados de George já subiam as escadas ainda desconhecidas, e continuou a sorrir e depois disse claramente:
– Não sou seu irmão.
George entrou.
– Ouvi-vos a conversar – disse, em tom animado. Enquanto falava, a porta da cozinha abriu-se e a senhora Lewis, a trautear uma melodia triste qualquer, entrou para pôr a mesa para os três.
Depois de jantar, Phil leu durante algum tempo junto do candeeiro; depois levantou-se abruptamente e percorreu o corredor até ao quarto, fechou a porta atrás de si, pegou no banjo e afinou-o. Não conseguia conter um sorriso, tinha de sorrir ao pensar em George a entrar em casa com aquela mulher, a tentar suavizar as coisas. Como é que ele dissera? Lembras-te da Rose? Isso mesmo. Que raio de nome era Rose? O nome de uma cozinheira qualquer. Tinha de sorrir, tinha de sorrir ao pensar em George apoiado no joelho em frente da lareira apagada – um pouco desapontado por Phil não a ter acendido antes de eles chegarem, para que a sala estivesse acolhedora e confortável. Ha-ha-ha. George conhecia Phil o suficiente para saber que ele não faria algo que não sentia. Phil tinha de sorrir ao pensar no olhar de soslaio que Rose lhe lançara durante o jantar. Sabia bem a aparência que tinha, sabia que isso havia de a irritar. Sempre irritara a Velha Dama, a camisa amarrotada, o cabelo despenteado, a barba por fazer, as mãos por lavar. Bem podia começar já a habituar-se ao facto de que ele não fazia as coisas como as outras pessoas porque não era como as outras pessoas, que deixava o guardanapo propositadamente intacto, que se esticava para se servir em vez de pedir que lhe passassem a comida, e que se tivesse de se assoar, assoava-se. Se os parentes finos do Leste aguentavam, esta mulher também tinha de aguentar, e se não estava habituada a que um homem se levantasse da mesa sem primeiro fazer vénias e salamaleques e pedir «Com licença», bem podia começar a habituar-se. Oh, sim (tinha de sorrir), esperavam-na algumas surpresas.
Já percebera como ela era, percebera desde a primeira vez que a vira, sabia que era demasiado insegura para tentar afastá-lo de George ao contar-lhe o comentário que ele fizera, que não era seu irmão. A mulher teria muito cuidado para não pôr George à prova, para não correr o risco de o enraivecer, de interferir com os sentimentos dele pela família, porque George era o seu seguro de vida. E mesmo que por acaso se queixasse, de que adiantaria? A casa era tanto dele como de George, o dinheiro era tanto dele como de George, e o rancho estava organizado de tal forma que era impossível dividi-lo sem causar problemas financeiros, os direitos da água, as terras de pasto e por aí fora. Se ela fosse à procura de sarilhos, ia encontrá-los. Parecia que a estava a ver, a entrar naquela casa pela primeira vez, ao final dessa tarde de inverno, com a fatiota nova que George sem dúvida lhe comprara, morta de medo.
Phil não tinha problema algum em admitir que muitas vezes se ria e falava sozinho – «fazer companhia a mim próprio», dizia. Divertia-o repetir o discurso daqueles que o divertiam, saboreá-lo. E agora, num tom agudo feminino assustadoramente acertado, imitou Rose. Como é que ela dissera? A viagem foi tão agradável. Phil imaginava como teria sido agradável a viagem, com o vento e a neve a enfiarem-se entre as cortinas laterais, onde as ilhoses se tinham rasgado. Pés meio congelados, mãos demasiado enregeladas para as mexer, doridas com o frio, as luzes fracas do velho Reo a iluminarem a estrada esburacada. Além do mais, Phil não tinha qualquer interesse em gente que tentava fazer conversa, pois sabia que era apenas um ardil que as pessoas usavam para se sentir bem consigo próprias e para caírem nas boas graças dos outros. Ela sabia que o lugar dela não era ali, entre os Burbank. A questão era, quanto tempo demoraria George a perceber esse facto?
E depois George a subir da cave, a acender a fornalha, a subir e a dizer «Ouvi-vos a conversar», todo satisfeito. Oh, George satisfazia-se com pouco, isso era verdade. E a mulher e Phil tinham conversado, lá isso tinham.
Phil pigarreou, sorriu e começou a tocar «Red Wing», de olhos postos na cama vazia do outro lado do quarto. Para além do quarto, na escuridão, ficava o cercado do matadouro. Teriam de matar uma vaca em breve. Já não restava muito mais do que um quarto traseiro na casa do gelo.
De súbito, os dedos de Phil pararam sobre os trastos do banjo, e os dedos da mão direita imobilizaram-se, arqueados sobre as cordas como uma aranha. Os seus olhos viraram-se para a luz por baixo da porta da casa de banho que ficava entre este quarto e o quarto dos Velhotes. Seria George ou Rosey?
Quando os Velhotes ainda dormiam no quarto grande do outro lado da casa de banho, destrancavam sempre a porta do lado de Phil depois de se despacharem, de terminarem as suas abluções, de fazerem as suas abluções, para que ele ou George pudessem usar a casa de banho. Claro que Phil nunca lá entrava, sentia-se pouco à vontade, por algum motivo, com as coisas da Velha Dama, os seus perfumes e colónias, o seu sabonete Pear’s e as toalhas de monograma; o espaço tinha o odor ofensivo das mulheres, e a caneca de barbear do Velho Cavalheiro e o seu conjunto de lâminas não conseguiam fumigá-lo; Phil ficava revoltado se por acaso encontrava alguma peça de roupa fina pendurada a secar no varão. Seria de pensar que a Velha Dama guardaria essas coisas escondidas onde ninguém as pudesse ver, quem a ouvisse falar no seu tom afetado e quem a visse caminhar com passo elegante, pensaria que ela guardaria essas coisas para si. Não, Phil usava a casa de banho ao fundo do corredor, uma casa de banho pequena, sóbria e funcional que cheirava a sabão funcional com a toalha cinzenta húmida. Phil não percebia como George era capaz de tomar banho na outra casa de banho quando a Velha Dama vivia em casa, e agora George ia expor o corpo perante esta mulher. Apagaria primeiro as luzes?
Phil arrebitou as orelhas. Alguém estava a trancar a porta da casa de banho para este lado.
Teria sido George a rodar a chave, ou a mulher? Devia ter sido a mulher, pois não voltou a ser destrancada mesmo após um período considerável de tempo, como acontecia antigamente. Devia ter sido a mão dela que, cautelosamente, rodara a maçaneta para confirmar que a porta estava trancada. E Phil apostaria que, mesmo que tivesse sido George a fazê-lo, era a mulher que estava por trás do gesto. Phil ficou ali deitado no escuro, rígido, a pensar em como a mulher se deitaria com George e o deixaria fazer o serviço em cima dela, e talvez fazer-lhe um filho.