capítulo 2
De Máquina à Sociedade da Conexão: novas perspectivas para a Formação Docente
A
escrita deste capítulo está centrada na necessidade de se compreender porque os modelos mais tradicionais de educação estão se encaminhando para uma falência incontestável e inevitável.
Em virtude das mudanças dos costumes e dos valores da sociedade, que está se transformando continuamente, procura-se compreender porque é importante se investir em perspectivas que proponham uma visão e ação docente sobre o mundo, com foco na cooperação, na colaboração e no estabelecimento de relacionamentos interpessoais de resistência. Uma base teórica e de ação docente que acolha as diferenças e a heterogeneidade, afinal, não somos todos iguais e nem queremos ser compreendidos nesta uniformidade. Nenhum docente ou discente é igual ao outro e nem nos desperta os mesmos sentimentos nas relações.
Discutir as bases contemporâneas da formação do professor a partir dos saberes voltados para esta formação e da utilização das TDICs no contexto educacional parece um caminho interessante para percorrer nesta empreitada relativa à manutenção de heterogeneidade e do respeito às diferenças. A partir de uma visão de pluralidade e de apropriação dos saberes, como nos lembra Tardif (2002); diante dos pressupostos, da compreensão dos conteúdos necessários ao ensino a partir dos estudos que Shulman (1986) propôs; e, da valorização da aprendizagem do aluno na formação docente conforme Darling-Hammond e Baratz-Snowden (2005), compreende-se que os saberes voltados para a formação docente se pautam nos conteúdos, nos aspectos pedagógicos, curriculares e experienciais. Esse diálogo, por tratar de resistências, caminha imbricado com as ideias de Foucault (2005), de Feenberg (2002), Simondon (1958) e de outros autores que pensam sobre outro prisma de análise das relações e acontecimentos, bem como da tecnologia e, por isso, ofereceram ferramentas para olhar de outra
forma para esse mundo.
Compreendemos que um dos fatores fundamentais para se consolidar ainda mais profundamente a compreensão dos momentos em que esta linha demarcatória subjetiva, entre a sociedade pré-digital e a digital foi cruzado, superado e tendente a ser ultrapassado, é o estudo dos fenômenos que envolvem as inter-relações pessoais a partir de mudanças nas relações de poder que se estabelecem entre os sujeitos que, nesse caso, são os licenciandos, os docentes e discentes. Propõe-se que, entre inúmeros eventos, a comunicação nas redes digitais possa ser compreendida como um dos fatores de mobilização para novos tipos de relações entre os indivíduos, principalmente ao dirigirmos nossos olhares para as relações entre discentes e docentes.
Cachapuz et al. (2005), Carvalho e Gil-Pérez (2006), por exemplo, convergem para os modelos descritos na Formação de Professores, tornando-as mais sistêmicas e integradas, baseando-se na interdisciplinaridade, com foco na aprendizagem. Este modelo epistemológico de construção do conhecimento (interdisciplinaridade) não pode prescindir de análise de contexto, de conexões e de exercícios de relação entre saber e poder, por isso, de uma escolha de compreensão das políticas de formação de docentes e discentes.
No modelo vigente de formação, as expressões e as possibilidades de criação são submetidas a uma expectativa ditada pelos modelos socialmente aceitos ou a graus de flexibilidade que não destruam as bases fundamentais da governamentalidade dominante. Esta característica flexível da sociedade neoliberal procura manter a própria criatividade e o fazer criativo, em qualquer área do conhecimento, atrelado àquilo que é “correto” para o social e cientificamente aceito.
Somos levados a construir pensamentos de que as nossas próprias ideias sobre mudanças não devem desconstruir o modelo instituído, acarretando uma perpetuação das bases de funcionamento das instituições. Aceitam-se mudanças de exclusão, de inclusão ou mudanças pendulares, mas não se facilita a mudança de paradigmas. Em outras palavras, somos levados a procurar caminhos dentro de espaços e formas que já não atendem mais às necessidades dos indivíduos nem das coletividades.
Um fenômeno muito marcante na perspectiva contemporânea neoliberal é a importância do sujeito no desvelo e na construção deste mundo que deve estar de acordo com o esperado pelos determinantes sociais aceitos ou correr o risco de ser
considerado marginal em relação aos limites impostos. Algo semelhante acontece aos docentes e é incutido nos licenciandos. Uma nefasta nuvem que sugere a “forma correta” de se construir o “ser professor”. Daí surgem extremos de delineamento das características da docência que irão variar entre uma permissividade carismática e um autoritarismo disciplinador. Ora, se nem as racionalidades ou as subjetividades do humano seguem uma linearidade rígida e inflexível, se a diversidade é uma de nossas marcas de humanidade, como podemos imaginar a possibilidade de se ter um único caminho de ação, de pensamento ou de forma de estabelecer relações? Somos seres múltiplos, contraditórios, sujeitos a variações racionais e emocionais, então, a uniformidade que se quer construir por meio de instituições, como por exemplo, as educacionais, chega a ofender nossa humanidade.
Harvey (1993) nos sublinha a inimizade eterna entre os sujeitos submissos aos modelos instituídos e a ideia assombrada de transitoriedade da relação, que no caso deste livro, caracteriza-se entre os grupos de docentes e discentes. A instituição de ensino e aprendizagem em qualquer nível é um exemplo desta narrativa que se traduz em uma inércia administrativa e coletiva dos atores envolvidos nos processos educacionais em relação às mudanças de paradigmas importantes.
A perspectiva contemporânea da governamentalidade não deseja deixar o mundo sem respostas. Pelo contrário, quer dar estas respostas, mas quer que sejam compreendidas como verdadeiras e imutáveis ao longo dos tempos. Somos agraciados pela possibilidade de liberdade, mas não se trata de qualquer liberdade. Trata de uma liberdade submetida a um forte apelo disciplinar e a uma consolidação de uma racionalidade que nos é oferecida como única. Será que estas características podem se harmonizar com a ideia de liberdade?
Charlot (2005) sugere a ideia de que a palavra “formar”, nos séculos XI e XII, significava exatamente “dar forma”. Nesse sentido, “formação” vai caracterizar a ação de “dar uma forma definida” a um profissional, um conjunto de características teóricas e práticas que irá proporcionar a identificação e a caracterização de pertencimento de um sujeito profissional a uma profissão, no caso a profissão de docente.
Contudo, na contemporaneidade, certas habilidades deste profissional passam a ser requeridas. Estas habilidades emergentes não são suficientes para proporcionar a identificação do sujeito à profissão, como por exemplo a adaptação,
a flexibilidade, a negociação. Estas, chegam a ser características que se opõem a marcas de identidade tradicional deste profissional docente. Ainda assim, estas características emergentes deste profissional na contemporaneidade não são suficientes para proporcionar uma quebra nas estruturas institucionalizadas e nem para alterar as relações de disciplinamento e controle instigados pela governamentalidade sobre as relações entre docentes e discentes. Quando se trata da formação de professores não há uma alteração considerável na compreensão das raízes das relações apresentadas nos séculos passados em relação a este início do século XXI. Somos, então, mantenedores acomodados de relações de poder de séculos passados? A quem serve este tipo de conexão interpessoal hierarquizada pela estrutura?
Os objetivos dos docentes e discentes são determinados pelas situações impostas por um tipo de manifestação de biopoder e, a lógica se pauta nas práticas contextualizadas e organizadas para atingi-los. As tensões de sala de aula, a construção das mediações entre práticas e saberes, as integrações dos diferentes saberes necessários à docência constituem fatores básicos para a formação de professores dentro de uma modelagem política definida. As próprias resistências construídas em negociação com o sistema são absorvidas, controladas, disciplinadas e territorializadas conforme este biopoder.
Nunes (2002) ressalta que a formação inicia antes do exercício da prática docente, com a formação inicial, e prossegue ao longo da carreira, com a possibilidade da formação continuada ou formação em serviço. Diante da perspectiva de Schön (1992), a formação deve se basear na dialética entre teoria e prática, conduzindo o professor de forma crítica para o aperfeiçoamento de sua competência profissional. De certa maneira, ao olhar para esses autores quando se referem à formação docente, percebe-se que ao longo da carreira desse profissional não se cria um espaço de reflexão mas, uma série de teorizações e narrativas que estão focadas na solução de “problemas” que são gerados pela própria forma como se gesta a instituição e pelo tipo de relação imposta nos espaços educacionais.
O próprio mecanismo gera os problemas, continuamente, levando a atenção das formações para a arrumação do paradigma vigente e não para outras formas de pensar as relações interpessoais e interinstitucionais. A pergunta não seria de como fazer o aluno ter melhor rendimento na aprendizagem, mas como pensar outra relação de aprendizagem pautada em outra forma de pensar, de se apropriar. Emerge a pergunta: precisamos salvar este modelo existente?
De acordo com Lastória e Mizukami (2002) a formação de docentes é processualmente complexa, pois envolve diferentes tempos, experiências, grupos, gerando conhecimento durante toda a vida do professor. A questão é sobre que tipo de conhecimento nosso foco está sendo construído? Quem ou o que gera esse tempo? Padronizar experiências não nos levaria a uma uniformidade de movimentos e a uma maior facilitação de controle e disciplinamento? Como estabelecer conexões e respeitar as diferenças? Entende-se a formação do professor como um processo de construção da identidade profissional coletiva e individual iniciando-se ainda na sua condição de licenciando ou até mesmo antes desse momento. Quem e por que propomos este tipo de formação que realizamos na contemporaneidade? Quem constrói essa coletividade e essa individualidade de fato?
Do docente se espera o desenvolvimento de uma consciência crítica de sua atuação profissional diante da integração que pode estabelecer entre os diferentes saberes considerados necessários à docência e a instituição, as ideias que são perpetuadas, as conexões e os dispositivos de controle e disciplinamento a que estão submetidos. Acredita-se que a formação do professor deve contemplar as necessidades da contemporaneidade e das transformações sociais provenientes dos desenvolvimentos científicos, filosóficos, políticos e tecnológicos da atualidade. Sendo assim, a compreensão do ensino a partir da reflexão sobre a aprendizagem do aluno, a consciência da necessidade do clichê “aprender a aprender” e da ação integrativa dos diferentes saberes docentes, dentre eles ciência, filosofia, arte e TDICs, devem ser contempladas na formação docente, a partir de sua formação inicial sob pena de, ao não o fazer, estarmos criando máquinas orgânicas de reprodução.
Para Mizukami (2006) a formação inicial é um momento de sistematização, fundamentação e contextualização dos processos de aprendizagem relacionados ao ensino na teoria e na ação. O desenvolvimento de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores possibilitando a compreensão sobre aprendizagem ao longo da vida profissional. Acrescenta-se ainda que a formação inicial propicia ao licenciando o desenvolvimento de caráter investigativo, capaz de integrar os aspectos teóricos e práticos, ao observar, estudar e compreender a docência.
Estes mesmos fenômenos são tratados através de outra configuração da compreensão. Nesta, não se espera que a razão se sobreponha à emoção e nem que a segunda se sobreponha à primeira, ainda que nos primeiros momentos da
resistência se manifeste uma grande tendência a enfatizar as emoções e as subjetividades. O que se está aprendendo com esta perspectiva crítica é que não é possível se compreender o mundo e as relações interpessoais de forma binária e que os estímulos nem sempre repercutem nos sujeitos, nas sociedades e nos objetos da forma como os estimuladores, aqueles que representam as ações da governamentalidade, desejariam para alcançar o tão esperado sucesso.
Transformamo-nos em um número amplo de perspectivas, mas as guerras e as irracionalidades também se transformaram, os mecanismos e dispositivos de controle igualmente e, por isso, vamos tratar de compreender o processo da formação como aberto e não como uma perspectiva salvadora e recuperadora da humanidade. Não se pode esperar o mesmo da perspectiva neoliberal cuja ânsia por controle é inconteste e cada vez mais sutil, pois, nessa perspectiva é passível conduzir a experiência do ser e fazer humano de forma integralmente dirigida para um objetivo claro, eficiente, produtivo e absolutamente conhecido em suas características e peculiaridades. Não há chance de transformar estes sistemas neoliberais em algo que, simplesmente, sua espinha dorsal de relações, como por exemplo o mercado, o lucro e a exploração de um homem por outro, são peculiaridades inerentes ao próprio sistema e sem as quais ele deixaria de “ser”.
Qualquer ação que mobilize o sistema vigente em direção a um colapso é imediatamente conduzida aos limites de marginalidade e insucesso. Não se pode desconsiderar que a ideia de escola e a forma como concebemos hoje esta instituição é de um projeto gerado no espaço da disciplina e controle ou ainda mais antigo e, possivelmente, deverá ser desconstruído para que possamos reconstruir uma nova perspectiva e valores. Então, esperar por atitudes da governamentalidade no sentido de mudar radicalmente as instituições de ensino beira a ingenuidade. Ao mesmo tempo não se trata de uma apologia à anarquia como caos e vandalismo. Trata-se de uma construção libertária dos sujeitos. Trata-se de constituição e significação da missão das instituições formadoras de se desalinhar das tendências políticas de reprodução, controle e disciplinamento para as quais foram criadas. Será isso possível na sociedade e, especificamente, na educação?
Foucault (2005) nos sugere a possibilidade de pensar estas formas da sociedade, não como um período histórico, mas sim como uma atitude, uma forma de relação aparentemente voluntária, onde os dispositivos de controle e disciplinamento podem ser mais ou menos sutis e exercidos por alguns sujeitos que nos indicam caminhos de pensar e sentir, sobre um pertencimento que se
apresenta como uma tarefa desejada, gerando uma necessidade de compartilharmos comportamentos e pensamentos consolidando um tipo de hegemonia interpretativa da sociedade. Possivelmente poderíamos chamar esse processo como um exercício do biopoder das estruturas sobre os sujeitos. Neste aspecto, a formação política, as perspectivas de crítica constante e a defesa da individualidade do sujeito e da coletividade onde este se insere são condições inegociáveis para a transformação da teoria e prática da ação docente.
Quando afirmamos ser a Formação Docente vinculada a diversos aspectos como: concepções de professores, trajetória profissional, identidade e cultura se concebe que este conjunto implica em saberes do docente. Tardif (2002) sugere que o saber está vinculado não somente aos conhecimentos, mas também, às competências, habilidades e atitudes consideradas pela sociedade como importantes para o processo de formação institucionalizado. Mas, serão somente os saberes socialmente determinados, os relevantes? Os processos institucionalizados são sempre oriundos das necessidades de manutenção da governamentalidade e não da transformação profunda de relações, logo não operam no campo da mudança de paradigma. São invariavelmente processos de reprodução mais ou menos evidentes.
Os saberes docentes apresentam como fundamento a pluralidade baseando-se na integração dos saberes da formação profissional aos saberes disciplinares, curriculares, pedagógicos, tecnológicos e aqueles oriundos da experiência. Uma parte ampla do grupo de docentes e discentes não é parte das instâncias decisórias da sociedade e suas ações se parecem mais com aquela do oleiro que deve moldar os potes para serem vendidos no mercado, por isso, sua produção, em geral, atende àquilo que o mercado irá absorver. Alguns oleiros, no entanto, se dispõem a correr os riscos de uma mudança na forma e inexoravelmente pagam os preços dessa ação, na medida em que a aceitação dos seus produtos requer outra abordagem. Ainda existe outro oleiro, que é aquele aceito pela sociedade, reconhecido pela sua habilidade e que esta mesma sociedade o acolhe como símbolo de status e de grife.
Muitos dos pensadores em educação e outros profissionais podem se encaixar nessas analogias do oleiro. Alguns fazem a educação de forma absoluta e reprodutivista, outros são marginalizados e têm um campo de influência reduzido de suas ideias. Essa redução de influências é muito mais em termos de estratificação social do que de abrangência geográfica. E por fim, os pensadores em educação que são aqueles que representam as marcas de grife. Ideias incríveis,
abordagens surpreendentes, soluções metafísicas, mas com pouca ou nenhuma repercussão em termos de mudança de paradigma ou de mudança política. Seja por pressões do mercado, dos outros oleiros conformados com o que já existe e até mesmo da matéria prima, a argila que não se conforma aos novos modelos, sem a subversão das bases da educação, a mudança não tende a ocorrer. Na educação, numa absoluta e restrita analogia, já que estas guardam mais diferenças do que semelhanças, os professores como os oleiros, os alunos como matéria prima e o mercado como as instituições compõem uma imagem que nos auxilia a entender mais um pouco nossa estagnação docente secular.
Tardif (2002) lembra que os saberes da formação profissional são aqueles adquiridos durante o processo de formação inicial ou continuada. Geralmente, são conhecimentos oriundos das instituições que têm por finalidade trabalhar com a (com)formação do professor diante dos conhecimentos da ciência da educação e dos ideais pedagógicos. Os saberes disciplinares são aqueles definidos e selecionados pela Universidade. São integrantes da (com)formação inicial ou continuada por meio das disciplinas ofertadas compondo os variados campos do conhecimento humano. Surgem dos aspectos culturais e sociais dos grupos (re)produtores de saberes.
Os saberes curriculares vinculam-se aos objetivos, conteúdos, métodos e estratégias utilizados pela instituição como dispositivos da governamentalidade para apresentar de forma sistematizada os saberes sociais selecionados a partir de um modelo de cultura definido, letrado e reprodutor. Os programas escolares devem ser aprendidos e aplicados pelo professor. Os saberes experienciais são aqueles desenvolvidos pelos professores a partir do cotidiano de trabalho que é modelado com base em emergencialidades e correções desviantes. Além de surgirem da experiência, são também validados por ela. Com isso, o professor desenvolve o habitus e diferentes habilidades relacionadas principalmente aos procedimentos e atitudes esperados pela sociedade dominante.
Ora, se o cotidiano de trabalho é modelado para a disciplina, para o faber e não para o sapiens, é bastante óbvio que os esforços intelectuais são direcionados para a solução deste tipo de problema, qual seja, a manutenção de um modelo dominante e não para uma mudança de paradigma. E as soluções sugeridas dentro da institucionalidade não devem se construir como uma resistência, mas sim uma readequação do modelo dominante. Isso nos leva a sermos avaliados como bons professores na medida em que atendemos com mestria estas necessidades e nossos alunos obtenham respostas excelentes nos processos avaliativos gerados
e geridos pela governamentalidade.
Tomamos uma certa distância de segurança das compreensões de Tardif (2002). Esse pesquisador leva a reflexão para o campo dos saberes docentes vinculados à pluralidade e à heterogeneidade como características próprias do saber humano, centrando seus estudos nos saberes da experiência considerada núcleo vital do saber docente. Nossa perspectiva nos leva a refletir sobre a validade desse caminho. O saber experiencial construído a partir de uma “realidade forjada” por interesses de governamentalidades definidas acaba sendo uma realidade ficcional e não uma expressão da sociedade politicamente constituída. Logo, o campo de experiência foi contaminado e os problemas e soluções são arquitetados por esse espaço de forma a afastar o docente e o discente das questões verdadeiramente inquietantes sobre a formação. A identificação da pluralidade e da heterogeneidade como condição do sujeito é muito válida, mas incompleta se não considerarmos os contextos políticos onde estas identidades são geradas.
Por outro lado, pesquisadores como Shulman (1986) buscam investigar o que os professores compreendem sobre os conteúdos vinculados ao ensino e de que forma são transformados no ato de ensinar (ALMEIDA; BIAJONE, 2007). Ele e seus colaboradores percebem, como resultado de suas pesquisas, que o ensino inicia com um processo racional, encaminha-se pelo desempenho e finda em uma reflexão que proporciona o reinício do processo. Os professores aprendem, no desenvolvimento da formação, dentro e fora da prática, a integrar o conteúdo da disciplina aos aspectos pedagógicos com a finalidade de possibilitar a aprendizagem dos alunos. Para este autor, são três as categorias que distinguem os conhecimentos dos professores: conhecimento do conteúdo; conhecimento pedagógico; conhecimento curricular. É uma pena que não se inclua nesse rol de categorias o conhecimento social, político e filosófico que originam estas categorias.
Colocando nossa perspectiva sobre as categorias tornadas públicas pelo autor podemos analisar que o conhecimento do conteúdo diz respeito à compreensão que o professor tem sobre a organização da disciplina e o conteúdo específico que será ensinado. O professor deve conhecer a organização dos princípios fundamentais de sua área do conhecimento diante de diferentes perspectivas. Deve saber relacionar os diferentes tópicos intrínsecos ao objeto de ensino, bem como relacioná-los a outras áreas do conhecimento. Sua base deveria ser fundamentada pela literatura da área e pelo conhecimento filosófico e histórico da natureza desse conhecimento pautado em filosofias não reprodutivistas como,
por exemplo, a filosofia da diferença.
É importante salientar a necessidade de se ter sempre em mente a origem epistêmica daquele conhecimento que será trabalhado. Não se trata de qualquer filosofia, nem tampouco de qualquer história. Trata-se de mobilizar um raciocínio divergente e crítico, por isso, potencialmente não reprodutivo que evita a perpetuação do que existe e, principalmente, impede a forma como as relações se estabeleceram no contexto, em geral, sem considerar a crítica racional e subjetiva da sua constituição. Considera-se este fenômeno, não como um período histórico, mas como um evento muito mais psico-socio-antropológico – expressão utilizada por Morin (1996) - do que de qualquer outro tipo de abordagem. Uma visão diante do mundo e de compreensão da realidade, que não é única e que não pretende ser hegemônica.
Gera-se uma compreensão que não aceita simplesmente a necessidade de redimensionar as relações de poder dentro da lógica neoliberal, que não procura a falsa originalidade nem o domínio de definições de mundo ou de objetos e muito menos de sujeitos. É nessa onda de valores que se observa a premente necessidade de mudança do sujeito social educador e da construção deste dentro da diferença. Entre estes sujeitos estão os alunos, os professores e outros indivíduos vinculados à educação que não deveriam permanecer alheios às transformações pessoais, coletivas e de apropriação dos conhecimentos.
O conhecimento pedagógico se vincula às formas de ensinar que promovem a compreensão do aluno sobre o tema estudado considerando-se suas variações de habilidades e contextos. Refere-se, portanto, à maneira como o professor formula, apresenta e representa o conteúdo. Diz respeito também ao entendimento sobre as formas que facilitam ou dificultam a compreensão dos alunos sobre o conteúdo, bem como suas crenças, concepções, conhecimentos, e, suas implicações para a aprendizagem. Nesta classificação, a importância das conexões entre os saberes é crucial. Não se trata da necessidade de se estabelecer um comportamento docente, mas ao contrário, conforme inspira-nos Foucault (2005), o sujeito precisa refletir e se posicionar criticamente em relação à compreensão e às categorias que lhes são impostas.
Não se trata também de estabelecer parâmetros de funcionamento adequado ou de aceitação ditados por uma instituição que serve a interesses definidos de manutenção de uma sociedade instalada. Os aspectos transitórios, rápidos, potencialmente superficiais das forças ciberculturais que nascem das tecnologias
e que alteram dinamicamente as relações interpessoais e de poder, quando são objetos de apropriação crítica dos sujeitos, que por sua vez são oriundas de um rompimento com modelos pedagógicos vinculados a instituições reprodutivistas em sua origem, tendem a ser um fator inicial de possível resistência às governamentalidades em razão de sua fraca concepção de hierarquia e a baixa sedução que os apelos da tradição exercem sobre estes indivíduos. Talvez, por isso, associa-se à docência libertária a um tipo mais “underground” de sujeito, aqueles que têm uma vida dupla – na sociedade e na virtualidade – que em geral se opõem a uma cultura mais domesticadora do ambiente institucional. Este docente não é aquele que tradicionalmente é representado nas imagens dos livros.
Terá nosso aluno e professor que viver e compreender esta relação, que é no mínimo dual, entre um aspecto orgânico e outro digital de um único mundo? Por que as armadilhas da governamentalidade nos fixam a ideia de um mundo virtual separado do orgânico? Estes aspectos se integram? Orgânico e virtual procuram manter um limite perceptível ou se mesclam de uma forma transdisciplinar? Isso pode significar que se está caminhando para, finalmente se assumir, um modelo “transmorfo” de sujeito, um modelo complexo onde os papéis são sempre profundamente questionados e remodelados. São estas mudanças trazidas pela tecnologização da sociedade que caracterizam a modificação estimulada e estimuladora da “sociedade da conexão”. Sem dúvida não há como desprezar este tipo de abordagem em uma formação docente. Contudo, essa distância construída sobre bases irreais, entre o virtual e o orgânico é o que tentam nos fazer acreditar que existe, para manter a dominação e a reprodução. Nossa pretensa disciplina instituída nos espaços educacionais é tão falha que quando nossos jovens estão no espaço virtual suas carapaças são reconstruídas e outra faceta do sujeito, não domesticada, emerge. Essa ebulição precisa ser considerada nos conhecimentos pedagógicos trabalhados na formação dos docentes.
O conhecimento curricular se relaciona ao conjunto de programas voltados para um determinado tipo de ensino, englobando os objetivos, os conteúdos, as metodologias, os materiais utilizados e a capacidade de articulação do conteúdo à história de sua evolução. Contudo, sabemos que os conhecimentos oferecidos pelo currículo escolar traduzem políticas e ideologias que interessam à governamentalidade para viabilizar o disciplinamento e o controle dos estudantes. O que não é claro, ao nosso ver, é o fato de os estudantes e os professores parecerem estabelecer um pacto que não é especificado, explicitamente, e estes conteúdos passam a ser simplesmente aceitos dentro das instituições de ensino. A
matéria-prima da pedagogia se baseia ou é aprisionada na concepção curricular. Por que os alunos e professores não buscam formas de resistir a essa determinação?
Sabemos que o currículo é algo muito mais amplo do que os conteúdos propostos. Entretanto, refletir sobre o problema dos conteúdos e dos saberes da forma como são abordados, da evolução que é oferecida para os alunos no decorrer de uma linha de tempo, de Formação Docente, são elementos que nos trazem argumentos suficientes para perceber a perpetuação de um modelo reprodutivista dentro das instituições de ensino. Este modelo reprodutivista não trata somente dos saberes que são oferecidos, mas dos comportamentos das subjetividades, das relações com o tempo, das relações interpessoais e outras variáveis. Contudo, outros regentes entram em cena e a “pureza” ingênua do professor inspirado se vê ameaçada por tempos pré-definidos, por volumes continentais de conteúdo, por avaliações hipócritas asseguradas em uma pretensa certeza científica fabricada. O currículo é muito menos currículo e muito mais metacurrículo.
Reflita-se um pouco sobre a problemática da seriação e da evolução dos conteúdos versus os próprios estudos psicogenéticos fundamentados e reconhecidos pela ciência dominante e vamos perceber a estratégica incongruência destas propostas com a ideia de formação libertária e sua equalização com a (con)formação reprodutivista.
A metáfora é representativa porque leva a compreender a necessidade de se estimular a autotransformação, a mudança mais radical do interior, a necessidade de politizar as reflexões e de se organizar como grupos que partilham necessidades e interesses. Trata-se da organização civil de pequenos grupos de professores.
Darling-Hammond e Baratz-Snowden (2005) contribuem com uma perspectiva diferente diante dos saberes necessários à docência trazendo não só uma compreensão mais sistêmica da relação entre os saberes docentes, mas, considerando a aprendizagem do aluno como um fator preponderante a ser incorporado na formação. Os saberes necessários à docência se classificam para estes autores como: conhecimento sobre os alunos; conhecimento sobre o conteúdo e seus objetivos curriculares; conhecimento sobre o ensino. A esses conhecimentos nos permitimos somar a necessidade do conhecimento político, do conhecimento do contexto, da capacidade de saber definir quais são os verdadeiros pares com os quais trabalhamos e que, não necessariamente,
pertencem ao mesmo grupo de interesse. A proposta de reflexão se dá sobre a necessidade de definir quem são os nossos parceiros e intergrupos de relações no ato docente.
Ao se refletir sobre o que denominamos intergrupos, durante muito tempo fomos levados a acreditar que os nossos parceiros ocupam espaços de cargos acima da nossa esfera de poder, somos levados a pensar que os nossos parceiros estão nas coordenações, nas chefias imediatas. Contudo, podemos reverter esta reflexão e se questionar sobre: não seriam os nossos alunos os nossos verdadeiros parceiros?
O que se deve saber sobre os alunos diz respeito principalmente a seus conhecimentos e habilidades. Os professores precisam compreender como é a natureza intrínseca do ato de conhecer e como são estabelecidas as relações entre os conhecimentos prévios dos alunos e o novo conhecimento. Compreender como os alunos pensam e o que pensam auxilia no desenvolvimento de estratégias para que o processo de aprendizagem se estabeleça de forma adequada, isto é, o reconhecimento de que num processo de ensino, aprendizagem e avaliação tanto o docente como o discente aprendem e ensinam e também deveriam participar ativamente da construção da avaliação.
Os reflexos desta perspectiva levam à construção do pensamento dentro do contexto social. Isto significa que os conteúdos estudados serão vinculados ao contexto social, histórico e contemporâneo onde o aluno poderá interagir, proporcionando construções sobre a realidade de um saber social. Um dos focos que se estabelece é a possibilidade de transformações de valores e de relações que são apresentadas pelo próprio grupo social e que poderão ser modificadas. Dessa forma, procura-se estabelecer uma relação de sujeito para sujeito, as relações entre as subjetividades e as hierarquias (professor-aluno-sociedade).
Deseja-se explicitar a busca por novas compreensões da realidade, outras conexões bem como a possibilidade de se estabelecer novas relações entre saber e poder nos relacionamentos interpessoais nos meios de ensino. Estas compreensões estimulam o estudo de novas regras e formas de agrupamentos sociais que possam refletir na e por meio da educação uma forma de melhorar as possibilidades da aprendizagem. Isso só é possível se compreendermos os alunos como sujeitos que têm um poder e uma vontade resistente às nossas modelações impostas. Não funciona, como quer a governamentalidade, a partir de um estudo em relação a sujeitos sem nome. Não se trata de registrar e estudar como uma
cobaia se move em um labirinto. Existem indivíduos, contextos, racionalidades e subjetividades envolvidas nos processos da formação docente.
A necessidade de trabalhar e somar em grupo são cada vez mais prementes, inclusive em virtude da amplitude dos conhecimentos. Por isso, os trabalhos cooperativos e colaborativos ganham uma importância muito maior do que no passado recente. Neste sentido, a escola ou a universidade estarão formando pessoas que estejam preparadas para trabalhar de forma, verdadeiramente, cooperativa e colaborativa. Não se trata também de menosprezar os eventos em relação ao estabelecimento de cooperações históricas para solucionar problemas agrícolas, militares ou de qualquer outra natureza.
O que acontece na contemporaneidade é que o trabalho em grupo, cooperativo e colaborativo, organizado em uma sociedade civil pode proporcionar a condição necessária para que se consolide uma resistência em relação às propostas de disciplinamento e controle impostos pela governamentalidade. O docente e o discente deveriam se organizar em grupos de trabalho e reflexão, que por sua vez deveriam abrir espaços dentro dos currículos para se organizarem e estabelecerem estratégias de ação e reflexão nas instituições de ensino. Trata-se de um trabalho de pares que estabelecem parcerias ativas e organizadas.
São estas relações vinculadas ao exercício do biopoder, que estabelecidas, não fariam nos questionarmos se há necessidade de “levar vantagem em tudo”, e mais do que isto, uma vontade de ganhar individualmente, de “chegar em primeiro”, como sendo uma das condições únicas para o sucesso. Isso não está incluso nos conteúdos escolares e nem na universidade nos grupos onde este diálogo seria muito importante. Afinal, trata-se de estabelecer uma resistência a um meio que sugere não “perder tempo com estas conversas” em razão de se ter muito o que estudar, muito conteúdo a ser ministrado e o tempo é escasso. Como o docente se sentiria ao exercitar olhar para este discurso de uma forma diferente, crítica e pautada na hipótese de resistir a influências de uma governamentalidade que, de fato, o próprio docente não gostaria de seguir?
Sobre o conteúdo é necessário que o professor seja capaz de identificar quais são os principais conceitos que permitirão ao aluno o “desenvolvimento de suas competências e habilidades”. Os planos curriculares poderiam se basear fortemente nos conhecimentos prévios dos alunos por meio de avaliações diagnósticas com metas a serem alcançadas a partir desses saberes constituídos. O foco é a definição da perspectiva que se assume quando se estudam alguns
fenômenos culturais e políticos contemporâneos com base, por exemplo, na Filosofia da Diferença e onde o panorama da universalidade passa a ser reconfigurado e, inclusive, questionado quanto a sua possibilidade empírica. Este pode ser um dos aspectos primordiais que indicam a transversalidade do pensamento filosófico que deveria construir uma integração similar à da ciência em nossas existências.
Os conceitos científicos se imbricam em muitos campos de saber da academia, mas os saberes filosóficos foram banidos nesta construção contemporânea do “homo faber”. Pode-se citar, como exemplo, as nossas matrizes curriculares, as ações de nossos professores, a competitividade “selvagem” de um modelo educacional inspirado em valores de um tipo de modernidade e em valores neoliberais utilizados na educação, estimuladores de um individualismo radical.
Em relação ao ensino, os autores afirmam ser necessário o domínio do conhecimento específico da área em que atua integrando-o ao conhecimento pedagógico. É necessário ainda considerar as diferentes formas de ensino para atender à demanda da heterogeneidade dos grupos de alunos, variadas formas de avaliação a serem aplicadas em diferentes momentos do processo de ensino, bem como a utilização apropriada de atividades para o “manejo” de classe.
Pode-se entender o processo de ensino na sociedade, tendente à ciberculturalização, como um fenômeno dependente de artefatos tecnológicos de diversas origens, desde tecnologias orgânicas como o alimento, até as tecnologias digitais como as utilizadas nas redes de comunicação e informação. Ainda que se reconheça o potencial de integração das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs) à vida das pessoas, em geral, esta incorporação não é realizada de maneira crítica e consciente. Isto reflete nas escolhas de artefatos tecnológicos, nas formas de manuseio e nas utilizações em geral. Desta forma, a influência da tecnologia na vida das pessoas acontece de forma não consciente e nem ocorre uma apropriação de fato do artefato tecnológico, ainda que se reconheça a influência destas tecnologias no comportamento e nas subjetividades.
Este processo de inclusão dos artefatos digitais na vida pode ser analisado a partir da música, das criações tecnológicas, da medicina, das vestimentas, da alimentação, da produção intelectual, da educação e de qualquer outro aspecto da civilização, possibilitando entender o fenômeno da influência das tecnologias na população. Desta forma, as culturas que ainda estão afastadas das grandes descobertas tecnológicas são influenciadas por estes equipamentos de forma
indireta e direta como, por exemplo, as gravações televisivas realizadas com aborígenes australianos ou outras tribos que ainda vivem conforme modelos dependentes de tecnologias anteriores às digitais e detentores de uma tecnologia não eletrônica. Remédios, telefonia móvel, transportes são outros exemplos de incremento tecnológico que de alguma forma chegam a sociedades distantes dos grandes centros tecnológicos (MORIN, 1996; MAFFESOLI, 2000).
No contexto da pretendida “sociedade da conexão”, que é uma designação utilizada por autores da cibercultura, a tecnologia é um fenômeno que se alastra para todo o meio educacional, por toda a sociedade, mormente no ensino superior, o que é muito bem caracterizado nas palavras de Lemos (2002, p. 11), quando se refere à cibercultura, afirmando que “se trata de um fenômeno hegemônico, mas, não um fenômeno de maioria”. A afirmação nos parece procedente mesmo tendo-se passado mais de uma década. Trata-se de cultura e, o simples uso automático de tecnologias não nos parece suficiente para consolidar a ideia de cultura.
Daí surge a necessidade de os empresários da educação disponibilizarem para os seus alunos os computadores. Obviamente, nas universidades, nas escolas, o governo segue o mesmo caminho do empresariado, adotando uma postura que procurava colocar o professor sobre a tutela de um especialista em informática sem a devida preparação didático-metodológica. O professor, por sua vez, não se mostrava interessado em aprender a integrar os computadores a sua prática docente. Durante muitos anos, o momento de levar os alunos para a sala de informática nas escolas era também celebrado como um momento de descanso, de se “colocar as conversas em dia”, corrigir trabalhos de alunos ou simplesmente descansar a cabeça e tomar um “café com leite e bolachas”. Nas universidades, nessa mesma época, os docentes e os discentes utilizavam os computadores como ferramentas para tabulação de dados e uma ou outra simulação, mostrar algumas imagens produzidas em softwares de apresentação que estariam substituindo o retroprojetor, o projetor de dispositivos ou os “TDs” mimeografados.
Não havia somente a falta de fundamentação para a utilização dos computadores nos meios educacionais. Nos primórdios do uso das “máquinas de ensinar” dentro da educação formal das escolas, instituições de ensino e das empresas, admitia-se a possibilidade de uso do computador para facilitar os processos de ensino e aprendizagem (PAPERT, 1994). Outros autores expoentes das psicologias do saber também reconhecem as possibilidades do uso dos computadores e das grandes redes de aprendizagem. Um exemplo, data do ano de 1969 quando Piaget (1998) afirma sobre a eficiência do uso dos computadores
ainda em seus primórdios de desenvolvimento, como uma ferramenta importante para se trabalhar a aprendizagem de adultos. Isto, muito antes destas máquinas terem a popularização que têm no século XX e mormente no século XXI, quando passaram do status de ferramentas para o de artefatos tecnológicos utilizáveis para facilitar o ensino e, assim, passaram a concorrer com ações tradicionais de ensino e aprendizagem.
Sem dúvida ainda existem muitos estudos a serem empreendidos no futuro para se estabelecer as possibilidades, mudanças e ameaças geradas a partir da utilização dos artefatos digitais na educação. A perspectiva de se utilizar os computadores pessoais nas escolas e nas casas como um instrumento capaz de possibilitar uma mudança nas relações de ensino, aprendizagem e avaliação é um dos fenômenos mais interessantes pelo seu grau de alcance de informações, de geração de auto-organização, construção da ética e da autonomia (FAGUNDES, 1999).
Contudo, a ciência, apresentada de forma fundamentada, através de autores reconhecidos, seja em relação às grandes benesses do uso das tecnologias, seja em relação a seus malefícios no campo da educação transmite informações de forma a não possibilitar um espaço de reflexão crítica, nem mesmo no sentido de escolha de sua significância. É utilizado pela governância um derrame de informações em um espaço de tempo que impossibilita a apropriação e a aplicação de valores nas escolhas dos sujeitos. As práticas de disciplinamento e controle utilizadas com os docentes são, potencialmente, as mesmas que utilizamos com os alunos. Em geral, plantamos uma sobrecarga de atividades e um tempo escasso para evitar a reflexão, tudo associado à cultura do “homo faber” onde a reflexão pode representar o insucesso. Basicamente, como podemos refletir a prática eficiente imposta pela governamentalidade para manter o controle do docente é, essencialmente o mesmo que replicamos com “nossos” discentes?
Por outro lado, ainda que desvinculado das máquinas de ensinar e das tecnologias digitais aplicadas à aprendizagem, mas como um autor que estudou os processos de construção do conhecimento vinculados a interações sociais, Vigotsky (2000) nos propõe uma visão que leva a compreender a importância de se estabelecer interações para a construção e interpretação do mundo real e do meio como caminho para a aquisição do conhecimento. Pode-se inferir sobre a importância da cultura e da influência mútua entre sujeitos, entre as culturas e o meio ambiente no sentido de fornecer ao indivíduo inúmeras possibilidades de sistemas simbólicos de representação da realidade. Trata-se de um universo de
significações que permite construir a interpretação do mundo “real”. A verdade do professor agora é a verdade da rede de informações. O poder da detenção da informação agora está dividido entre a capacidade de acesso a essa fonte, a velocidade e a manutenção da conectividade.
A Filosofia tem um papel preponderante para possibilitar a retomada de algumas ideias sobre outro prisma relacionando as questões da Educação, da Comunicação e dos comportamentos esperados dos docentes e discentes frente a esses tipos de artefatos tecnológicos potencialmente transformadores. Podemos exercitar a compreensão da mobilização para se ter computadores numa escola como uma forma de acelerar os processos de ensino e aprendizagem. Ora, ensino de quê? Aprendizagem de quê?
Não temos dúvidas de que um professor, como qualquer outro trabalhador técnico deveria fundamentar suas ações profissionais em domínio do conhecimento que é uma das matérias primas de seu trabalho e, dessa forma, saber escolher entre seus instrumentos profissionais aquele que melhor pode se adequar a uma determinada situação. Nosso sujeito, o discente, é vivo, raciocina, pensa e interage com as formas propostas para que se realize ensino, aprendizagem e avaliação de maneira mais ou menos intensa. Não é como a argila do oleiro que tem na sua tensão molecular um nível de resistência máximo e mínimo, mas que com adequação aceita a forma possível. O humano pode iniciar em um nível de aceitação, se “com formar” e depois quebrar estes limites.
Como, então, um profissional docente pode imaginar que uma relação no âmbito educacional aconteça sempre a partir da mesma forma fazendo com que ele ou ela acreditem poder trabalhar a docência sempre da mesma forma? Essa mudança de movimento dos grupos pode ocorrer um número indefinido de vezes em um espaço de tempo muito curto. Não há como se agarrar a uma única forma de ação, falsamente amparada, quando muito, por uma teoria cognitiva e sequer imaginar que as fórmulas prontas de ação do docente preconizadas pela teoria irão funcionar em qualquer situação. Daí a consolidação de uma forma de docência não profissional e da manutenção das relações automatizadas.
O ser humano tem uma velocidade de transitoriedade de estados antropopsicosociais, para lembrar Morin (2010), muito maior que a argila. Logo, mudamos nossos comportamentos, pensamentos e sentimentos de forma mais ou menos lenta, mas sempre mudamos. Como ensinar esse sujeito querendo que ele responda durante anos a fio com um determinado tipo de comportamento? É
potencialmente bárbaro fazermos um jovem permanecer quieto, sentado, ouvindo assuntos que não compreende, nem percebe a utilidade e nem a importância destes temas em sua vida e tudo isso sentado a um metro de um colega na mesma situação. Um jovem que está no auge de suas transformações hormonais, mentais, emocionais, objetivas e subjetivas só responderá a “essa disciplina” na medida em que se encontre domesticado. Como podemos compreender os processos de ensino senão como um dispositivo de controle e disciplinamento com um endereço bem definido indicando para a manutenção e criação de sujeitos domesticados? Considerando que ele não é questionado sobre o seu interesse, sobre as coisas que ele já traz consigo em sua história de vida, sem perguntar sobre seus conhecimentos prévios sobre aquele assunto?
Ao mesmo tempo em que os cientistas reconhecem as heterogeneidades dos sujeitos, que sabemos precisam ser levadas em consideração, temos uma proposta de instituição uniformizadora, desde as roupas até os comportamentos, raciocínios e subjetividades. Tudo muito bem justificado. O uniforme economiza na limpeza das roupas, na segurança do próprio aluno e fundamenta outros discursos de dominação. Amanhã teremos “tornozeleiras digitais” para os alunos e liberaremos as roupas do uniforme pranteando essas ações como uma evolução positiva das formas educativas. E tudo fundamentado pela segurança do jovem. Pela manutenção da vida digna. A vida que a governamentalidade através de dispositivos de disciplinamento propõe para a sociedade. Como esse jovem poderá, de fato, ser um agente de transformação social? O docente percebe que colabora com essa instituição?
Podemos variar formas de avaliação nas instituições como desejarmos, mas dois momentos ainda são grandes baluartes do disciplinamento. Os tipos de exame para a entrada na universidade e, no segundo momento, a forma como o egresso deve demonstrar competência para um concurso ou para atuar em uma empresa com “boa qualidade” profissional. Para os desviantes ainda se sugere a marginalidade de ser “dono de seu próprio negócio” ou a “possibilidade” de uma criação genial que possa ser absorvida pelo mercado comum e dessa forma gerar um lastro financeiro suficiente para catapultar este sujeito ao status de pertencer ao grupo dominante. Dificilmente chegará ao reinado, mas potencialmente à corte.
Percebe-se que as ideias dos autores que estudam a formação docente consideram praticamente os mesmos saberes como essenciais para o processo formativo: conteúdo, pedagógico, curricular e experiencial. O que modifica de uma para outra proposta é a ênfase atribuída a cada um desses saberes e de que forma
compreendem suas inter-relações. Em relação ao saber curricular e ao saber do conteúdo na formação docente, autores como Schulman (1986) e Tardif (2002) destacam que, na maioria das vezes, são pré-definidos. Os conteúdos estudados estão intrinsecamente relacionados com a cultura e a sociedade que se almeja alcançar, como afirma Tardif (2002). Conteúdo esse que tende a atender às necessidades de um dispositivo de controle e disciplinamento, que sugere a construção de um pensamento reprodutivista e inócuo no sentido crítico. A pergunta que emerge é quem deseja uma sociedade deste ou daquele tipo e escolhe, define os conteúdos que serão estudados? Ou é o mercado que define? Para quem essa definição e essas escolhas servem?
O que se exige do licenciando é que tenha um conhecimento profundo sobre o conteúdo específico a ser ensinado. Não se nega a importância deste fato. Porém, é importante compreender “que conteúdo curricular é este que tanto se exige”. As ideias de Shulman (1986) corroboram com o que a sociedade espera de um professor. Conhecer os aspectos científicos, filosóficos e históricos dos conteúdos específicos a serem ensinados, bem como suas diversidades e seus entrelaçamentos internos e externos diante da integração com outros saberes são alguns dos princípios básicos apresentados nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Nessa perspectiva, uma ironia emerge evidentemente. Como realizar estas conexões entre o conteúdo e o social de forma significativa, crítica e reflexiva com o tempo que é dado ao professor para desenvolver todo o conteúdo em um ano ou semestre e com o tempo que a instituição lhe oferece para sistematizar filosófica e cientificamente esta ação? Qual é o tempo de um professor das matérias consideradas nobres, como por exemplo, Matemática, Português, Física, Química, Biologia e outras desse nível de status?
Nosso comportamento é também produto de um meio e da ética que utilizamos para interagir neste contexto definindo a forma de nossas conexões com o outro e com as coisas. Pode-se afirmar que na contemporaneidade, os sujeitos estão, tendencialmente, em processo de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significações e variam de uma postura coletiva para se fecharem em um processo individual.
Nossas instituições de ensino estimulam processos de competição fundamentados ou consolidados por práticas de ensino mais individualizantes e por propostas de avaliação individuais competitivas, ainda que alardeiem mensagens de cooperação e colaboração entre os grupos. Existe uma tendência evidente de oscilação entre a aceitação de valores impostos institucionalmente e a
rebelião contra as hierarquias por parte, principalmente, dos discentes.
Contudo, a rede de comunicações abre uma possibilidade de interações proporcionadas pela utilização dos computadores e dos dispositivos móveis que indicam a possibilidade de integração de meios que antes não seriam possíveis de se conectarem entre si, de trocas e de vinculações entre atores para a construção de seus conhecimentos que podem ser oriundos de diversas culturas. De alguma forma existe a possibilidade dos pares se integrarem e se comunicarem de forma síncrona ou assíncrona de longe dos muros das instituições. Não se trata de prescindir do contato pessoal e físico, mas abrir a possibilidade de um contato virtual com pessoas de culturas diferentes.
Tais possibilidades podem colocar, por exemplo, professores de um extremo e cultura peculiar do país em contato com professores de outra formação cultural deste ou de outros países, abrindo a possibilidade de trocas que enriquecem a cultura e a capacidade de acesso a novas informações e, quem sabe, até de formarem comunidades de aprendizagem. É esse o licenciando que preparamos nas nossas universidades? Preparamos um sujeito que tenha capacidade para interagir, colaborar e cooperar com seus pares e com os diferentes? Um futuro docente que compreenda a importância de construir grupos de relacionamentos com a finalidade de discutir ideias docentes, políticas e outras?
Por outro lado, considerar no plano curricular os conhecimentos prévios dos alunos mobiliza a reflexão do professor para o trabalho que integra a teoria com a prática, que possibilita uma dinamização das propostas de aula, além de promover uma reflexão sobre os conteúdos impostos pelas necessidades culturais e sociais da Universidade. Sendo assim, a visão integradora dos saberes necessários à docência colabora com o desenvolvimento de uma reflexão sobre a fragmentação desses mesmos saberes. Enquanto Tardif (2002) destaca a importância do saber experiencial na formação do professor de uma forma ampla, Darling-Hammond e Baratz-Snowden (2005) enfatizam que esse saber será adquirido quando o professor entrar em contato mais direto com o aluno. Conhecer o habitus e a forma de inculcação do conhecimento pela escola é fundamental, mas basear o ensino no processo de aprendizagem do aluno contribui para a flexibilização das aulas, para a contextualização do conhecimento e para a humanização do processo de ensino e de aprendizagem. Compreende-se como uma condição indispensável.
É interessante que o professor tenha em mente que o ensino, apesar de se basear em conteúdo, em currículo e em pedagogia, parte de um ser humano para
outro, é um processo subjetivo e de inclusão. Ambos, professores e alunos, precisam ser compreendidos como aprendizes.
Esta perspectiva de se assumir a compreensão de que aluno e professor também são conjuntamente aprendizes tem se apresentado como uma das mais importantes para a transformação da docência na contemporaneidade. Temos percebido que, apesar das grandes transformações tecnológicas da sociedade, das grandes transformações que têm ocorrido nos pensamentos e comportamentos dos sujeitos envolvidos nos processos educativos, a manutenção de uma relação entre professor e aluno pautada numa perspectiva vertical, onde os elementos de autoridade e da manutenção de um tipo de poder, que trata o aluno como sujeito inferior, não tem conseguido auxiliar na mobilização destes discentes para efetivar maior engajamento e significado em relação à aquisição de conhecimentos. Dessa forma, mantendo as relações conforme elas eram estimuladas nos séculos passados, parece-nos que a função de docente se esvazia, não possibilitando que esse profissional realize uma das características de sua profissão que é auxiliar na formação crítica e colaborativa dos alunos.
A “sociedade da informação” amplamente discutida por diversos autores (CASTELLS, 1999; DRUCKER, 1995; HARVEY, 1993; SCHAFF, 1990; LYOTARD, 1989; BECK, 1999; GIDDENS, 1999; DE MASI, 2000), revela a emergência de características específicas para a economia, para a socialização e para a educação, como por exemplo, inteligência coletiva, capital de conhecimento, criatividade, laboratórios científicos e culturais. Tais ações passam a ser compreendidas como tipos de atuações passíveis de acumulação e de serem negociadas, pois sugerem fatores de coesão baseados na cidadania, nas redes múltiplas de comunicação, no objetivo comum, na cooperação, na colaboração e na participação no grupo. Por isso, as comunidades de aprendizagem e as comunidades de prática (que aqui serão tratadas como semelhantes) seriam um dos meios para ativar estas características necessárias para as relações sociais na atualidade. Contudo, todas estas percepções podem ser utilizadas como dispositivos, armadilhas da governamentalidade, caso os atores não desenvolvam a reflexão crítica.
Para exemplificar, podemos lembrar que a maioria das comunidades tem uma tendência profundamente coercitiva e compulsória em relação a seus membros. Essas duas características tratadas como paradigmas dentro de uma comunidade podem se tornar dispositivos de disciplinamento e controle utilizados por uma governamentalidade dominante.
Em geral, a educação que se exige dos estudantes, as necessidades didáticas e metodológicas para que este tipo de educação seja realizado nas instituições traduz uma necessidade de controle que se opõe à mudança por parte dos discentes e dos docentes. Em resumo, temos um processo de realimentação espiral:
• novas abordagens e saberes emergem, mas estas abordagens não podem ser tão novas ao ponto de que possam gerar uma crítica avassaladora ao sistema instituído, precisam ser abordagens aparentemente novas, mas não revolucionárias ou subversivas;
• estas, por sua vez, sugerem a criação de novas tecnologias que devem ser absorvidas pelo mercado, gerando algum tipo de lucro;
• sugerem novas ações metodológicas e didáticas, preferencialmente não apresentando espaço para romper a inércia das bases do que existe (voltamos ao passo 1);
• e que volta a gerar novos desenvolvimentos firmemente enquadrados dentro do contexto social de manutenção dos poderes vigentes.
O ciclo espiral se concretiza e a partir de novos artefatos tecnológicos se recomeça a criar novas abordagens conformadas a uma falsa revolução profissional. Este processo espiral pode ser compreendido como um tipo de avanço tecnológico gerador de mudanças nas relações interpessoais, na forma de se fazer a educação e nos processos educativos, mas não o suficiente para mudar lógicas mais profundas do sistema imposto.
Assim, os docentes se reorganizaram para novas posturas didático-metodológicas sendo levados a incorporar novas necessidades tecnológicas em sua prática docente que, estrategicamente, precisam ser conformadas no sistema e instituição vigente. Dessa forma, novas ideias, que podem ter sido utilizadas para a construção de softwares, hardwares e condições de comunicação de rede são impostas de forma implícita ao trabalho docente. Nenhuma mobilização acontece, de fato, para mudar as regras de relação e estabelecer outra linguagem de interação entre discente e docente que envolva a apropriação crítica para a integração das tecnologias digitais na docência.
Shulman (1986) sugere que os saberes essenciais à formação docente se vinculam à apresentação, formulação e representação do conteúdo, contribuindo para a compreensão dos alunos, diante de seus elementos socioculturais. Essa
perspectiva que engloba a sociedade e a cultura infere que os conhecimentos, dos quais os docentes se apropriam, são, inevitavelmente, politicamente construídos. Talvez este autor não tenha escolhido desenvolver esta perspectiva política, a exemplo de uma ampla maioria de pensadores da área, mas oferece elementos para tal compreensão.
Novamente, temos um autor que sugere uma abordagem possível de proporcionar mobilização para outra forma de fazer docente, mas para que isso ocorra é importante que os docentes percebam que deve acontecer uma transformação na sua ação, no seu modo de pensar a relação com o discente e nas suas vinculações políticas e filosóficas. Sem que este compreenda a importância da sua transformação interior na forma de realizar a docência e que consiga trabalhar uma prática de sala de aula diferente, com base em uma relação horizontal, fundamentados no que temos observado nestas últimas décadas, não temos percebido uma transformação significativa nas estruturas das instituições de ensino e nem nas relações que se estabelecem entre os professores e alunos.
Contudo, temos consciência de que não se trata de uma transformação fácil de ser implementada dentro de um sistema de ensino pautado em relações de autoridade e profundamente dominados por uma governamentalidade e pelo mercado. Acreditamos, que este tipo de transformação deve ocorrer em pequenos grupos docentes, dentro das instituições, e que devem ser trabalhados a partir de decisões deste mesmo grupo e não de grandes medidas institucionais.
Se, o saber pedagógico que, para Tardif (2002), nasce do processo de formação docente, por meio do estudo da Ciência da Educação e dos ideais pedagógicos, então podemos fundamentar que este mesmo grupo – os docentes e discentes – que hoje garantem a governamentalidade, podem interferir nessa transmissão de valores oferecendo através de outras formas de interação uma visão mais crítica e transformadora, pautada em uma perspectiva de estudo das diferenças e desigualdades sociais e numa perspectiva política e crítica, realizada por pequenos grupos de subversão de uma estrutura dominante que está evidentemente falida e teima em existir nas instituições de ensino ancoradas em velhas e ultrapassadas formas de ação e fundamentação docente.
Reunir de forma transversal o pensamento filosófico, o artístico e o científico se apresenta como um caminho aceitável e que pode ser valorizado de forma direta ou transversal à maioria dos saberes trabalhados nas instituições desde que os docentes integrem estas perspectivas nos conteúdos abordados.
Darling-Hammond e Baratz-Snowden (2005), porém, percebem o saber pedagógico integrado ao conteúdo específico da área de ensino. De fato, o saber pedagógico e o saber do conteúdo são diferentes e precisam ser compreendidos em suas especificidades. No entanto, o professor em formação é levado a compreender cada saber isoladamente, ao mesmo tempo em que necessita compreendê-los integradamente. Os próprios docentes tendem a valorizar o saber do conteúdo em detrimento e desconsideração do saber pedagógico. Acredita-se que essa compreensão integradora possibilitaria a construção de novos saberes, rompendo com a ideia fragmentadora e isolada que ainda hoje se tem da formação docente. Para os autores é necessário inicialmente que o professor apresente problemáticas abertas com um nível de dificuldade adequado para cada grupo de alunos com o qual se pretende trabalhar. O estudo empírico é o cerne do desenvolvimento das ideias científicas e, portanto, deve se basear em concepções teóricas fundamentadas.
Antes que as soluções para as problemáticas sejam apresentadas é necessário que o professor proponha uma reflexão sobre as situações, apresente implicações para Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA) diante de uma visão integradora e fortemente vinculada às questões sociais. Estas mudanças de relações caracterizam uma das mobilizações que impulsionam a pesquisa e o estudo das utilizações do computador integrado à educação e ao cotidiano que são uma realidade crescente na sociedade e, principalmente, no meio acadêmico.
Esta vinculação necessária entre a filosofia crítica e política, a ciência específica do saber e a pedagógica, aliadas ainda, à inclusão de reflexões pautadas na arte, deve-se a um rompimento com as ordens estagnadas e “universais” assumidas pelo paradigma de compreensão da sociedade fragmentada, anteriormente adotadas pela sociedade intelectual, que se isolava entre seus muros nunca desfeitos e que seccionam os saberes e as especialidades. Hoje, as aberturas na universidade e na formação são muito mais uma tentativa de manutenção de um sistema de poder do que uma mudança de paradigma das relações, ainda que ambas as perspectivas gerem alterações de comportamento, mas não necessariamente de intenções. Isto significa que a ética, os conhecimentos prévios adquiridos pelos alunos em seus contextos, a força de realização dos discentes quando engajados em ações educativas, ou ainda, o reconhecimento teórico e prático de que tanto o docente como o discente são aprendizes nesses processos que envolvem ensino, aprendizagem e avaliação, são pouco considerados, fazendo com que as relações de poder e saber não se alterem
e, por isso, não se alterem fundamentos plantados a séculos passados na reflexão e conduta dos docentes.
Os autores citados acima defendem que os alunos devem passar da condição de simples receptores de conhecimento para a condição de investigadores, tomando o professor como detentor do conhecimento. Observa-se que o detentor do conhecimento é o juiz e executor, preservando suas funções de autoridade. Ele define o que é certo ou errado. Contudo, é importante que o aluno reflita sobre o erro para retificá-lo posteriormente, mas as resultantes de avaliações, as formas como estas são aplicadas e as definições de conteúdo, como este conteúdo é escolhido, disposto e trabalhado, definir que deve ou não ser estudado continua sendo acentuado por um sistema, que tem na instituição e no docente, sua base fundamental de execução das decisões tomadas em outro tipo de cúpula de decisão.
Nesse sentido, as propostas de trabalho científico, artístico e filosófico, quando propostas para os discentes, deveriam ser desafiantes e motivadoras, tornando-as meios para compreender melhor a explicação dada aos fenômenos, seja pelo livro texto, seja pelo professor e, principalmente, levando estes grupos de atores docentes e discentes, a refletir, dar-se tempo para a crítica e para a apropriação destes conteúdos de forma menos controlada por uma relação entre o volume de conteúdo imposto e o tempo que o docente tem para trabalhá-lo na instituição. É esse espaço de trabalho, um daqueles que nós docentes organizados devemos encontrar formas de construir sem depender de manobras institucionais ou governamentais.
O que pretendemos enfatizar se trata de uma ação do docente que leve em consideração e verticalize a sua relação com o discente, para que possa cultivar de fato os conhecimentos prévios destes discentes, de forma a utilizá-los dentro da sala de aula e também no desenvolvimento de seus conteúdos. Não se trata de desautorizar o docente de sua função, nem de reduzi-lo à hipócrita condição de mediador, que aliás tem o poder de mediar ou de interromper a ligação docente-discente, tornando esta ação um meio de manutenção do controle, já que esta pode ser uma ação do mediador quando as conexões estabelecidas não são aquelas que ele acredita como humano racional e subjetivo. Por outro lado, entender que o professor tem um trabalho técnico sob sua responsabilidade e que este trabalho envolve humanos e por isso, racionalidades e subjetividades além de contextos e percepções sociais multifacetadas, implica na capacidade de se estabelecer conexões entre os sujeitos e destes com acontecimentos.
É incontestável a percepção de que nossos jovens têm outro tipo de abordagem da sociedade, um tipo diferente de tratar a disciplina, uma relação diferente da sua construção como cidadão que se afasta da forma como uma formação de jovens no século XVIII ou XIX se construía na sociedade de disciplinamento. Minimamente, pode-se afirmar que o jovem contemporâneo explicita mais intensamente as suas aparentes resistências e as suas indisciplinas em relação àquilo que é imposto pelas instituições de educação, sem alterar as raízes destas fundações, em razão da superficialidade imposta às suas formações.
Apesar de os diálogos sobre docência trazerem uma concepção experimental, e assim, trabalharem com a essência científica da integração da teoria com a prática, muitos autores enfatizam elementos exclusivos do ensino de conteúdos e deixam de contemplar aspectos voltados para o processo de aprendizagem crítica, filosófica, política e social do aluno que é um tema atribuído a um campo de saber específico e faz o mesmo com os aspectos e as lógicas de estabelecimento curricular e, até mesmo, com os saberes pedagógicos que teoricamente deveriam fundamentar suas ações docentes. Trata-se de uma espécie de “pacto de superficialidade”. O que se percebe é que mesmo as teorias e as pesquisas tenham tido certo avanço em uma direção específica, não são suficientes para gerar uma mudança na construção epistemológica do professor, que tende a perpetuar relações de poder que foram construídas a dois ou três séculos passados.
Sabemos que o ensino não é isolado, faz parte de um contexto filosófico, social, cultural, histórico, artístico e precisa ser compreendido a partir das pessoas que fazem parte desses contextos e não unicamente de um sujeito que “domina” um conhecimento específico de uma área. A docência se constrói sobre uma coletividade e sobre um sujeito, logo é um ato coletivo e individual que deveria ser organizado em uma coletividade de docentes e não unicamente por cada docente em seu campo específico de atuação.
Não é novidade o pensamento sobre a “perda de tempo” com as disciplinas pedagógicas em cursos de Licenciatura do tipo científico e “não humano”, como a Matemática, Física, Química e assim por diante. Os licenciandos destes cursos são considerados “menores” em relação aos bacharéis, ainda que uma parte significativa destes sujeitos acabe ganhando a vida e construindo status nas licenciaturas. Sua formação de licenciando já é minada no próprio curso de forma velada, “caridosa”, afinal alguém precisa ser docente nas escolas de educação básica.
Mesmo autores consagrados como Carvalho e Gil-Pérez (2006) que defendem a necessidade de que o professor aprenda a: conhecer o conteúdo específico de trabalho; conhecer e questionar o “pensamento científico espontâneo”; adquirir conhecimentos teóricos sobre aprendizagem; criticar o ensino habitual; preparar atividades; dirigir as atividades aos alunos; avaliar; utilizar pesquisa e inovação em sala de aula e outras ações, não se percebe neste discurso uma ênfase na crítica filosófica, no pensamento político e nas mudanças de paradigma. São reprodutores críticos de um pensamento dominante que tratam os problemas abrindo um pouco mais o leque de raciocínio, mas não o suficiente para gerar empuxo a uma mudança verdadeira de paradigma que inclua relações de poder, temas curriculares, didáticas e metodologias.
Conhecer o conteúdo não se trata somente de saber os conceitos e os procedimentos a ele relacionados, mas conhecer, sobretudo os aspectos históricos, filosóficos, políticos e epistemológicos que deram origem a esse conteúdo e a seu desenvolvimento ao longo dos tempos. Trata-se, portanto, da compreensão do trabalho metodológico do cientista, do filósofo e do artista, da integração entre ciência, tecnologia, filosofia, arte e sociedade, do aprofundamento dos estudos para aquisição constante de novos conhecimentos das áreas e suas integrações interdisciplinares.
Conhecer a matéria, portanto, recai sobre questões curriculares que iniciam a partir das escolhas dos conteúdos e dão continuidade na forma como são abordados em sala de aula e nas conexões que devem ser estabelecidas entre as outras ciências e com a filosofia. Mas, conhecer os conteúdos não significa absolutamente ficar aprisionado dentro do saber específico. Trata-se também de conhecer os aspectos filosóficos, artísticos, contextuais e políticos que permeiam a discussão desta ou daquela matéria. Para os autores, é necessário que o professor, em sua formação, extrapole o conhecimento científico considerado como senso comum. Por outro lado, ressalta-se aqui o fato de o professor tomar consciência da complexidade relacionada ao ensino, pautado nos aspectos específicos do conhecimento, assim como, nos aspectos sociais e culturais impostos pelo autoritarismo da organização educacional.
A aquisição dos conhecimentos teóricos sobre aprendizagem está relacionada ao fato de o autor considerar o ensino não de forma isolada, mas vinculado ao processo de uma aprendizagem significativa dentro de pressupostos oferecidos por Ausubel, Novak e Hanesian (1980). O docente e o discente poderiam aprender,
em sua formação, a escolher situações-problema contextualizadas e interessantes para alunos de diferentes faixas etárias e de diferentes status sociais. Deveriam ainda aprender a trabalhar com formação de grupos, valorizando o caráter social na construção do conhecimento. Sendo assim, no processo de formação, o professor precisa pensar e repensar sua ação metodológica, criticando, inclusive, as ações de seus professores e colegas, além de integrar os conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos aos tecnológicos dentro de um contexto social e ambiental.
A crítica ao ensino habitual está pautada nos aspectos curriculares e pedagógicos relacionados às propostas de ensino comumente utilizados na instituição. O professor deveria em sua formação refletir também sobre a realidade que o espera fora da instituição de ensino superior. Sabe-se que a aprendizagem é um processo e o aluno precisa de tempo para que esse processo se consolide em suas estruturas cognitivas. O ensino enciclopédico, as ideias científicas baseadas no senso comum, os trabalhos experimentais quase inexistentes e a avaliação pautada na aprendizagem memorística são fatores a serem enfrentados e repensados pelo professor em formação, para que contribua com mudanças e possa mobilizar não só os alunos, mas a escola como um todo. Trata-se, para citar um único exemplo, da criação de redes de conexão.
O fenômeno de surgimento da “Sociedade da Conexão”, ainda não representa um fato que abrange a maioria, ademais, estar conectado não significa fazer conexões. Este fenômeno potencializado pelas TDICs tende a englobar um número muito grande de pessoas bastando, para tanto, consultar os índices de crescimento do uso da internet no mundo. Desde a sua implantação, sugerem que a sociedade atual está cada vez mais tentando estabelecer contato e criando, de forma caótica ou não, isto é, não linear, redes de conexão que não se submetem às formas de contrato e contato com as quais a população está acostumada a lidar no seu dia a dia, estabelecendo outros níveis de relação interpessoal.
Esta sociedade está se gerindo e rompendo com determinações e organizações que não se mostram capazes de suportar sua marcha caótica de desenvolvimento. Este tipo de contato acaba estabelecendo relacionamentos dentro de novas óticas de processos de convencimento e de vínculos interpessoais. Por isso, a necessidade evidente de se pensar outra lógica para se praticar e construir a docência é uma condição essencial. O docente fragmentado em sua abordagem de conteúdo, cego às outras relações do mundo por suas especializações e que não estabelece conexões com seus pares (docentes e discentes) está fadado a desaparecer, mesmo se a lógica da reprodução ou da resistência continuar a
dominar este cenário.
A internet e as conexões estabelecidas a partir das comunicações nos possibilitam questionar conhecimentos apresentados como absolutos e incontestes de forma muito rápida, sem reflexão, permitindo, desta forma, expor o docente a questionamentos antes impossíveis em razão da detenção do saber por este profissional. Pode-se gerar uma busca na internet sobre determinada teorização e sobre aqueles conhecimentos científicos que propagam verdades antes inquestionáveis e submetê-los a questionamentos quase ao mesmo tempo em que o professor professa sua doutrina.
Como docentes ainda encontramos argumentos que afirmam sobre a superficialidade das informações disponíveis na grande rede como se este tipo de consulta fosse sinônimo de um engano ou da falta de aprofundamento, sem dúvida, nem um pouco similar às ações de se ler fragmentos de uma obra e se fazer um discurso sobre o autor, prática bastante comum em alguns espaços universitários, tanto entre docentes como entre discentes. Este grande volume de questionamentos e o aumento de caminhos de acesso à informação geram movimentos que eram virtualmente impossíveis até alguns anos passados.
Observando este fenômeno relacional possibilitado pelas redes de comunicação, sob o prisma dos docentes e dos meios acadêmicos que detinham o poder da informação de forma inconteste, no que se refere ao domínio e distribuição destas, pode-se ter uma ideia das mudanças de relação de poder que começam a se estabelecer nos meios de ensino, aprendizagem e avaliação. As opções que temos de consulta à grande rede podem apresentar níveis diferentes de possibilidades e algumas delas são bastante rasas, de fato, mas a informação está na rede e disponível para os usuários que já dominam a garimpagem de informações.
Lembremo-nos que um dos discursos apresentados pelo meio acadêmico no grande avanço da internet nos anos 1990 e no início do século XXI foi plantar a ideia de que na internet o conhecimento era falho, mentiroso, manipulativo, indecoroso e outros adjetivos nefastos. Contudo, não se vê grande diferença para o fato de colocarmos o domínio do conhecimento na mão de um único sujeito e de disponibilizá-lo a pessoas diversas e de profundidades de compreensão diferentes. De fato, não há como acreditar que esta prática tradicional garanta profundidade ou certeza.
Nessa nova fase, o hábito da pesquisa é um aspecto primordial a ser
trabalhado constantemente com o professor em sua formação. Se considerarmos uma tarefa de necessidade formativa de primeira ordem, então, a ênfase na pesquisa deve ser construída pelos docentes de qualquer nível e em todos os espaços da educação. É importante que o professor aprenda a pesquisar não só os conteúdos científicos específicos, mas também os conteúdos relacionados ao processo de ensino, aprendizagem e avaliação, aos aspectos curriculares, aos fundamentos filosóficos e artísticos entre outros, deste ou daquele conhecimento.
É necessário ainda que o professor compreenda não só os resultados obtidos, mas também o processo metodológico utilizado nas pesquisas. Dessa forma, o professor se aproxima da realidade do fazer científico, filosófico e artístico, de suas peculiaridades metodológicas em quaisquer uma destas grandes áreas do saber e pode utilizar os resultados como matéria-prima para desenvolver sequências didáticas contextualizadas e atualizadas.
Shulman (1986) ressalta sobre a necessidade de se estabelecer entrelaçamentos internos e externos com outros saberes, destacando a necessidade mínima da implementação de um modelo epistemológico de construção do conhecimento inspirado na interdisciplinaridade. O professor deve então ser capaz de compreender, não só a ciência, a filosofia, as artes e as humanidades em geral do ponto de vista histórico, filosófico, epistemológico, científico, mas também, compreendê-la do ponto de vista social, cultural e tecnológico. De reconhecer a necessidade de estabelecer dialogo com seus pares detentores destes outros saberes.
Admitindo-se a necessidade de entrelaçamento entre discente e docente é de se esperar que ambos possam construir aprendizagens, ambos necessitam sistematiza-las de forma consciente. Essa sistematização é um dos elementos de consolidação da aprendizagem. Quando se trata dos aspectos pedagógicos, os autores se encontram em sintonia e se pautam na ênfase do estudo teórico-prático sobre ensino, aprendizagem e avaliação.
Enquanto Carvalho e Gil-Pérez (2006) ressaltam a importância da compreensão dos processos de aprendizagem do aluno que possibilite ao professor fazer escolhas conscientes que promovam um ensino contextualizado e adequado às características dos alunos, Darling-Hammond e Baratz-Snowden (2005) acrescentam que o professor deve, em sua prática docente, buscar os conhecimentos prévios dos alunos. Essa ideia corrobora, sobretudo, com o saber experiencial destacado por Tardif (2002) como um saber adquirido na prática
docente. A integração dos estudos teóricos aos conhecimentos práticos, tanto dos docentes como dos discentes pode trazer implicações para seu próprio processo de aprendizagem como docente. Refletir sobre esses processos de aprendizagem pode contribuir para um ensino diferenciado, flexível, dinâmico e humanizado, evitando, dessa forma, a fragmentação dos saberes e das relações e a aceitação tácita de não realizar conexões entre saberes diversos.
Por outro lado, cada um destes grupos culturais tende a menosprezar a outra parte (LIMA, 2004; HARVEY, 1993). Neste sentido, as relações entre discentes e docentes, formadas dentro de limites definidos, representam, potencialmente, a possibilidade de consolidar um novo tipo de relacionamento onde as relações interpessoais se tornem mais importantes, ao mesmo tempo em que o indivíduo perceba sua absorção na coletividade em que se insere, o que não representa a anulação de sua individualidade.
Não se pode mais pensar na supremacia de algumas áreas de saber sobre outras, de querer valorizar as áreas científicas em detrimento das artísticas e filosóficas. Em uma perspectiva, estas características do docente e do discente são uma visão de conjunto, construídas por “saberes integrados” e não por uma única visão que consolida relações de hierarquia que são engendradas por uma política dominante e externa a estes grupos.
O que estamos tratando aqui é da importância de que na sua formação, o professor tenha condições de perceber a necessidade de estabelecer parcerias com seus pares, docentes ou discentes, de considerar os conhecimentos que estes podem trazer para a compreensão de informações e que, principalmente, o docente guarde espaços dentro de suas “certezas” intelectuais e práticas para considerar aquilo que o discente pode entregar nesse processo a partir de seus contextos vivenciados. Em certo sentido, o surgimento e consolidação das perspectivas etnográficas demonstram que a sociedade está se encaminhando para uma ação social mais biocêntrica ou ecocêntrica, diferindo dos paradigmas antigos que propunham uma ação mais arbitrária e predatória. Contudo, qual é o interesse dos mecanismos de controle e disciplinamento nestas condições emergentes?
Não se sabe mais qual é o espaço para as narrativas generalistas e universais praticadas pelos dispositivos e armadilhas da governamentalidade, nem para as certezas ou incertezas. Questiona-se a possibilidade de integração e interseção das culturas “academicizadas” ou “intelectualizadas” com uma cultura de massa e popularizada. Todavia, todos estes opostos são imbricados de uma forma de
biopoder que torna difícil de serem agregados. Neste sentido, nos parece que existe uma mobilização dos aparelhos de controle e disciplinamento que agora irão garantir sua condição de determinantes a partir da falta ou incompreensão das comunicações entre os grupos próximos. Essa proximidade entre os grupos que, na ótica da governamentalidade, precisam ser mantidos fragmentados, agrupados com limitações impostas externamente, como, por exemplo, os volumes de conteúdos, horários, remuneração, deslocamento e outros que impedem o trabalho cotidiano conjunto dos docentes, mantendo-os desconectados, parece-nos ser a manobra mais esperada nesse momento.
Dessa forma, é imperativo para o controle e o disciplinamento que docentes e discentes estejam em lados diferentes e se compreendam como opositores dentro da instituição de ensino, bem como os professores de campos diferentes de saber, a exemplo, as áreas científicas e as filosóficas. Ocorre o mesmo com outras profissões e outras faculdades. Essa fragmentação não é necessariamente mobilizada pelo sujeito explícito do processo, mas por sujeitos ocultos. Podemos construir escolas, ter alunos, mas não damos as condições para uma conexão verdadeira entre os dois primeiros. O mesmo ocorre na saúde, na justiça, nas leis e em muitos outros movimentos. Essa condição gera tensão entre grupos que poderiam formar conexões importantes para a mudança da sociedade. Trata-se de uma estratégia de esfacelamento dos grupos.
Ocorre a quebra de determinadas regras que rigidamente asseguravam um ritmo bem demarcado para as expectativas sociais, em que as pessoas e os objetos respondiam de forma bem determinada a estímulos e suas reações eram praticamente aquelas esperadas, onde os comportamentos poderiam ser previstos e até antecipados. Essas promessas de comportamento e a identidade pessoal já não seduzem mais o sujeito crítico, mas esta flexibilidade para a manutenção do poder, que tende a se tornar mais fluida, mais “aberta ao exercício da vontade e da imaginação” (HARVEY, 1993), fazendo com que as respostas aos estímulos nem sempre sejam aquelas esperadas pelos estimuladores. Representam a nova forma de controle e disciplinamento das subjetividades. A liberdade estimulada, a proatividade, a capacidade de construir autonomia se limitam àquilo que a sociedade vai considerar como passível de sucesso ou insucesso.
Passamos, então, para uma perspectiva mais subjetiva e pouco previsível, mas ainda controlada. Este é um dos motivos pelos quais a flexibilidade do exercício do poder se instala, mantendo as relações sob controle de uma governamentalidade neoliberal. Flexibiliza-se sem se permitir uma ruptura de paradigma. O preço da
rebelião pode ser o sucesso ou o fracasso desse sujeito à sociedade de mercado.