Na manhã seguinte, quando vai procurá-la ao quarto, a Madre Fabretti encontra Bakhita adormecida, enovelada na cama de Mimmina. Contempla aquela adulta negra na cama da criança branca e vê a carga de tudo o que ignora, o passado de antes da escravidão, a infância. E a solidão. A aliada eterna. O seu rosto está danificado, não apresenta nem libertação nem exaltação, apenas a fadiga e as lágrimas. É uma mãe desapossada. Uma criança esgotada e culpada.

Stefano não assistiu ao processo. Deixou a Signora Michieli bater-se e reivindicar. Era o seu intendente e não queria vê-la como todos a viram: uma mulher cruel que se julgava proprietária de outra. Ele conhece-a e sabe que Maria Michieli é uma mãe que tem medo de ficar sozinha com a filha. Tem medo de a fazer morrer. Medo de só carregar a morte dos filhos. Depois do processo, a criança adoeceu e ela ficou atormentada, sem sono nem apetite. Certamente, também nunca se restabelecerá totalmente da ferida. Esse rapto no parlatório. Ouviu a maldição da mãe «Ingrata! Ingrata!» e os assobios da multidão que as aguardava diante do instituto e as seguiu por Veneza, insultando a mãe, lamentando a criança, e o que gritavam uns aos outros nas ruas estriadas de sombras e de luzes: «A Moretta é livre! A Moretta é livre! Oh Deus! Jesus Maria José!», antes de caírem de joelhos, de mãos postas e olhos virados para o céu. Mimmina conservará o pânico da multidão e esse sentimento confuso pela mãe, um amor manchado de inquietação. O amor da mãe como uma ameaça de morte.

Dois dias depois do processo, Stefano, Clementina e os cinco filhos estão no instituto. Perante o rosto de sofrimento da sua irmãzinha Moretta, decidem sair com ela para dar um passeio ao longo da laguna, mas mal deram volta à esquina do instituto quando decidem regressar. Sair com Bakhita em Veneza tornou-se um pesadelo de que já deveriam ter suspeitado: desde a véspera, os habitantes de Dorsoduro batem à porta do instituto com flores, pequenos presentes, querem mostrar o seu amor à escrava libertada, querem vê-la e, se possível, tocar-lhe.

Está muito frio nesse início de dezembro. Juntam-se em volta da lareira acesa no parlatório sombrio, no qual é difícil imaginar que alguns dias antes houve tantas celebridades. Chiara e Mélia, a um sinal do pai, não deixam a Moretta, sobem-lhe para os joelhos, tentam ocupar o vazio deixado por Mimmina, mas, pelo contrário, sublinham-no, porque não estão moldadas desde a infância ao corpo de Bakhita, não sabem como aquelas duas se ajustavam naturalmente, sem pensar e mesmo sem o saber, esquecendo que estavam enlaçadas tal como nos esquecemos de que respiramos ou de que pomos um pé diante do outro para andar. Stefano gostava tanto que Bakhita reencontrasse a alegria. Toma-lhe as mãos nas suas:

– Agora, irmãzinha, és livre!

– Sim, babbo!

– Já não deves estar triste.

– Não.

– Vais ser filha de Deus e sempre, sempre, a tua alegria será imensa.

– Imensa, eu sei.

– E és minha filha, minha, também! Não sou Deus, mas bem…

– A nossa casa será sempre a tua casa – diz Clementina.

– Sim! Os nossos filhos são teus irmãos e irmãs e, quando eu morrer, a minha herança será de todos vós, o que é meu é teu. Nunca terás necessidades, nunca estarás só, não estejas triste. Hem? Compreendes o que te digo?

Compreende e tem medo. Vai tornar-se realmente filha de Deus? Esse amor «imenso», esse amor pelo dia que nasce e o dia que termina, esse amor por tudo o que vive, por tudo o que existe, esse amor… Não é suportável. Cavaram-lhe o peito até ao coração, arrancaram-lho e agora ela sabe o que o enchia. O que protegia, o que guardava para não morrer dele. A mãe. Não a Madonna, não, a sua mãe, essa mulher sentada no tronco de um embondeiro derrubado. Sente a falta dela. É de uma simplicidade cruel. Não conhece as palavras, mas sabe que essa falta não tem nome. Vai tornar-se filha de Deus e pergunta-se se n’Ele, que contém tudo, haverá um pouco da mãe. O que se reaviva, a violência desse sentimento brutal, prega-a ao solo e sabe que eles têm razão, está por terra quando deveria estar alegre. Vai tornar-se filha d’Aquele a quem chama «el Paron», e que não será apenas o Patrão, mas também o Perdão. Perdão para a desobediência. Perdão para a sua mãe. Perdão para Kishmet, para Binah, para todos os escravos. Perdão pelo amor perdido. Sorri a Stefano porque não compreende tudo o que ele lhe disse, mas é tão belo com aquela ternura carente, a presença desajeitada e, para lhe agradar, diz:

– Compreendo tudo, babbo.

– Ah! Eu sabia que tinhas feito grandes progressos em veneziano. Dizia-lhes: com as irmãs, vai fazer progressos fulgurantes, vai saber contar e ler e escrever e…

– Vê-la?

– Mas quem?

– A Mimmina.

Stefano é apanhado desprevenido. Faz sinal a Chiara e Mélia para se afastarem.

– Mas que estão a fazer? Sufocam-na com as vossas carícias e os vossos beijos, ela já não consegue respirar, a pobre. E é claro que a vi. Está muito bem.

– Triste?

– Não. Está muito bem, já te disse.

– Chora?

– Eh, não! Está feliz por ti! Alegra-se, como todos nós! Estamos todos na alegria, não é?

– Stefano, para.

Clementina fixa os olhos no fundo dos de Bakhita e fala-lhe suavemente, como se o tom pudesse aliviar o peso da notícia:

– A Mimmina partiu. A Mimmina está em Suakin.

Bakhita compreende. Trocaram os seus países. Deram as terras uma à outra. Vê tudo: o comboio, o barco, as escalas, o Mar Vermelho, a ilha de Suakin, as costas de África na bruma, e o hotel. Os homens. As crianças ao portão, enxotadas pelo jardineiro. E Mimmina que brinca perto da fonte onde aprendeu a andar.

– Está bem.

Tem confiança em Mimmina, conhece-a. Não pensa que esteja sempre a sorrir, sabe que chora e que chama por ela porque a ouve. Mas sabe também que essa menina livre e branca, rica e curiosa em relação a tudo, divertida e terna, vai lançar uma bela luz sobre a terra mártir do Sudão. E quem sabe? Talvez um dia, sem desconfiar, venha a encontrar a sua irmã. Ou Binah. Não se sabe. Nunca se sabe onde a vida nos leva.