CAPÍTULO
8
N
ão sabia o que fazer.
Depois de limpar a porcaria do chão, fiz uma nova porção de «Creme Blackthorn para Alívio de Queimaduras», como tinha prometido. Entretanto, Tom e eu fomos para o telhado, onde ficámos sentados na borda, com as pernas a balançar e as mãos cheias de milho. Demos metade do milho à Bridget, que saltitava entre os nossos ombros. O resto atirámos dali, tentando acertar nas perucas dos cavalheiros que passavam lá em baixo. Quando finalmente Tom teve de ir para casa, eu aninhei-me ao lado da grande lareira da loja com o livro de mestre Galileu, e fiquei à espera que o meu mestre voltasse.
Devo ter adormecido, porque acordei com o barulho dos pregões das seis horas da manhã ainda sentado na cadeira. O fogo estava apagado há muito tempo, e senti frio até aos ossos. Doíam-me as costas como se tivesse passado a noite na masmorra menos confortável da Torre de Londres.
Preparei a botica para o dia, começando por varrer a lama seca acumulada no dia anterior. Verifiquei as reservas que havia e tomei nota das coisas que era preciso comprar no mercado nessa segunda-feira. Em seguida, subi ao telhado para dar de comer aos pombos. Quando desci, uma coisa chamou-me a atenção: com tanta gente fora de casa no feriado, as ruas tinham ficado cobertas de lama, mas não havia sinal de lama nos degraus da entrada.
A porta do quarto de mestre Benedict estava fechada.
– Mestre? – chamei.
Não houve resposta.
Bati devagarinho.
– Mestre? Já é de manhã.
Continuei sem resposta.
Normalmente, eu tê-lo-ia deixado em paz, mas não era nada habitual mestre Benedict perder uma hora a dormir num dia de trabalho. Entrei. O quarto estava vazio. A cama ainda estava por abir.
Ele não tinha voltado.
Bati à porta de um vizinho, o pasteleiro Sinclair, e de outro vizinho, o alfaiate Grobham, mas nenhum dos mestres nem dos aprendizes o tinha visto. Os clientes da taberna Dedo a Menos, que ficava do outro lado da rua e onde às vezes jantávamos, também não o tinham visto.
A preocupação deu-me volta ao estômago. Lembrei-me do corpo que Tom e eu tínhamos visto no dia anterior, queimado e enterrado debaixo do anjo do jardim particular, e só depois de me controlar é que me lembrei que tinha visto o meu mestre depois de aquele pobre homem ter sido assassinado.
Uma voz arrancou-me destes terríveis pensamentos.
– Rapaz! Ei, rapaz!
Diante da nossa botica, ainda fechada, uma mulher gorducha num vestido verde desbotado agitava para mim um pote de cerâmica. Reconheci-a: era Margaret Wills, uma das empregadas do barão Cobley.
– Preciso de um novo fornecimento! – gritou ela.
Xarope de raiz de ipeca, um vomitivo. Atravessei a rua, a resmungar entre dentes. Eu tinha mais com que me preocupar do que os vómitos do barão Cobley.
Deixei-a entrar na loja, vesti o avental azul e enchi-lhe o pote. Anotei o nome da substância no livro de registos e acrescentei o preço à conta do barão, que já estava do tamanho de uma baleia. Eu queria fechar a loja e correr à procura do mestre, mas, assim que Margaret saiu, chegou o taberneiro Francis com uma erupção no traseiro. Tratei dele (da receita dele, digo eu, porque teria de ser ele a arranjar-se para aplicar a pomada em si mesmo). Depois chegou Jonathan Tanner, e antes que eu percebesse a botica estava cheia de gente.
E então finalmente, finalmente, finalmente, mestre Benedict entrou, pelo lado da oficina.
Senti um grande alívio, como se me tirassem das costas um saco cheio de chumbo. Ele estava bem. Na verdade, em vez de abatido e com olheiras, parecia feliz. Não tive oportunidade de lhe falar, porque logo que entrou na loja reuniu-se um enxame de pessoas à volta dele. Sorriu-me com ar cansado e começou a trabalhar.
Por volta da hora de almoço, já tínhamos reduzido a clientela a cinco pessoas; eu tratava de William Fitz e do seu ouvido, que tinha um corrimento, enquanto mestre Benedict lidava com a mão inchada de Lady Brent e mais três clientes esperavam a vez de serem atendidos, antes de podermos fazer um intervalo. Eu tinha acabado de registar a compra do Sr. Fitz quando Lady Brent disse:
– Está a ouvir-me, Sr. Blackthorn?
O meu mestre, em pé atrás do balcão, olhava para a rua como se a mulher não estivesse ali. Tentei ver para onde estava a olhar, mas um cliente tapava a janela, um rapaz corpulento de cerca de dezasseis anos, de avental azul, que se ria do urso no canto, que ainda não tinha sido consertado.
– Sr. Blackthorn? – disse ela outra vez.
Ele pestanejou.
– Um instante, minha senhora. Preciso de verificar o que tenho em reserva.
Quando voltou, um minuto depois, estava pálido.
– Então? – disse Lady Brent. – O senhor pode preparar o produto?
Mestre Benedict passou uma mão pela testa.
– Sim, claro. Estará pronto na segunda-feira.
Realmente ele não parecia nada bem. Tentei fitá-lo nos olhos, mas ele mal reparava em mim. Virou-se, à procura de qualquer coisa nas prateleiras. De seguida, foi até ao livro de registos que estava no balcão.
– Christopher! – gritou.
Dei um salto.
– Venha cá! – ordenou.
Contornei o balcão. O mestre já não parecia doente, mas sim furioso. Apontou para o livro com o dedo magro e ossudo.
– Atendeu o barão Cobley essa manhã?
– Sim, mestre – gaguejei. – Ou antes, a criada dele.
– E eu não lhe pedi já, duas vezes, para cobrar a conta dele quando ela viesse?
Será que tinha pedido?
– Sss… sinto muito, mestre, não me lembro…
Bateu-me.
Acertou-me de lado no queixo, com uma bofetada de mão aberta tão forte que soou como um trovão. Perdi o equilíbrio e bati na prateleira; o impacto foi tal que fez balançar os potes.
– Você é um inútil! – gritou ele.
Fiquei ali, curvado sobre a madeira. Ardia-me a face, mas a dor que sentia por dentro era ainda maior. Os olhos de todos os clientes estavam postos em mim. Lady Brent observava-me com curiosidade e o rapaz na porta parecia divertido com o espetáculo que acabava de presenciar atrás do balcão.
– Faça alguma coisa certa uma vez na vida – disse mestre Benedict, tirando do cofre um punhado de tostões e alguns xelins já gastos. – Vá ao mercado e compre todo o sódio que tiverem. E não volte até ter conseguido.
– Mas… – O olhar dele, furioso, interrompeu-me. Baixei a cabeça. – Sim, mestre.
– E traga-me o xarope de Lady Brent. E sumo de limão.
Trouxe os jarros que ele pediu. Ele resmungou.
– Peço desculpa pelo meu aprendiz, Lady Brent – disse ele.
– Não é necessário, Sr. Blackthorn – respondeu ela. – Os empregados precisam de ser corrigidos com rigor. O meu marido comprou uma vara de bambu do Oriente exatamente para isso.
– E também comprou um elefante? Seria necessário um coice de elefante para corrigir este rapaz.
Ela riu-se. Ele também.
Eu saí a correr.
Nem sabia para onde ia. Estava tão cego que quase atropelei um rapaz mais velho que tinha o dobro do tamanho de Tom e que jogava aos dados com um amigo de cabelo comprido na rua por trás da nossa casa. Murmurei um pedido de desculpas e desviei-me, ouvindo a cada passo o meu coração a bater.
Ele tinha-me batido.
Doía-me a cara. A mão também me doía. Só quando olhei para baixo é que percebi que doía porque eu apertava as moedas que ele me tinha dado com tanta força que elas tinham-me cortado a pele.
Não compreendia. Podia jurar pela minha vida que ele nunca me tinha pedido para cobrar a conta do barão Cobley. E mandar-me buscar sódio… O sódio só chega ao mercado às quartas-feiras. Não ia encontrar sódio à venda naquele dia.
Algo estava errado. Já tinha visto mestre Benedict furioso, já o tinha enfurecido antes, mas nunca daquela maneira. Queria voltar, conversar com ele, pedir que me dissesse o que eu tinha feito, mas ele tinha-me dito para não voltar.
E tinha-me batido.
Enxuguei os olhos à manga da camisa.
O mercado estava cheio. Os comerciantes amontoados anunciavam as mercadorias, aos gritos, a regatear, a discutir. Fui a todas as bancas, e em todas recebi a mesma resposta.
– Hoje não há, rapaz. Tente na quarta-feira.
Procurei durante horas. Até considerei a ideia de ir a outra botica, mas eles levariam muito caro, e mestre Benedict não ia gostar disso. Por fim, desisti e voltei para casa enquanto ainda era dia. Estava com medo do que o mestre iria dizer, mas precisava de saber o que tinha acontecido. E queria falar com ele, dizer que lamentava muito, fazer com que as coisas voltassem a ser como dantes.
Entrei pela oficina, pois sentia muito medo de aparecer na loja de mãos vazias. Achei estranho, mas a porta das traseiras não estava trancada e as venezianas das janelas estavam fechadas. No forno, as brasas extinguiam-se e deitavam pouca luz, mas ainda era possível ver alguma coisa. Estranhei quando vi a pinça da lareira deixada nas cinzas. Fui tirá-la, mas afastei-me de repelão com uma praga.
Pus os dedos na boca. A pinça tinha-me queimado, devia estar no lume há muito tempo.
Um pequeno pote de vidro estava aberto por cima do forno, e a tampa estava no chão. Espalhadas por ali havia um punhado de pequenas sementes pretas parecidas com feijões. Peguei numa e rebolei-a entre os dedos. Tinha um leve cheiro a tomate podre.
A erva do diabo. A primeira receita que mestre Benedict me tinha ensinado. Em pequenas doses, ajudava pacientes com asma. Em doses maiores, transformava-se num veneno letal. Porque teriam deixado o pote aberto?
Não ouvia vozes do lado da loja. A luz no corredor era tão fraca como na oficina. Mais uma vez, estranhei. Ainda faltava um par de horas para o pôr do Sol. A loja não devia estar em silêncio.
Andei em direção à porta. Os meus pés ficaram encharcados. Levantei um pé e vi uma poça no chão. Da poça saíam rastos, longos e escuros, como se tivessem arrastado uma coisa pesada.
Segui essas marcas. As janelas da loja estavam fechadas e o lume apagado. A porta da frente da botica estava trancada com o ferrolho. O rasto molhado encharcava as tábuas do chão, que estavam vermelhas. Um cheiro quente e metálico enchia aquela divisão.
E foi só então que, no meio de tudo aquilo, vi o meu mestre.
Tinham-no deixado apoiado na parte da frente do balcão, com os pulsos e os tornozelos amarrados com cordas. A camisa estava rasgada. O abdómen também fora cortado. Os olhos estavam abertos, e ele olhava para mim, mas não me via. E nunca, nunca mais ele voltaria a ver-me.