CAPÍTULO
18 

O
u… para falar verdade, duas mentirinhas. 

Enfiando a cabeça pela porta, vi Oswyn que se afastava. Parou nos degraus do pátio para falar com o escriturário que me deixara entrar. O homem concordou com um gesto de cabeça e subiu a escada. Oswyn saiu pela entrada principal. Esperei enquanto pude aguentar (o que quer dizer… quase tempo nenhum) e corri atrás dele em direção à rua. 

Esqueci o que tinha prometido a Oswyn. As ruas podiam não ser seguras, mas a sede parecia-me ainda pior. Eu não queria acreditar que tinha ido até lá sem perceber que Stubb podia aparecer por ali, mesmo num domingo. «Ele também é boticário», pensei, irritado comigo mesmo. «Ele tem mais direito de entrar na sede do que eu.» 

Além disso, ainda era de manhã. Eu tinha pelo menos seis horas antes de me encontrar com Sir Edward. E ainda tinha um trabalho a fazer. 

 

Os Bailey encontraram-me à porta de casa quando voltavam da igreja. As meninas ficaram felizes de me ver, e as mais novas rodopiaram para mostrar os seus vestidinhos de domingo, mas a mãe de Tom não estava nada satisfeita. 

– Não sei no que o seu mestre andava metido, Christopher, mas, se você ficar nesta casa, terá de ir à missa como um bom cristão. 

– Desculpe-me, Sra. Bailey – respondi. – Precisei de me encontrar com os mestres na sede da guilda. Eu vou à missa ao meio-dia na Igreja de S. Pedro. Tom poderia vir comigo? 

Ela ficou satisfeita com essa ideia. 

– É claro! Uma segunda dose da sabedoria de Deus vai fazer-lhe bem. 

Tom franziu a testa. Quando ficámos sós, disse: 

– Não quero uma segunda dose de sabedoria. O reverendo Stills é tão chato. 

– Nós não vamos à missa – expliquei, pedindo desculpa em silêncio, na esperança de que o Senhor compreendesse. – Vamos voltar a casa de mestre Hugh. 

 

A casa ainda estava fechada e trancada como no dia anterior. Eu tinha uma esperança de que ele tivesse voltado, mas na verdade não pensava que isso tivesse acontecido. 

– Então, porque estamos aqui? – perguntou Tom. 

– Precisamos de revistar a casa dele – respondi. 

– Mas não há ninguém… – Parou e cruzou os braços. – Christopher, nós não vamos arrombar a porta. 

– Seria arrombar se tivéssemos a chave? 

– Seria, sim! – exclamou Tom, franzindo a testa. – Espera aí! Como é que temos a chave? 

Nós não tínhamos a chave, mas estávamos prestes a tê-la. Levei-o até à parte de trás da casa, onde os tijolos da chaminé também cobriam um lado da parede. Examineia-a passando os dedos pelos tijolos até encontrar uma coisa. 

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Exatamente como o meu mestre fazia. Peguei na chave que estava por trás do tijolo e mostrei-a a Tom, triunfante. 

Ele não pareceu nada satisfeito. 

– E se Mestre Hugh voltar a casa? – perguntou. 

– Acho que ele saiu da cidade. 

– Achas? E se ele… – Tom hesitou, e arregalou os olhos. – Ah, não. Não, não. Não, não, não. 

– Acalma-te – disse eu. – Ele não está por aqui. Tenho a certeza. 

Bem… eu tinha quase a certeza. Era possível que Hugh tivesse sido assassinado, mas eu não achava que isso tivesse acontecido. Os assassinos do Culto do Arcanjo queriam dar nas vistas. Como se quisessem que todos vissem o que eles tinham feito. Se tivessem matado Hugh, teriam deixado um sinal macabro do seu ato, como tinham feito com todos os outros. 

Pelo menos era assim que eu pensava. Por mais que o tentasse esconder, eu sentia tanto medo como Tom. Não queria encontrar outro cadáver. Eu… não podia. Mas não tinha escolha. 

Arrastei Tom até à porta de trás. Tive de me arrastar também. 

 

A casa estava às escuras. Raios de sol atravessavam as venezianas das janelas, deixando entrar alguma luz que nos permitia ver lá dentro. Não havia divisões separadas no rés do chão, como em nossa casa, era apenas um espaço comprido a abarrotar de coisas e que funcionava como oficina de mestre Hugh. 

A casa não tinha sido assaltada. E, graças ao Menino Jesus, não havia nenhum corpo ensanguentado para descobrir. Fora isso, a disposição da oficina era exatamente como a de mestre Benedict, até o forno em forma de cebola no canto. Pensei no futuro com que tinha sonhado, quando pensava vir a ter a minha própria botica. É claro que a disporia da mesma maneira. «Se eu ainda tivesse um futuro», recordei a mim mesmo. 

Ninguém tinha estado ali a trabalhar há bastante tempo. Tanto a lareira como o forno estavam frios como pedra. 

– O que procuramos nós? – perguntou Tom. 

– O «Hugh quarto» – disse, pegando na página arrancada do livro, que trazia debaixo do cinturão. – Como diz a mensagem. 

– Quarto quê? 

Eu também não sabia. Era óbvio que mestre Benedict esperava que eu descobrisse a resposta, mas ele era um génio nessas coisas.
E por vezes esquecia-se de que os outros (mais especificamente, eu) não eram tão bons como ele a decifrar enigmas. Pior ainda, a mente dele funcionava de um modo estranho. Eu estava à espera que, uma vez dentro da casa, a solução viesse até mim, mas, a não ser pela estranha sensação de que já ali estivera antes, tudo o que eu podia ver era uma velha oficina.
 

Como nada surgiu diante de mim, subimos a escada. No primeiro andar, ficava a salinha de estar da mulher de Hugh. Havia também uma cozinha, uma despensa com alguns mantimentos e uma sala de jantar. Sobre a mesa, estava uma única tigela com restos endurecidos de um cozido e a colher caída no fundo. Havia também um pedacinho de vela, com restos de cera roxa derretida sobre a madeira polida. 

O segundo andar estava dividido em três quartos e uma sala de costura. Dois quartos estavam cheios de bonecas, roupas e enfeites femininos; certamente eram das filhas. O outro quarto era pequeno e simples e parecia pertencer à empregada da Sra. Coggshall. Não conseguia imaginar que encontraria ali o que o meu mestre queria que eu descobrisse. 

Havia mais dois quartos no último andar. Um deles não era tão feminino como os quartos do andar de baixo, mas tinha a mesma quantidade de roupas de mulher e uma cama com um dossel de veludo verde-água. O outro quarto era evidentemente de Hugh. 

Como acontecia com a oficina, esta divisão tinha uma disposição quase idêntica ao quarto de mestre Benedict. Cama simples, mesa de apoio e outra mesa perto da janela, coberta de papéis. A mobília até parecia ter sido feita pelo mesmo marceneiro. E também ali pilhas de livros elevavam-se como árvores a partir do chão, mas em muito menor número. 

Os lençóis estavam amarrotados. No chão, perto de uma pilha oscilante de livros, estava o resto de um pão. Bati-lhe com a unha e estava duro que nem pedra. 

– Há dias que ninguém vem aqui – disse Tom, observando os papéis por cima da mesa. – Vamos ter de examinar isto tudo? 

Realmente parecia um bom sítio por onde começar. Sentei-me à mesa e comecei a mexer nos papéis de Hugh. Tom revistava as roupas guardadas no armário, voltando-lhes os bolsos. 

Havia muitas anotações, receitas e ideias sobre ervas e misturas em geral. Em busca do «Hugh quarto», examinei a quarta página, a quarta linha de cada página, a quarta palavra. Nada parecia ser promissor. Tinha dificuldade em concentrar-me, também. O cubo no meu bolso fazia pressão na perna e, embora eu gostasse de o usar, as costuras do cinturão de boticário arranhavam-me a cintura. Era feito para usar por fora, e não escondido junto à pele. Retirei-o e pu-lo em cima da cama. 

Desde a noite anterior que Tom tinha tantos motivos como eu para gostar do cinturão. 

– Isto é realmente impressionante – disse ele, e sentou-se no chão com as pernas abertas, como uma criança, enquanto examinava os frascos um a um. O estômago dele fazia-se ouvir como um tigre irritado. – Suponho que nada aqui se pode comer – disse ele, com ar de pouca esperança. 

– Isso é comida – disse eu, apontando para o frasco que ele segurava. – Um género de comida. Óleo de rícino. 

Tom fez uma careta. 

– Faz-me diarreia. 

– É para isso que serve – expliquei, colocando de lado os papéis de Hugh e olhando para a página arrancada do livro de registos. – Tens raiz de ipeca ao lado do óleo de rícino, se preferires. Faz a comida sair pelo outro lado. 

– Se estás a tentar tirar-me o apetite, não vais conseguir. 

Eu também estava com fome. Tinha saído da casa de Tom tão cedo que nem tive oportunidade de tomar café de manhã e agora também tínhamos perdido o almoço. Pensei em assaltar a despensa de Hugh, mas obriguei-me a ficar à mesa, a ler a página do livro de registos vezes seguidas. Então, percebi que ainda não tínhamos decifrado toda a mensagem. Em especial, não tínhamos prestado atenção às palavras «vera.baixo» na segunda linha. Mestre Benedict não teria escrito aquilo sem ter um motivo. Com certeza que essas palavras também faziam parte da pista. 

A questão era como decifrá-las. O ponto final podia ser um separador, como parecia, mas também podia significar outra coisa, como um ponto de partida, uma vírgula ou um apóstrofo. Também podia não ser nada, apenas uma distração para despistar um possível espião. Vera baixo. Ver abaixo. Vera, verdade. Ver abaixo? Abaixo de quê? 

– O que é isto? – perguntou Tom, curioso. 

Ergueu um dos frascos que estavam no cinturão. O líquido era claro e amarelo. Ao contrário dos outros, este estava lacrado com cera e bem amarrado com um cordel. 

– Óleo de vitríolo – respondi. 

– É igual a óleo de rícino? – perguntou Tom, começando a puxar o cordel. 

– Não toques nisso! – gritei. 

Ele ficou paralisado. 

– Isso não é comestível – expliquei. – O óleo de vitríolo dissolve ferro. 

Piscou os olhos. 

– Verdade? 

– E também dissolve pessoas. Se puseres um pouco sobre a pele, ele dissolve-te a carne. 

Retirou os dedos da tampa imediatamente. Depois, disse: 

– Podemos testá-lo em alguma coisa? 

– Se quiseres… – disse, olhando pela janela e tentando pensar. O quarto de Hugh, no quarto piso da casa, era mais alto do que as outras casas em frente, e oferecia uma bela vista da cidade. Até se podiam ver as árvores de um jardim particular que ficava ao lado de uma ruela estreita. 

E havia uma pomba pousada no batente da janela. 

– Meu Deu… – Nem terminei a frase. Tom ergueu a cabeça. – É Bridget! – exclamei, surpreendido. 

Ela inclinou a cabeça e deu uma bicada no vidro. 

– Ela seguiu-nos até aqui? – perguntou Tom. – O que lhe dás de comer? 

Abri o fecho da janela. A dobradiça ficava na parte de cima, e a janela abria para fora, de modo que comecei a empurrá-la. Bridget bateu as asas, reclamando de eu empurrar. 

– Não posso abrir a janela se não saíres daí – disse, tentando explicar-lhe. Depois, parei. 

Peguei a página do livro de registos. Reli a mensagem do meu mestre. O meu coração disparou. 

 

Hugh quarto abaixo dos leões os portões do paraíso 

 

– Alguma coisa errada? – perguntou Tom. 

– Eu… acho que sei onde é o «Hugh quarto». 

– Onde? 

– Aqui – respondi. – aqui mesmo. 

– É o quarto de Hugh? 

– Em que andar estamos? 

Tom contou. 

– No quarto piso, contando com o rés do chão – disse ele, espantado. – O quarto de Hugh. No quarto piso da casa. Faz sentido. Mas como saber se é a resposta certa? 

Apontei para a janela. 

– Olha. 

Bridget tentava enfiar a cabeça na fresta do canto inferior da janela. Tom seguiu o meu olhar, passando por ela até chegar ao jardim particular lá em baixo. Ele era separado da ruela por um portão com dois pilares de pedra, ligados por uma cerca de ferro. Em cima dos pilares, havia duas estátuas a olhar na direção oposta. As caudas estavam enroladas em torno da base. 

Tom olhou-me intrigado. Estendi-lhe a página do livro. Ele leu-a e olhou de novo para o jardim, arregalando os olhos. 

– As estátuas! 

Fiz um gesto afirmativo com a cabeça. 

– São leões.