Fiz vinte anos a 7 de Outubro de 1940.
Celebrei o meu primeiro aniversário em Nova Iorque exactamente como deves imaginar: saí com as coristas; metemo-nos com alguns playboys; bebemos rodada atrás de rodada de cocktails com o dinheiro de outras pessoas; divertimo-nos tumultuosamente; e, quando demos por nós, tentávamos chegar a casa antes do nascer do Sol, sentindo que nadávamos contra a corrente de águas sujas.
Dormi uns oito minutos, ou foi o que me pareceu, e acordei com uma sensação estranha. Alguma coisa parecia diferente. Estava de ressaca, claro — é muito possível que ainda estivesse oficialmente embriagada — mas, mesmo assim, havia alguma coisa estranha. Estendi a mão para a Celia, para ver se ela ali estava comigo. A minha mão roçou na sua carne familiar. Tudo estava normal nesse campo, portanto.
Só que me cheirava a fumo.
Fumo de cachimbo.
Sentei-me, e a minha cabeça arrependeu-se instantaneamente da decisão. Voltei a deixar-me cair sobre a almofada, respirei fundo algumas vezes, pedi desculpa ao meu crânio pela agressão e tentei de novo, mais lenta e respeitosamente, desta vez.
Enquanto os meus olhos se concentravam na débil luz da manhã, vi uma silhueta sentada numa cadeira no outro lado do quarto. Uma figura masculina. A fumar cachimbo e a olhar para nós.
Teria a Celia trazido alguém para casa? Teria eu?
Senti uma vaga de pânico. Nós éramos libertinas, como já estabeleci, mas eu sempre tivera respeito suficiente pela Peg (ou medo suficiente da Olive, mais propriamente) para não permitir visitas masculinas no nosso quarto no Lily. Como teria aquilo acontecido?
— Imagine o meu prazer — disse o desconhecido, acendendo de novo o seu cachimbo — quando cheguei a casa e encontrei duas raparigas na minha cama! E tão espantosas. É como se fosse à minha caixa de gelo buscar leite e descobrisse, em vez disso, uma garrafa de champanhe. Duas garrafas de champanhe, para ser exacto.
A minha mente continuou a não assimilar aquilo.
Até que, de repente, conseguiu.
— Tio Billy? — perguntei.
— Oh, é minha sobrinha? — disse o homem, e desatou a rir. — Raios. Isso limita consideravelmente as nossas possibilidades. Como se chama, minha querida?
— Vivian Morris.
— Ahhhh…. — fez ele. — Então, faz sentido. É mesmo minha sobrinha. Que pena. Suponho que a família não aprovaria se me atirasse a si. Talvez nem eu aprovasse se me atirasse a si… tornei-me tão moral, com a idade. Que pena. A outra também é minha sobrinha? Espero que não. Não parece poder ser sobrinha de ninguém.
— Esta é a Celia — expliquei, indicando a bonita forma inconsciente da Celia. — É minha amiga.
— A sua amiga muito especial — disse o Billy, divertido —, a julgar pelo que vejo nessa cama. Que moderna, Vivian! Tem todo o meu apoio. Não se preocupe, não vou contar aos seus pais. Embora tenha a certeza que eles arranjariam maneira de me culpar, se alguma vez descobrissem.
— Peço desculpa por… — gaguejei.
Não sabia muito bem como terminar a frase. Peço desculpa por ter ocupado o seu apartamento? Peço desculpa por invadir a sua cama? Peço desculpa pelas meias ainda molhadas que pendurámos na lareira, a secar? Peço desculpa pelas manchas de maquilhagem cor de laranja que deixámos na sua alcatifa branca?
— Oh, não faz mal. Eu não vivo aqui. O Lily é o bebé da Peg, não meu. Eu fico sempre no Racquet and Tennis Club. Nunca deixei de pagar as cotas, embora só Deus saiba como é caro. Fico mais tranquilo lá e não tenho de prestar contas à Olive.
— Mas estes são os seus aposentos.
— Apenas em nome, graças à simpatia da tua tia Peg. Só passei por cá esta manhã para vir buscar a minha máquina de escrever, que, agora que falo nisso, parece ter desaparecido.
— Guardei-a no armário dos lençóis, no corredor.
— Sim? Bem, faça de conta que está em sua casa, menina.
— Desculpe… — comecei a dizer, mas ele interrompeu-me de novo.
— Estou a brincar. Pode ficar com isto. Não venho muito a Nova Iorque, de qualquer maneira. Não gosto do clima. Faz-me dores de garganta. E esta cidade é do piorio para se estragar o melhor par de sapatos brancos.
Eu tinha tantas perguntas, mas não conseguia formular nenhuma delas com a minha boca seca e sabor péssimo e por entre a névoa do meu cérebro ensopado em gin. O que estava o tio Billy a fazer ali? Quem o deixara entrar? Porque estava de smoking àquela hora? E que estava eu a usar? Nada, ao que parecia, senão uma combinação… e nem sequer era minha, era da Celia. Então o que tinha ela vestido? E onde estava a minha roupa?
— Bem, já me diverti aqui — disse o Billy. — Já vivi a pequena fantasia de anjos na minha cama. Mas, agora que percebo que é minha protegida, vou deixá-la em paz e ver se consigo encontrar café nesta casa. A menina também está com ar de quem precisa de café. Deixe que lhe diga… espero mesmo que ande a embebedar-se todas as noites e a cair na cama com mulheres bonitas. Não pode haver melhor maneira de usar o seu tempo. Deixa-me tremendamente orgulhoso de ser seu tio. Vamos dar-nos maravilhosamente.
Enquanto se dirigia à porta, perguntou:
— A que horas se levanta a Peg, já agora?
— Normalmente, por volta das sete — informei-o.
— Fantástico — disse, olhando para o relógio. — Mal posso esperar por a ver.
— Mas como é que chegou? — perguntei, atordoada.
O que eu queria dizer era como tinha entrado no edifício (o que era uma pergunta parva, porque claro que a Peg teria garantido que o marido — ou ex-marido, ou o que quer que fosse — tinha a chave). Mas o Billy interpretou a pergunta de uma forma mais geral.
— Vim no Twentieth Century Limited. É a única maneira de se vir de Los Angeles para Nova Iorque, se se tiver massa para isso. O comboio parou em Chicago, para apanhar alguns magnatas dos matadouros. A Doris Day veio na mesma carruagem que eu o caminho todo. Jogámos gin rummy até às Grandes Planícies. A Doris é boa companhia, sabe? Óptima rapariga. Muito mais divertida do que se imagina, tendo em conta a sua reputação de santa. Cheguei ontem à noite e fui directo para o meu clube, tratei das unhas e do cabelo, saí para visitar alguns velhos ladrões e desgraçados e inúteis que conheço e vim cá buscar a minha máquina de escrever e cumprimentar a família. Arranje um roupão, menina, e venha ajudar-me a arranjar pequeno-almoço nesta espelunca. Não vai querer perder o que vai acontecer a seguir.
*
Quando consegui levantar-me e manter-me na vertical, dirigi-me à cozinha, onde encontrei o mais invulgar par de homens que alguma vez tinha visto.
O Sr. Herbert estava sentado a uma ponta da mesa, vestido com as habituais tristes calças e camisola interior, o cabelo branco despenteado e incorrigível, o Sanka do costume numa caneca à sua frente. Na outra ponta da mesa estava o meu tio Billy — alto, magro, vestido com um elegante smoking e ostentando o seu dourado bronzeado da Califórnia. O Billy não estava tanto sentado na cozinha como a relaxar nela, a ocupar espaço com ar de sensual prazer enquanto apreciava o seu copo de whisky. Havia nele qualquer coisa de Errol Flynn — se o Errol Flynn não estivesse com disposição para a espadeirada.
Em resumo: um destes homens parecia prestes a sair para trabalhar num vagão de carvão; o outro parecia prestes a sair para um encontro com a Rosalind Russell.
— Bom dia, senhor Herbert — cumprimentei, por força do hábito.
— Muito me chocava descobrir que isso é verdade — replicou.
— Não encontrei o café e a ideia de beber Sanka deu-me a volta ao estômago — explicou o Billy —, por isso contentei-me com um whisky. Não quer um bocadinho, Vivian? Está com ar de quem tem uma tremenda dor de cabeça.
— Já fico bem, assim que fizer o meu café — respondi, não propriamente convencida.
— A Peg disse-me que tens andado a trabalhar num guião — disse o Billy ao Sr. Herbert. — Adorava dar uma vista de olhos.
— Não há muito para ver — disse o Sr. Herbert, olhando tristemente para o bloco de apontamentos pousado na sua frente.
— Posso? — perguntou o Billy, estendendo a mão para o caderno.
— Eu preferia que… oh, esquece — disse o Sr. Herbert, um homem que conseguia sempre ser derrotado antes de a batalha começar.
O Billy folheou lentamente o bloco do Sr. Herbert. O silêncio era torturante. O Sr. Herbert tinha os olhos no chão.
— Isto parece uma mera lista de piadas — disse o Billy. — Nem sequer são piadas, apenas punch lines. E montes de desenhos de pássaros.
O Sr. Herbert encolheu os ombros num gesto de rendição.
— Se aparecerem ideias melhores por aí, espero ser alertado para o facto.
— Os pássaros não estão maus, pelo menos. — O Billy pousou o bloco.
Comecei a sentir-me protectora do pobre Sr. Herbert, cuja reacção à provocação do Billy foi ficar com uma expressão ainda mais torturada do que o habitual, por isso disse:
— Senhor Herbert, já conhece Billy Buell? É o marido da Peg.
O Billy riu-se.
— Oh, não se preocupe, menina. Eu e o Donald já nos conhecemos há anos. Aliás, ele é meu advogado… ou foi, quando ainda o deixavam exercer, e eu sou padrinho do Donald Júnior. Ou fui. O Donald só está nervoso porque percebeu que eu cheguei sem avisar. Ele não sabe como é que isto vai ser recebido pelos escalões superiores da hierarquia por aqui.
Donald! Nunca me ocorrera que o Sr. Herbert tinha um nome próprio.
E, por falar dos escalões superiores da hierarquia, a Olive entrou naquele preciso momento.
Deu dois passos para a cozinha, viu Billy Buell ali sentado, abriu a boca, fechou a boca, e saiu.
Ficámos todos sentados em silêncio por um momento. Tinha sido uma entrada em grande… e uma saída em grande.
— Vai ter de perdoar a Olive — acabou o Billy por comentar. — Não está habituada a ficar tão excitada por ver alguém.
O Sr. Herbert voltou a pousar a testa na mesa da cozinha e disse literalmente:
— Oh, gemido, gemido, gemido.
— Não te preocupes comigo e com a Olive, Donald. Nós ficamos bem. Respeitamo-nos um ao outro, o que compensa o facto de nos detestarmos. Ou antes, eu respeito-a. Que é uma coisa que temos em comum, pelo menos. Temos um excelente relacionamento baseado numa história de profundo e abundante respeito unilateral.
O Billy pegou no seu cachimbo, riscou um fósforo com a unha do polegar e virou-se para mim.
— Como estão os seus pais, Vivian? — quis saber. — A sua mãe e o bigodes? Sempre gostei deles. Bem, gostava da sua mãe. Que mulher impressionante, aquela. Costuma ter o cuidado de nunca dizer nada simpático sobre ninguém, mas acho que ela também gostava de mim. Nunca lhe pergunte se gosta, claro. Ela será obrigada pela propriedade a negar. Nunca consegui gostar muito do seu pai. Um homem muito rígido. Costumava chamar-lhe o Diácono… mas só pelas costas, claro, por uma questão de educação. Seja como for… Como é que eles estão?
— Têm passado bem.
— Ainda casados?
Anuí, mas a pergunta apanhou-me de surpresa. Nunca me tinha ocorrido que os meus pais pudessem ser outra coisa senão casados.
— Nunca têm amantes, pois não… os seus pais?
— Os meus pais? Amantes? Não!
— Isso não lhes dá muito espaço para a novidade, pois não?
— Humm…
— Já foi à Califórnia, Vivian? — perguntou, mudando abençoadamente de assunto.
— Não.
— Devia ir. Vai adorar. Têm o melhor sumo de laranja do mundo. Além disso, o clima é excelente. As pessoas da Costa Leste como nós dão-se bem por lá. Os californianos acham-nos tão refinados. Dão-nos o Sol e a Lua, só por darmos mais classe àquilo. Se lhes dissermos que andámos num colégio interno e temos antepassados que vieram no Mayflower para Nova Inglaterra, é como se fôssemos um plantageneta, para eles. E se lhes falar com essa sua pronúncia de sangue-azul, dão-lhe a chave da cidade. Ter um jogo minimamente decente de ténis ou golfe é quase suficiente para darem uma carreira a um homem… a não ser que ele beba demais.
Eu estava a considerar aquela conversa demasiado rápida para as sete da manhã a seguir à minha festa de aniversário. Receio ter ficado apenas a olhar para ele de boca aberta, mas, honestamente, fiz os possíveis por acompanhar.
Além disso: eu tinha mesmo uma pronúncia de sangue-azul?
— Tem conseguido entreter-se aqui pelo Lily, Vivian? — perguntou. — Já arranjou maneira de ser útil?
— Costuro — respondi. — Faço os figurinos.
— É inteligente da sua parte. Se sabe fazer isso, vai arranjar sempre trabalho no teatro e nunca vai ficar demasiado velha para o trabalho. O que nunca deve querer ser é actriz. E a sua linda amiga lá dentro? É actriz?
— A Celia? É corista.
— Um trabalho duro. Há qualquer coisa numa corista que me parte o coração. Juventude e beleza… são de tão curta duração, minha menina. Mesmo que seja a rapariga mais bonita numa sala neste momento, há dez beldades novas a aparecer atrás de si o tempo todo, mais novas, mais frescas. Enquanto as mais velhas apodrecem na vinha, ainda à espera de ser descobertas. Mas a sua amiga, essa, vai deixar a sua marca enquanto puder. Vai destruir homem atrás de homem numa grande marcha de morte romântica, e talvez alguém escreva canções a seu respeito, ou se mate por ela, mas tudo há-de acabar, em breve. Se tiver sorte, pode ser que se case com um velho fóssil rico, não que esse destino seja de invejar. Se tiver muita sorte, o velho fóssil morre no campo de golfe uma bela tarde e deixa-lhe tudo, enquanto ela ainda for suficientemente jovem para o gozar. As raparigas bonitas sabem sempre que isso vai acabar em pouco tempo. Sentem que tudo é provisório. Por isso espero que ela se ande a divertir enquanto é nova e bonita. Anda a divertir-se?
— Sim. Acho que sim.
Eu não conhecia ninguém que se divertisse mais do que a Celia.
— Óptimo. Espero que a Vivian também se ande a divertir. As pessoas vão dizer-lhe para não desperdiçar a juventude com tanto divertimento, mas estão enganadas. A juventude é um tesouro insubstituível, e a única coisa respeitável a fazer com um tesouro insubstituível é desperdiçá-lo. Por isso, faça o melhor com a sua juventude, Vivian… esbanje-a.
Foi nesta altura que a tia Peg entrou na cozinha, envolta no seu roupão de flanela, o cabelo a apontar em todas as direcções.
— Pegsy! — gritou o Billy, saltando do lugar à mesa. O seu rosto animou-se instantaneamente de alegria. Toda a indiferença afectada desapareceu num piscar de olho.
— Perdão, caro senhor, mas escapa-me o seu nome — disse a Peg.
Mas também estava a sorrir e, no momento seguinte, abraçaram-se. Eu diria que não era um abraço romântico, mas robusto. Era um abraço de amor — ou, pelo menos, de sentimento muito forte. Separaram-se do abraço e ficaram a olhar um para o outro por um momento, a segurarem-se ligeiramente pelos antebraços. Quando se demoraram assim, juntos, percebi algo profundamente inesperado, pela primeira vez: percebi que a Peg era bonita. Eu nunca tinha reparado. Ganhou um tal brilho no rosto, ao olhar para o Billy, que todo o seu semblante mudou. (E não era meramente um reflexo da beleza dele.) No interior do círculo daquele homem, ela parecia uma mulher diferente. Consegui ver na sua face os vestígios da jovem corajosa que fora para França trabalhar como enfermeira durante a guerra. Consegui ver a aventureira que passara uma década na estrada com uma reles companhia itinerante de teatro. Não era apenas ela parecer dez anos mais nova; também parecia a rapariga mais divertida da cidade.
— Pensei fazer-te uma visita, querida — disse o Billy.
— Foi o que a Olive me informou. Podias ter-me dito.
— Não te quis incomodar. E não queria que me dissesses para não vir. Pensei que era melhor tratar de tudo. Agora tenho uma secretária que cuida das coisas por mim. Foi ela que planeou a viagem toda. Jean-Marie, é o nome dela. É esperta, eficiente, dedicada. Ias adorá-la, Peg. É uma versão feminina da Olive.
A Peg afastou-se dele.
— Jesus, Billy, nunca desistes.
— Eh, não fiques zangada comigo! Estou só a brincar. Sabes que não consigo evitar. Estou nervoso, Pegsy. Tenho medo que me ponhas na rua, querida, e acabei de chegar.
O Sr. Herbert levantou-se da mesa da cozinha, disse:
— Vou para outro sítio qualquer — e saiu.
A Peg instalou-se no lugar dele e serviu-se de um gole do seu Sanka frio. Olhou a chávena de sobrolho franzido, por isso levantei-me para lhe fazer uma nova chávena de café. Não tinha a certeza se devia sequer estar na cozinha naquele momento sensível, mas depois a Peg disse:
— Bom dia, Vivian. Divertiste-te na tua festa de aniversário?
— Um pouco demais — repliquei.
— E já conheceste o teu tio Billy?
— Sim, já estivemos a conversar.
— Oh, céus. Tem cuidado, não absorvas nada do que ele te diz.
— Peg — disse o Billy —, estás fabulosa.
Ela passou uma mão pelo cabelo curto e sorriu — um enorme sorriso que se instalou profundamente no seu rosto enrugado.
— Isso é um elogio e tanto, para uma mulher como eu.
— Não há nenhuma mulher como tu. Já averiguei. Não existe.
— Billy — advertiu ela —, já chega.
— Nunca.
— Então, que estás aqui a fazer, Billy? Tens trabalho na cidade?
— Nenhum trabalho. Estou à civil. Não resisti a fazer a viagem, quando me disseste que a Edna estava cá e que queriam fazer um espectáculo para ela. Não vejo a Edna desde 1919. Meu Deus, adorava vê-la. Adoro aquela mulher. E quando me disseste que recrutaste o Donald Herbert, imagine-se, para escrever o guião, percebi que tinha de vir ao Leste salvar-te.
— Obrigada. É terrivelmente simpático da tua parte. Mas, se eu precisasse de ser salva, Billy, avisava-te. Juro. Serias a décima quarta ou décima quinta pessoa a quem ligaria.
Ele sorriu.
— Mas, mesmo assim, estava na lista!
A Peg acendeu um cigarro e passou-mo, depois acendeu outro para si.
— Em que é que estás a trabalhar em Hollywood?
— Um monte de nada. Tudo o que escrevo é orgulhosamente carimbado com o selo de SPI: Sem Pretensões de Importância. Estou entediado. Mas pagam-me bem. O suficiente para me manter confortável. Eu e as minhas necessidades simples.
A Peg desatou a rir.
— As tuas necessidades simples. As tuas famosas necessidades simples. Sim, Billy, és o ascetismo em pessoa. Praticamente um monge.
— Sou um homem de gostos humildes, como bem sabes — disse ele.
— O homem que vem para a mesa do pequeno-almoço vestido como se fosse para uma cerimónia de investidura. O homem que tem uma casa em Malibu. Quantas piscinas tens agora?
— Nenhuma. Uso a da Joan Fontaine.
— E o que é que a Joan ganha com esse arranjo?
— O prazer da minha companhia.
— Jesus, Billy, ela é casada. É mulher do Brian. O teu amigo.
— Adoro mulheres casadas, Peg. Sabes isso. Idealmente, casadas e felizes. Uma mulher casada e feliz é a mais sólida amiga que um homem pode ter. Não te preocupes, Pegsy, a Joan é só uma amiga. O Brian Aherne não corre perigo com pessoas como eu.
Eu não conseguia parar de olhar para um e para o outro, tentando imaginar aqueles dois como casal. Não pareciam pertencer-se fisicamente — mas a sua conversa fluía com uma vivacidade imensa. As provocações, as piadas privadas, a total atenção que davam um ao outro. A intimidade era mais do que óbvia, mas o que eram eles, no âmbito daquela intimidade? Amantes? Amigos? Irmãos? Rivais? Quem sabia? Desisti de tentar perceber e limitei-me a observar os relâmpagos que dardejavam entre eles.
— Gostava de passar algum tempo contigo enquanto cá estou, Pegsy — disse ele. — Passou demasiado tempo.
— Quem é ela? — perguntou a Peg.
— Quem é quem?
— A mulher que acabou de te deixar e que te fez sentir tão subitamente nostálgico e solitário. Vá lá, despeja logo: quem foi a mais recente menina Billy que te abandonou?
— Sinto-me insultado. Conheces-me tão bem.
A Peg limitou-se a olhar para ele, à espera.
— Se tens mesmo de saber — disse o Billy —, chamava-se Camilla.
— Dançarina, ouso adivinhar — disse a Peg.
— Ah! Aí é que te enganas! Nadadora! Trabalha num espectáculo de sereias. Tivemos uma coisa bastante séria durante umas semanas, mas depois ela decidiu seguir outro rumo na vida e deixou de aparecer.
A Peg começou a rir-se.
— Uma coisa bastante séria durante umas semanas. Quem te ouvisse.
— Vamos sair enquanto eu cá estiver, Pegsy. Só nós os dois. Vamos sair e fazer com que uns músicos de jazz desperdicem o seu talento connosco. Vamos a alguns daqueles bares de que gostávamos, que fecham às oito da manhã. Não tem graça sair sem ti. Fui ao El Morocco ontem à noite e achei-o uma desilusão, cheio das mesmas pessoas de sempre, a fazer as mesmas conversas de sempre.
A Peg sorriu.
— Tens sorte por viveres em Hollywood, então, onde a conversa é tão mais variada e fascinante! Mas não, não, não. Não vamos sair, Billy. Já não tenho esse tipo de resistência. E beber assim também não é bom para mim. Sabes isso.
— A sério? Estás a dizer-me que tu e a Olive não se embebedam juntas?
— Estás a gozar, mas, já que perguntas, não. As coisas, por aqui, agora funcionam da seguinte maneira: eu tento embebedar-me e a Olive tenta impedir que isso aconteça. É um bom sistema para mim. Não sei bem o que a Olive ganha com isso, mas fico tremendamente contente por a ter aqui, para ser meu cão de guarda.
— Ouve, Peg… ao menos deixa-me ajudar-te com o espectáculo. Sabes que aquela pilha de páginas está longe de ser um guião. — O Billy deu um toque com uma unha bem tratada no pobre caderno do Sr. Herbert. — E sabes perfeitamente que o Donald não vai conseguir ficar mais perto de escrever um guião, por mais que se esforce. Por mais que o espremas. Por isso, deixa-me pegar na minha máquina de escrever e no meu grande lápis azul. Sabes que eu consigo. Vamos fazer uma grande peça. Vamos dar à Edna uma coisa digna dos seus talentos.
— Chiu. — A Peg tinha tapado a cara com as mãos.
— Vá lá, Peg. Arrisca.
— Chiu — repetiu. — Estou a pensar a plenos pulmões.
O Billy calou-se e esperou.
— Não te posso pagar — disse ela, erguendo finalmente o olhar de novo.
— Eu sou independentemente abastado, Peg. Sempre foi um talento meu.
— Não podes ficar com os direitos de nada que façamos aqui. A Olive não o vai tolerar.
— Podes ficar com tudo isso, Peg. E podes até fazer umas boas massas com este projecto. Se me deixares escrever este espectáculo para ti, e se for tão bom como penso que pode ser… bom, vais fazer tanto dinheiro que os teus ascendentes nunca mais vão ter de trabalhar.
— Vais ter de pôr isso por escrito, que não esperas ganhar nada com isto. A Olive vai insistir nesse ponto. E vamos ter de produzir com o meu orçamento, não com o teu. Não quero voltar a ficar enredada no teu dinheiro. Isso nunca acaba bem para mim. Têm de ser essas as regras, Billy. É a única maneira de a Olive te deixar ficar aqui.
— O teatro não é teu, Peg?
— Tecnicamente, sim. Mas não posso fazer nada sem a Olive, Billy. Sabes bem. Ela é essencial.
— Essencial mas uma seca.
— Sim, mas tu és apenas uma dessas coisas. Preciso da Olive. Não preciso de ti. Sempre foi essa a diferença entre vocês os dois.
— Santo Deus… aquela Olive! Tanto poder instalado! Nunca consegui perceber o que vês nela… para além de ela vir a correr servir-te sempre que tens a mais pequena necessidade. Deve ser essa a atracção. Eu nunca consegui oferecer-te uma lealdade como essa, suponho. Sólida como mobília, a Olive. Mas não confia em mim.
— Sim. É precisamente isso em todos os pontos.
— Francamente, Peg… não sei porque aquela mulher não confia em mim. Eu sou muito, muito, muito digno de confiança.
— Billy, sabes que, quanto mais «muitos» usas, menos digno de confiança pareces, não sabes?
Ele riu-se.
— Sei. Mas, Peg, sabes que consigo escrever este guião com a mão esquerda enquanto jogo ténis com a direita e equilibro uma bola no nariz como uma foca amestrada.
— Sem entornares uma gota da tua bebida.
— Sem entornar uma gota da tua bebida — corrigiu o Billy, erguendo o copo. — Tirei isto do teu bar.
— Antes tu que eu, a esta hora.
— Quero ver a Edna. Está acordada?
— Ela levanta-se mais tarde. Deixa-a dormir. O país dela está em guerra e acabou de perder a casa e tudo. Merece algum descanso.
— Então, eu volto depois. Vou ao clube tomar um duche e descansar, volto mais tarde e podemos começar. E obrigadinho por teres dado o meu apartamento, já me esquecia de mencionar! A tua sobrinha e a amiga roubaram-me a cama e atiraram roupa interior por todo o lado no meu precioso quarto que não usei uma única vez. E, pelo cheiro, parece que explodiu ali uma bomba numa fábrica de perfume.
— Desculpe — comecei, mas ambos me fizeram um aceno, interrompendo-me. Obviamente não tinha qualquer importância. Não sei se eu tinha alguma importância, quando o Billy e a Peg estavam tão concentrados um no outro. Tinha sorte por estar pelo menos ali sentada. Ocorreu-me que devia era ficar de boca fechada, para poder ficar.
— Que tal é o marido dela, a propósito? — perguntou o Billy à Peg.
— O marido da Edna? Para além de estúpido e destituído de talento, não tem nenhum defeito. Posso dizer que é assustadoramente bonito.
— Isso já sabia. Já o vi representar, se é que se pode chamar àquilo representar. Vi-o no Portões do Meio-Dia. Tem os olhos vazios de uma vaca leiteira, mas o lenço de aviador ficava-lhe a matar. Mas como é enquanto pessoa? É-lhe fiel?
— Nunca ouvi nada em contrário.
— Bem, já é alguma coisa, não é? — disse Billy.
A Peg sorriu.
— Sim, é uma verdadeira maravilha, não é, Billy? Imagine-se! Fidelidade! Mas, sim, é alguma coisa. Ela podia ter arranjado pior, suponho.
— E, provavelmente, é o que vai acontecer, um dia — acrescentou o Billy.
— Ela acha-o um grande actor, esse é que é o problema.
— Ainda não ofereceu ao mundo nenhuma prova desse facto. Agora, mais importante: nós temos de o pôr no espectáculo?
A Peg sorriu, desta vez um sorriso pesaroso.
— É ligeiramente desconcertante ouvir-te usar a palavra «nós».
— Porquê? Estou louco por essa palavra. — Ele sorriu.
— Até ao momento em que deixares de estar louco por ela e desapareceres — disse a Peg. — Vais mesmo participar neste projecto, Billy? Ou vais apanhar o primeiro comboio de volta para Los Angeles, assim que te aborreceres?
— Se me aceitares, quero participar. Eu porto-me bem. Porto-me como se estivesse em liberdade condicional.
— Devias estar em liberdade condicional. E, sim, temos de pôr o Arthur Watson na peça. Hás-de descobrir uma forma de o usar. É um homem atraente e não muito inteligente, por isso dá-lhe um papel de homem atraente não muito inteligente. Foste tu que me ensinaste essa regra, Billy, a de que devemos trabalhar com o que temos. O que é que dizias sempre, quando andávamos na estrada? «Se a única coisa que tivermos for uma senhora gorda e um escadote, eu escrevo uma peça chamada A Senhora Gorda e o Escadote.
— Nem acredito de que ainda te lembras disso! — exclamou o Billy. — E A Senhora Gorda e o Escadote não é um título assim tão mau, modéstia à parte.
— Modéstia é o teu forte.
O Billy estendeu a mão para a dela. A Peg não se esquivou.
— Pegsy — disse ele, e aquela única palavra, a forma como a disse, parecia conter décadas de amor.
— William — respondeu ela, e essa única palavra, a forma como ela a disse, parecia conter décadas de amor. Mas também décadas de desespero.
— A Olive não está demasiado zangada por eu cá estar? — perguntou ele.
Ela retirou a mão.
— Faz-nos um favor, Billy. Não finjas importar-te com isso. Adoro-te, mas detesto quando finges importar-te.
— Vou dizer-te uma coisa — replicou ele. — Preocupo-me bem mais do que as pessoas pensam.