VINTE E NOVE

No final do Verão de 1965, a minha tia Peg recebeu uma curiosa carta pelo correio.

Era do comissário do estaleiro naval de Brooklyn. A carta explicava que o estaleiro naval ia em breve fechar as portas para sempre. A cidade estava a transformar-se e a Marinha decidira que já não era possível manter uma indústria naval numa área urbana tão cara. Antes de encerrar, porém, o estaleiro gostaria de organizar um reencontro comemorativo — voltando a abrir as suas portas uma vez mais, em celebração de todos os trabalhadores de Brooklyn que ali laboraram tão heroicamente durante a Segunda Guerra Mundial. Uma vez que era justamente o vigésimo aniversário do final da guerra, este tipo de celebração parecia particularmente apropriado.

O gabinete do comissário andara a percorrer os seus arquivos e encontrara o nome da Peg nuns documentos velhos que a davam como «agente de entretenimento independente». Tinham conseguido localizá-la pelos registos de impostos da cidade e gostariam de saber se a Sr.ª Buell consideraria produzir um pequeno espectáculo comemorativo no dia do reencontro do estaleiro naval, para celebrar os feitos dos trabalhadores do tempo de guerra. Gostavam de uma peça nostálgica — cerca de vinte minutos de música e dança, ao estilo dos tempos de guerra.

Bom, nada teria agradado mais à Peg do que aceitar aquele trabalho. O único problema era que já não se encontrava de boa saúde. Aquele seu grande corpo começava a quebrar. Sofria de enfisema — não surpreendentemente, após uma vida como fumadora compulsiva —, tinha artrite e os olhos também começavam a falhar. Como ela explicava: «O médico diz que não estou muito mal, miúda, mas também não estou muito bem.»

Tinha-se reformado do seu emprego na escola secundária alguns anos antes, devido à saúde precária, e já não lhe era fácil andar pela cidade. A Marjorie, o Nathan e eu jantávamos com a Peg e a Olive algumas noites por semana, mas era a única coisa que a Peg suportava em termos de excitação. Na maior parte dos serões, limitava-se a estender-se no sofá de olhos fechados, a tentar respirar como deve ser, enquanto a Olive lhe lia as páginas desportivas. Por isso, não, infelizmente, não poderia produzir um espectáculo comemorativo no estaleiro naval de Brooklyn.

Mas eu podia.

Verificou-se bem mais fácil do que eu pensara — e mais divertido.

Tinha ajudado a criar centenas de sketches, nos bons velhos tempos, e suponho que nunca lhe perdi o jeito. Contratei alguns dos alunos de teatro do liceu da Olive como actores e dançarinos. A Susan (a minha amiga com a paixão pela dança moderna) disse que podia tratar da coreografia, embora eu não precisasse de nada complexo. Fui buscar o organista da igreja ao fundo da rua e trabalhei com ele na escrita de algumas canções elementares e pirosas. E, claro, criei os figurinos, que eram simples: apenas uns fatos-de-macaco e jardineiras, tanto para rapazes como para raparigas. Pus uns lenços vermelhos em volta da cabeça das raparigas e os mesmos lenços vermelhos ao pescoço dos rapazes e voilà — tornaram-se operários da década de quarenta.

Em 18 de Setembro de 1965, carregámos todo o nosso equipamento de teatro para o velho e decrépito estaleiro naval e preparámo-nos para o espectáculo. Estava uma manhã límpida e ventosa junto ao rio, e rajadas de vento erguiam-se da baía e viravam os chapéus das pessoas. Mas apareceu uma razoável multidão, e sentia-se uma atmosfera carnavalesca nas festividades. Havia uma banda da Marinha a tocar canções antigas e um grupo auxiliar feminino a servir biscoitos e refrescos. Algumas altas patentes da Marinha falaram sobre como tínhamos vencido aquela guerra e como venceríamos todas as guerras até ao fim dos tempos. A primeira mulher autorizada a trabalhar com uma solda no estaleiro durante a Segunda Guerra Mundial fez um curto e nervoso discurso numa voz muito mais débil do que seria de esperar de uma senhora com tais feitos no currículo. E uma menina de dez anos com os joelhos esfolados cantou o hino nacional, usando um vestido que não lhe serviria no próximo Verão e que não a mantinha muito quente naquele momento.

Depois, chegou a hora do nosso pequeno espectáculo.

O comissário do estaleiro naval pediu-me que me apresentasse e explicasse o nosso trabalho. Eu não adorava falar em público, mas consegui fazê-lo sem me desgraçar por completo. Disse ao público quem era e o papel que tinha desempenhado durante a guerra. Fiz uma piada sobre a pobre qualidade da comida na cafetaria Sammy, o que me valeu algumas gargalhadas dispersas, daqueles que se lembravam. Agradeci aos antigos combatentes no público, pelo seu serviço, e às famílias de Brooklyn, pelo seu sacrifício. Disse que o meu irmão tinha sido oficial na Marinha e que perdera a vida nos últimos dias da guerra. (Receara não conseguir chegar àquela parte do discurso sem perder a compostura, mas consegui.) Depois, expliquei que íamos recriar um típico número de propaganda, que eu esperava elevar o moral da actual audiência tal como servira para alegrar os trabalhadores nas suas pausas para almoço.

O espectáculo que escrevi era sobre um dia típico na linha de montagem do estaleiro naval, a construir navios de guerra em Brooklyn. Os miúdos da secundária com os seus fatos-de-macaco faziam o papel dos trabalhadores que cantavam e dançavam com alegria enquanto davam o seu contributo para tornar o mundo seguro para a democracia. Para apelar ao público, polvilhei o guião de diálogos em gíria que esperava que os antigos trabalhadores do estaleiro recordassem.

— Abram alas para o carro do general! — gritava uma das minhas jovens actrizes, a empurrar um carrinho de mão.

— Não sejas choricas! — gritou outra rapariga a uma personagem que se queixava dos longos horários e da sujidade.

Chamei ao capataz da fábrica Sr. Goldbricker, o que sabia que os velhos trabalhadores iam apreciar (sendo «godbricker» o velho termo favorito para designar «o que faz ronha no trabalho»).

Não foi propriamente Tennessee Williams, mas o público pareceu gostar. Mais ainda, o clube de teatro do liceu divertiu-se a representá-lo. Para mim, porém, a melhor parte foi ver o pequeno Nathan — o meu querido menino de dez anos — sentado na fila da frente com a mãe, a ver a produção com tanto espanto e maravilhamento que se imaginaria que estava no circo.

O nosso grande final foi um número chamado «Não Há Tempo para Café!» sobre como era importante no estaleiro naval cumprir o calendário a todo o custo. A canção continha os apelativos versos: «Mesmo que tivéssemos café, o leite faltaria!/A guerra fez do café a mais fina mercadoria!» (Não é para me gabar, mas fui eu que escrevi esta pérola de brilhantismo sozinha — por isso, toma lá, Cole Porter.)

Depois, matámos o Hitler, o espectáculo acabou e toda a gente ficou feliz.

Quando estávamos a enfiar o nosso elenco e o material no autocarro escolar que nos tinham emprestado para aquele dia, um guarda fardado abordou-me.

— Posso dar-lhe uma palavrinha, minha senhora? — perguntou-me.

— Claro — respondi. — Peço desculpa por termos estacionado aqui, mas vai ser só um minuto.

— Importa-se de sair do veículo, por favor?

Pareceu terrivelmente sério, e fiquei preocupada. Que teria eu feito de mal? Não devíamos ter montado o palco ali? Partira do princípio de que havia autorizações para tudo aquilo.

Segui-o até ao carro-patrulha, onde ele se encostou à porta e me fixou com olhar grave.

— Ouvi-a falar há pouco — disse. — Percebi bem quando disse que se chamava Vivian Morris? — A pronúncia do homem identificava-o como puro Brooklyn. Podia ter nascido naquele mesmo caminho de terra, pelo som da sua voz.

— Exacto, senhor agente.

— Disse que o seu irmão morreu na guerra?

— Exacto.

O polícia tirou o chapéu e passou os dedos pelo cabelo. Tinha as mãos a tremer. Perguntei-me se ele próprio seria antigo combatente. Tinha a idade certa. Por vezes, eles tremiam assim. Estudei-o com mais atenção. Era um homem alto a meio da casa dos quarenta. Dolorosamente magro. Pele morena e grandes olhos castanho-escuros — mais escurecidos ainda pelas olheiras por baixo e as rugas de preocupação por cima. Depois, vi o que pareciam ser cicatrizes de queimaduras que lhe desciam pelo lado direito do pescoço. Cordões de cicatrizes retorcidas de carne vermelha, rosa e amarelada. Sim, era mesmo antigo combatente. Tive o pressentimento de que estava prestes a ouvir uma história de guerra, e que seria uma história dura.

Mas, depois, ele deixou-me chocada.

— O seu irmão era o Walter Morris, não era? — perguntou.

Agora era eu que tremia. Os meus joelhos quase se demitiram da sua função. Não tinha mencionado o nome do Walter durante o meu discurso.

Antes que eu pudesse falar, o polícia disse:

— Conheci o seu irmão, minha senhora. Servi com ele no Franklin.

Pus a mão sobre a boca para deter o pequeno soluço involuntário que me subira à garganta.

— Conheceu o Walter? — Apesar do meu esforço para controlar a voz, as palavras saíram sufocadas. — Estava lá?

Não elaborei a minha pergunta, mas ele sabia claramente a que me referia. Estava a perguntar-lhe: Estava lá no dia 19 de Março de 1945? Estava lá quando um piloto kamikaze se espetou contra o convés do USS Franklin, detonando os depósitos de combustível, incendiando os aviões a bordo e transformando o próprio navio numa bomba? Estava lá quando o meu irmão e mais de oitocentos homens morreram? Estava lá quando o meu irmão foi sepultado no mar?

Ele anuiu várias vezes — um nervoso e brusco acenar da cabeça.

Sim. Ele estava lá.

Disse aos meus olhos para não voltarem a desviar-se para as marcas de queimaduras no pescoço do homem.

Os meus olhos foram para lá na mesma, raios.

Desviei-os. Não sabia para onde mais olhar.

Ao ver-me tão pouco à vontade, o próprio homem ficou mais nervoso. O seu rosto parecia quase dominado pelo pânico. Parecia legitimamente consternado. Ou estava aterrado por me perturbar ou revivia o seu próprio pesadelo. Talvez as duas coisas. Ao testemunhar isto, recuperei o sangue-frio, respirei fundo e decidi acalmar o pobre homem. O que era a minha dor, afinal, em comparação com o que ele tinha suportado?

— Obrigada por me dizer. — A minha voz estava mais firme. — Peço desculpa pela minha reacção. Foi só o choque de ouvir o nome do meu irmão, ao fim de todos estes anos. Mas é uma honra conhecê-lo.

Levei a mão ao seu braço, para lhe dar um pequeno aperto de gratidão. Ele encolheu-se como se o tivesse atacado. Retirei a mão, mas devagar. Ele lembrava-me o tipo de cavalos com que a minha mãe sempre tinha sido boa — os nervosos, agitados. Os tímidos e perturbados que ninguém senão ela conseguia domar. Instintivamente, dei um minúsculo passo atrás e deixei cair os braços. Queria mostrar-lhe que não era uma ameaça.

Experimentei uma táctica diferente.

— Como se chama, marinheiro? — perguntei num tom mais suave, quase uma voz provocadora.

— Frank Grecco.

Não me estendeu a mão, por isso também não o fiz.

— Conhecia bem o meu irmão, Frank?

Ele anuiu mais uma vez. De novo, como aquele movimento nervoso.

— Servimos como oficiais juntos. O Walter era líder da minha divisão. Também tínhamos feito a formação juntos. Fomos em direcções diferentes, ao princípio, mas acabámos no mesmo navio, pelo final da guerra. Por essa altura, ele já me tinha ultrapassado.

— Ah. Está bem.

Não entendia tudo o que me estava a dizer, mas não queria que parasse de falar. Havia alguém na minha frente que conhecera o meu irmão. Eu queria descobrir tudo sobre este homem.

— Cresceu por aqui, Frank? — perguntei, já sabendo a resposta, pelo seu sotaque. Mas estava a tentar facilitar-lhe as coisas. Primeiro, ia fazer as perguntas simples.

Mais uma vez, um aceno desengonçado.

— Sul de Brooklyn.

— E era bom amigo do meu irmão?

Ele estremeceu.

— Menina Morris, preciso de lhe dizer uma coisa. — O polícia tirou o chapéu mais uma vez e enterrou os dedos trémulos entre os cabelos. — Não me reconhece, pois não?

— Porque haveria de o reconhecer?

— Porque eu já a conheci, e a menina conheceu-me. Por favor, não se vá embora, minha senhora.

— Porque é que haveria de me ir embora?

— Porque eu a conheci em 1941 — disse ele. — Fui eu que a levei a casa dos seus pais.

O passado caiu em cima de mim como um dragão acordado de um profundo sono. Senti uma vertigem com o seu calor e força. Numa vertiginosa séria de clarões, vi o rosto da Edna, o rosto do Arthur, o rosto da Celia, o rosto do Winchell. Vi o meu próprio jovem rosto no banco traseiro daquele Ford amolgado — envergonhada e destroçada.

Era o condutor.

Era o tipo que me tinha chamado putinha sem vergonha, mesmo à frente do meu irmão.

— Minha senhora — chamou-me, e agora era ele que me agarrava o braço. — Por favor, não se vá embora.

— Pare de dizer isso. — A minha voz saiu irregular. Porque é que ele não parava de dizer aquilo, quando eu não ia a lado nenhum? Só queria que ele parasse de dizer aquilo.

Mas ele tornou a repetir:

— Por favor, não se vá embora, minha senhora. Preciso de falar consigo.

Abanei a cabeça.

— Não consigo…

— Tem de compreender… peço muita desculpa — disse ele.

— Pode soltar-me o braço, por favor?

— Desculpe — repetiu, mas largou-me o braço.

O que senti?

Nojo. Puro nojo.

Só não consegui perceber se era nojo dele ou de mim. Fosse o que fosse, estava a brotar de um baú de vergonha que eu julgava ter enterrado há muito tempo.

Eu odiava este tipo. Era isso que sentia: ódio.

— Eu era um miúdo estúpido — disse ele. — Não sabia comportar-me.

— Tenho mesmo de ir.

— Por favor, não se vá embora, Vivian.

A voz dele estava a crescer, o que me perturbou. Mas ouvi-lo chamar o meu nome foi ainda pior. Odiava-o, odiava que soubesse o meu nome. Odiava que me tivesse visto em palco naquele dia e que soubesse quem eu era o tempo todo — que soubesse tudo aquilo sobre mim. Odiava que me tivesse visto com a voz embargada por causa do meu irmão. Odiava que provavelmente tivesse conhecido o meu irmão melhor do que eu. Odiava que o Walter me tivesse atacado à frente dele. Odiava que aquele homem me tivesse chamado um dia putinha sem vergonha. Quem julgava ele que era, a abordar-me daquela maneira ao fim de tantos anos? Esta sensação de raiva e nojo cresceu, e fortaleceu qualquer coisa na minha espinha: precisava de me ir embora imediatamente.

— Tenho um autocarro cheio de miúdos à minha espera — disse.

Comecei a ir-me embora.

— Preciso de falar consigo, Vivian! — gritou ele para as minhas costas. — Por favor.

Mas eu entrei no autocarro e deixei-o ali especado ao lado do seu carro-patrulha — de chapéu na mão, como um homem a pedir esmola.

E foi assim, Angela, que conheci oficialmente o teu pai.

Não sei como, consegui fazer todas as coisas que precisava de fazer naquele dia.

Deixei os miúdos na escola e ajudei a descarregar os adereços. Devolvemos o autocarro ao seu espaço de estacionamento. A Marjorie e eu voltámos para casa com o Nathan, que não parava de dizer que tinha adorado o espectáculo e que, quando crescesse, também queria trabalhar no estaleiro naval de Brooklyn.

Claro que a Marjorie percebeu que eu estava perturbada. Não parava de me olhar de lado, por cima da cabeça do Nathan. Mas limitei-me a fazer-lhe um aceno com a cabeça, para indicar que estava bem. Coisa que, decididamente, não estava.

Depois — assim que fiquei livre —, corri directamente para a casa da tia Peg.

Nunca tinha falado a ninguém daquela viagem de carro de volta para Clinton, em 1941.

Ninguém sabia que o meu irmão me salvara por um lado e esmagara por outro — dilacerando-me de censura e permitindo que a sua aversão chovesse sobre mim. E claro que nunca contara a ninguém a dupla vergonha que era esse ataque ter ocorrido na frente de uma testemunha — um desconhecido —, que depois acrescentara o seu próprio golpe de misericórdia ao meu castigo chamando-me putinha sem vergonha. Ninguém sabia que o Walter me salvara de Nova Iorque para me ir despejar como um saco de lixo à porta dos meus pais — demasiado enojado pelo meu comportamento para me olhar sequer de frente por mais tempo do que aquele a que era obrigado.

Mas, agora, corria para Sutton Place para levar toda a história à Peg.

Encontrei a minha tia estendida no sofá, como ela costumava fazer naqueles tempos — alternando entre fumar e tossir. Estava a ouvir a transmissão do jogo dos Yankees. Assim que entrei, ela disse-me que era o Dia de Mickey Mantle no estádio dos Yankees — que estavam a homenagear a sua extraordinária carreira de quinze anos de basebol. De facto, quando irrompi pelo apartamento e comecei a falar, a Peg ergueu a mão: o Joe DiMaggio estava a falar, e ela não queria que o interrompesse.

— Mostra respeito, Vivvie — disse-me, toda séria.

Por isso, calei-me e deixei-a ter o seu momento. Sabia que ela teria gostado de estar pessoalmente no estádio, mas já não tinha forças suficientes para uma excursão tão cansativa. O rosto da Peg estava coberto de arrebatamento e emoção enquanto ouvia DiMaggio honrar Mantle. Pelo final do discurso, tinha gordas lágrimas a escorrer pelas faces. (A Peg conseguia suportar tudo — guerra, catástrofe, fracasso, morte de um familiar, um marido infiel, a demolição do seu adorado teatro — sem derramar uma lágrima, mas os grandes momentos da história do desporto deixavam-na sempre emocionada.)

Perguntei-me muitas vezes se a nossa conversa teria corrido de maneira diferente, se ela não estivesse tão saturada de emoção pelos Yankees, nesse dia. Não há como saber. Senti que foi frustrante para ela ter de desligar o rádio quando DiMaggio acabou de falar e dar-me a sua total atenção — mas era uma pessoa generosa, por isso fê-lo na mesma. Limpou os olhos e assou-se. Tossiu mais um pouco. Acendeu outro cigarro. Depois, ouviu-me com total concentração quando comecei a contar-lhe a minha história de infortúnio.

A meio da minha saga, a Olive chegou. Tinha saído para ir às compras no mercado. Parei de falar para a ajudar a arrumar as coisas e depois a Peg disse:

— Vivvie, começa do princípio. Conta à Olive o que me tens estado a contar.

Não teria sido a minha escolha. Aprendera a amar a Olive Thompson ao longo dos anos, mas ela não seria a primeira candidata a pessoa para quem correria em busca de um ombro onde chorar. A Olive não era propriamente um peito macio de transbordante simpatia. Mesmo assim, ela estava ali, e ela e a Peg — à medida que envelheciam — tinham vindo cada vez mais a tornar-se as minhas figuras parentais.

Ao ver a minha hesitação, a Peg disse:

— Conta-lhe, Vivvie. Confia em mim… a Olive é melhor com este tipo de coisas do que qualquer uma de nós.

Portanto, voltei atrás e comecei de novo a minha saga. A viagem de carro em 1941, o Walter a envergonhar-me, o condutor a chamar-me putinha sem vergonha, o meu negro período de vergonha e castigo no estado de Nova Iorque, e agora o regresso do condutor — um polícia com cicatrizes de queimaduras que estivera no Franklin. Que conhecia o meu irmão. Que sabia tudo.

As mulheres escutaram-me com atenção. E, quando cheguei ao fim, continuaram atentas — como se estivessem à espera de mais.

— E, depois, o que aconteceu? — perguntou a Peg, quando percebeu que eu não ia dizer mais.

— Nada. Depois disso, fui-me embora.

— Foste-te embora?

— Não queria falar com ele. Não queria vê-lo.

— Vivian, ele conheceu o teu irmão. Esteve no Franklin. Pela tua descrição, parece-me que ficou gravemente ferido no ataque. E não queres falar com ele?

— Ele magoou-me — protestei.

— Magoou-te? Disseste que te feriu os sentimentos há vinte e cinco anos, e tu viraste-lhe as costas? À pessoa que conhecia o teu irmão? Antigo combatente?

— Aquela viagem de carro foi a pior coisa que alguma vez me aconteceu, Peg.

— Ah, foi? — retrucou a Peg. — Pensaste em perguntar ao homem qual foi a pior coisa que lhe aconteceu a ele?

A Peg estava agitada, de uma forma que não era nada característica. Não fora para aquilo que eu ali fora. Queria consolo, mas estava a ser repreendida. Comecei a sentir-me tola e embaraçada.

— Esquece — cedi. — Não é nada. Não devia ter-te incomodado.

— Não sejas estúpida. Não é nada.

Ela nunca tinha falado comigo tão severamente.

— Nunca devia ter vindo falar contigo sobre isto — disse. — Interrompi o teu jogo… só estás irritada comigo por causa disso. Desculpa ter aparecido desta maneira.

— Estou-me a borrifar para a porcaria do jogo de basebol, Vivian.

— Desculpa. Fiquei perturbada e queria falar com alguém.

— Ficaste perturbada? Viraste as costas àquele antigo combatente ferido e vens ter comigo porque queres falar sobre a tua vida difícil?

— Caramba, Peg. Não precisas de falar comigo assim. Esquece. Esquece que eu disse alguma coisa.

— Como é que posso esquecer?

Depois começou a tossir — um dos seus horríveis e ásperos ataques de tosse. Os seus pulmões pareciam irritados e quebradiços. Endireitou-se, e a Olive deu-lhe umas palmadinhas nas costas. Depois, acendeu um cigarro para a Peg, que fumou a mais longa passa que conseguiu, interrompida por mais ataques de tosse.

A Peg recompôs-se. Tola como era, eu estava com esperança de que ela me pedisse desculpa por ter sido tão má para mim. Em vez disso, ouvi-a dizer:

— Ouve, miúda. Desisto. Não compreendo o que queres retirar desta situação. Não te compreendo de todo, neste momento. Estou bastante desiludida contigo.

Ela nunca tinha dito isto. Nem sequer quando, tantos anos antes, eu traíra a sua amiga e quase dera cabo do seu espectáculo de sucesso.

Depois, virou-se para a Olive e disse:

— Não sei. O que achas, chefe?

A Olive ficou sentada em silêncio com as mãos cruzadas sobre o colo, de olhos no chão. Eu ouvia a respiração difícil da Peg e o som de uma persiana no outro lado da sala, a ondular com a brisa. Não tinha a certeza de querer saber o que a Olive pensava. Mas ali estávamos nós.

Por fim, a Olive olhou para mim. A sua expressão era severa, como sempre. Mas ela mediu as palavras, e senti que as mediu com cuidado, para não causar danos desnecessários.

— O campo da honra é doloroso, Vivian — disse.

Esperei que dissesse mais alguma coisa, mas não o fez.

A Peg começou a rir — e de novo a tossir.

— Bem, obrigada pela tua contribuição, Olive. Isso resolve tudo.

Ficámos ali sentadas em silêncio por um longo momento. Levantei-me e servi-me de um dos cigarros da Peg, embora tivesse parado de fumar umas semanas antes. Mais ou menos.

— O campo da honra é doloroso — continuou a Olive por fim, como se a Peg não tivesse falado. — Foi o que o meu pai me ensinou quando eu era nova. Ensinou-me que o campo da honra não é um sítio onde as crianças possam brincar. As crianças não têm honra, percebes? E não se espera que tenham, porque isso é demasiado difícil para elas. Demasiado doloroso. Mas, quando nos tornamos adultos, temos de entrar no campo da honra. Tudo se espera de ti, nessa altura. Vais precisar de ser vigilante nos teus princípios. Vão ser-te exigidos sacrifícios. Vais ser julgada. Se cometeres erros, tens de responder por eles. Vai haver momentos em que tens de pôr de parte os teus impulsos e adoptar uma posição superior à que outra pessoa, uma pessoa sem honra, tomaria. Esses momentos podem magoar, mas é por isso que a honra é um campo doloroso. Compreendes?

Anuí. Compreendi as palavras. Só não fazia ideia do que tinha isto a ver com o Walter e o Frank Grecco e eu. Mas ouvi. Tinha o pressentimento de que as palavras dela fariam mais sentido mais tarde, quando tivesse tempo para pensar nelas. Mas, como disse, ouvi. Foi o discurso mais longo que alguma vez ouvi a Olive fazer, por isso soube que era um momento importante. Na verdade, julgo que nunca ouvi ninguém com mais atenção.

— Claro, ninguém é obrigado a permanecer no campo da honra — continuou a Olive. — Se o achares demasiado desafiador, podes sempre sair, e então podes continuar a ser criança. Mas, se desejas ser uma pessoa de carácter, receio que seja a única maneira. Mas pode ser doloroso.

A Olive virou as mãos sobre o colo, expondo as palmas.

— O meu pai ensinou-me tudo isto quando eu era nova. Constitui tudo o que sei. Tento aplicá-lo à minha vida. Nem sempre sou bem-sucedida, mas tento. Se alguma destas coisas te for útil, Vivian, estás à vontade para a pôr em uso.

Levei mais de uma semana a contactá-lo.

A dificuldade não foi encontrá-lo — essa parte foi fácil. O irmão mais velho do porteiro da Peg era comandante da polícia, e não levou tempo nenhum a confirmar que, sim, havia um Francis Grecco, agente, na 76.ª Esquadra de Brooklyn. Deram-me o número de telefone da esquadra, e pronto.

Pegar no telefone foi a parte difícil.

É sempre.

Admito que, da primeira vez que liguei, desliguei assim que alguém atendeu. No dia seguinte, tentei convencer-me a telefonar de novo. Nos dias seguintes também. Quando arranjei coragem para tentar de novo e me mantive efectivamente em linha, disseram-me que o agente Grecco não estava. Estava na rua. Queria deixar mensagem? Não.

Tentei mais algumas vezes durante os dias seguintes e recebi sempre a mesma mensagem: ele tinha saído em patrulha. O agente Grecco não tinha, claramente, um trabalho de secretária. Por fim, concordei em deixar uma mensagem. Dei o meu nome e deixei o número do L’ Atelier. (Os seus colegas agentes que ficassem a perguntar-se porque andava uma tipa nervosa de uma loja de vestidos de noiva a ligar-lhe tão insistentemente.)

Nem uma hora depois, o telefone tocou e era ele.

Trocámos cumprimentos, pouco à vontade. Eu disse-lhe que gostava de falar com ele pessoalmente. Concordava com essa ideia? Ele disse que sim. Perguntei-lhe se seria mais fácil se eu fosse a Brooklyn ou se ele viesse a Manhattan. Ele disse que podia ser em Manhattan; tinha carro e gostava de conduzir. Perguntei-lhe quando estava livre. Ele disse que estaria livre ao fim dessa mesma tarde. Sugeri que viesse ter comigo à Pete’s Tavern às cinco horas. Ele hesitou e disse:

—Desculpe, Vivian, mas não sou bom em restaurantes.

Não percebi muito bem o que queria ele dizer com aquilo, mas não quis pô-lo em cheque.

— E se nos encontrarmos antes em Stuyvesant Square, então? — perguntei. — No lado oeste do parque. É melhor?

Ele concordou que seria melhor.

— Ao lado da fonte — precisei, e ele concordou. Sim, ao lado da fonte.

Não sabia como ia encarar tudo aquilo. Não queria realmente voltar a vê-lo, Angela. Mas não parava de ouvir o que a Olive me tinha dito: Não podes continuar a ser criança

As crianças fogem dos problemas. As crianças escondem-se.

Eu não queria continuar a ser criança.

Não pude deixar de recordar a altura em que a Olive me salvou do Walter Winchell. Percebi então que ela me salvara em 1941 precisamente porque sabia que eu era uma criança. Percebi que ainda não era alguém responsável pelas próprias acções. Quando a Olive disse ao Winchell que eu era uma inocente que fora seduzida, não tinha sido um artifício. Ela sentia-o verdadeiramente. A Olive vira-me por aquilo que era — uma rapariga imatura e informe, de quem não se esperaria que se mantivesse no doloroso campo da honra. Eu precisara que um adulto sensato e preocupado me salvasse, e essa salvadora fora a Olive. Fora ela que permanecera no campo da honra por mim.

Mas eu era jovem, na altura. Agora já não era. Teria de fazer isto em pessoa. Mas que faria um adulto — uma pessoa formada, uma pessoa de honra — nesta circunstância?

Encarar as consequências, suponho. Travar as próprias batalhas, como o Winchell tinha dito. Perdoar alguém, talvez.

Mas como?

Depois, lembrei-me do que a Peg me dissera anos antes, sobre os engenheiros do exército inglês durante a Grande Guerra e uma sua frase: «Podemos fazer isto, quer se possa fazer quer não.»

Com o tempo, todos somos chamados a fazer a coisa que não pode ser feita.

É esse o campo doloroso, Angela.

Foi isso que me fez pegar no telefone.

O teu pai já estava no parque quando cheguei — e eu cheguei cedo, e só tinha três quarteirões para caminhar.

Vi-o andar de um lado para o outro diante da fonte. De certeza que te lembras da maneira como ele costumava andar de um lado para o outro. Estava vestido à civil: calças de lã castanhas, uma camisa desportiva de nylon azul-claro e um casaco Harrington verde-escuro. A roupa ficava-lhe larga sobre o corpo. Era horrivelmente magro.

Aproximei-me.

— Olá.

— Olá — respondeu.

Não tinha a certeza se devia apertar-lhe a mão. Ele também não sabia muito bem qual seria o protocolo, por isso não fizemos mais do que ficar parados com as mãos nos bolsos. Nunca tinha visto um homem menos à vontade.

Indiquei um banco.

— Quer sentar-se e conversar comigo por um momento?

Senti-me estúpida — como se lhe estivesse a oferecer uma cadeira na minha própria casa, em vez de um lugar num parque público.

Ele disse:

— Não sou bom a sentar-me. Se não se importa, podemos antes caminhar?

— Não me importo nada.

Começámos a andar pelo perímetro do parque, por baixo das tílias e dos olmos. Ele tinha uma passada longa, mas não fazia mal — eu também.

— Frank — comecei —, peço desculpa por ter fugido no outro dia.

— Não, eu é que peço desculpa.

— Não, devia ter ficado e ouvido o que tinha para me dizer. Isso, sim, teria sido de pessoa adulta. Mas compreenda… assustou-me encontrá-lo ao fim de todos estes anos.

— Eu sabia que me ia virar as costas quando soubesse quem eu era. Fez o que devia fazer.

— Ouça, Frank… tudo aquilo foi há muito tempo.

— Eu era um miúdo estúpido — disse. Parou e virou a cara para mim. — Quem julgava eu que era, a falar consigo daquela maneira?

— Já não importa.

— Eu não tinha o direito. Era um raio de um miúdo estúpido.

— Se vamos repisar o assunto — repliquei —, eu também era uma miúda estúpida. Fui, de certeza, a miúda mais estúpida de Nova Iorque, naquela semana. Deve recordar os pormenores da situação em que eu me encontrava.

Tentei introduzir um tom mais ligeiro, mas o Frank era todo seriedade.

— Eu só queria impressionar o seu irmão, Vivian. Tem de acreditar em mim. Ele nunca tinha falado comigo antes daquele dia… nunca tinha reparado em mim. E porque haveria de falar, um tipo popular como ele? Depois, de repente, acorda-me a meio da noite. Frank, preciso do teu carro. Eu era o único na Escola de Oficiais que tinha carro. Ele sabia isso. Toda a gente sabia. Os tipos estavam sempre a pedir-me o carro emprestado. Bem, o problema é que… o carro não era meu, Vivian. Era do meu pai. Eu podia usá-lo, mas não podia emprestá-lo a ninguém. Ali estou eu, a meio da noite, a falar com o Walter Morris pela primeira vez, um tipo que admiro de todo o coração, e a dizer-lhe que não lhe posso emprestar o carro do meu velhote. Estou a tentar explicar-lhe isto todo ensonado, e nem sequer sei o que se passa.

À medida que o Frank ia falando, o seu sotaque nativo foi-se acentuando. Era como se, ao voltar ao passado, entrasse mais fundo dentro de si mesmo — até mais fundo na sua qualidade de nativo do Bronx.

— Não há problema, Frank — disse eu. — Já passou.

— Vivian, tem de me deixar dizer isto. Tem de me deixar dizer que estou arrependido. Passei anos a querer encontrá-la, pedir desculpa. Mas não tive coragem para a procurar. Por favor, tem de me deixar contar-lhe como aconteceu. É que eu disse ao Walter: Não te posso ajudar, companheiro. Depois, ele apresenta-me os factos. Diz que a irmã se meteu em sarilhos. Que precisa de a tirar da cidade imediatamente. Diz que tenho de ajudar a salvar a irmã dele. O que é que vou fazer, Vivian? Dizer que não? Era o Walter Morris. Sabe como ele era.

Sim. Eu sabia como ele era.

Nunca ninguém dizia que não ao meu irmão.

— Por isso, disse-lhe que só lhe podia emprestar o carro se fosse eu a conduzir. A pensar para mim mesmo: Como é que vou justificar a quilometragem ao meu pai? A pensar para mim mesmo: Talvez eu e o Walter fiquemos amigos depois disto. A pensar: Como é que vamos sair da escola, sem mais nem menos, a meio da noite? Mas o Walter resolveu tudo. Arranjou uma autorização do comandante para sairmos durante um dia, vinte e quatro horas. Mais ninguém teria conseguido aquela autorização a meio da noite, mas ele conseguiu. Quando dou por mim, estamos na Baixa e eu estou a atirar as suas malas para o carro do meu velho, a preparar-me para conduzir seis horas para uma cidade de que nunca ouvi falar, por uma razão que nem sei qual é. Nem sequer sabia quem era, mas era a rapariga mais bonita que tinha visto na vida.

Não houve nada de galanteador na maneira como ele disse isto. Estava apenas a relatar os factos, polícia como era.

— Agora estamos no carro, eu a conduzir, e o Walter começa a dar-lhe um sermão. Nunca tinha ouvido ninguém dar tanto na cabeça de outra pessoa como aquilo. O que é que devo fazer enquanto ele está a dizer aquelas coisas? Para onde devo ir? Não posso estar a ouvir aquilo tudo. Nunca tinha estado numa situação daquelas. Sou de South Brooklyn, Vivian, e pode ser uma área difícil, mas tem de compreender, eu sou um miúdo enfiado nos livros, um miúdo tímido. Não me envolvo em lutas. Sou o tipo de miúdo que mantém a cabeça baixa. Passa-se alguma coisa, as pessoas começam a gritar, eu saio de cena. Mas não posso sair desta cena, porque vou a conduzir. E ele não estava a gritar… embora eu ache que podia ter sido melhor se o fizesse. Estava só a dar-lhe na cabeça, tão frio. Lembra-se disso?

Oh, eu lembrava-me.

— Para somar a isso tudo, não sabia nada sobre mulheres. As coisas de que ele estava a falar, as coisas que ele disse que a senhora andava a fazer? Não sabia nada sobre isso. E a sua fotografia nos jornais, ele diz… uma fotografia sua enrolada com duas pessoas? Uma delas é uma estrela de cinema, ou coisa do género? Outra é corista? Eu nunca tinha ouvido falar de nada daquilo. Mas ele continua a falar, e a falar, e a Vivian está ali no banco de trás, a fumar cigarros e a aceitar. Olho no espelho retrovisor, e a Vivian nem pestaneja. É como água a escorrer das costas de um pato, tudo o que ele lhe está a dizer. Percebi que aquilo estava a deixar o Walter louco, o facto de não reagir. Que estava só a incendiá-lo ainda mais. Mas, juro por Deus, nunca vi ninguém com tanta cabeça fria como a Vivian.

— Eu não estava com a cabeça fria, Frank — corrigi. — Estava em choque.

— Bem, fosse o que fosse, manteve-se calma. Como se nem sequer se importasse. Entretanto, eu estou a suar em bica, a perguntar-me se era assim que vocês falavam o tempo todo. É assim que são as pessoas ricas?

Pessoas ricas, pensei. Como teria percebido o Frank que o Walter e eu éramos pessoas ricas? E depois percebi: Ah, sim, claro. Da mesma maneira que nós percebíamos que ele era uma pessoa pobre. Alguém cuja presença nem valia a pena reconhecer.

O Frank continuou:

— E eu estou a pensar: eles nem sequer sabem que estou aqui. Não sou nada para estas pessoas. O Walter Morris não é meu amigo. Está só a usar-me. E a Vivian… nem sequer tinha olhado para mim. No teatro, disse-me: «Leve aquelas duas malas para baixo.» Como se eu fosse um carregador, ou coisa do género. O Walter, esse, nem sequer me apresentou. Quero dizer, sei que estavam ambos sob tensão, mas é como se, aos olhos dele, eu não fosse ninguém, percebe? Sou só um instrumento de que ele precisa… só alguém para conduzir a máquina. E estou a tentar perceber como deixar de ser tão invisível, sabe? Por isso penso: pá, vou saltar para o comboio em andamento. Entrar na conversa. Tentar agir como ele… falar como ele está a falar, a maneira como lhe dá na cabeça. Foi quando disse o que disse. Foi quando lhe chamei o que chamei. Depois, vejo o resultado. Olho pelo espelho retrovisor e vejo a sua cara. Vejo o que as minhas palavras lhe fizeram. Foi como se a tivesse matado. Depois vejo a cara dele… é como se tivesse sido atingido por um bastão de basebol. Pensei que não ia ser nada, eu dizer aquilo. Pensei que ia fazer-me parecer fixe, também… mas, não, foi como gás mostarda. Porque, por muito mau que aquilo fosse, a maneira como o seu irmão a estava a repreender, ele não tinha usado uma palavra como aquela. Vejo-o a tentar decidir o que fazer. Depois, vejo-o decidir não fazer nada. Foi a parte pior.

— Foi a parte pior — concordei.

— Tenho de lhe dizer, Vivian, juro por Deus, nunca usei uma palavra como aquela com ninguém na minha vida. Nunca na vida. Nunca antes, nunca depois. Não sou desse género. De onde é que aquilo veio, naquele dia? Durante todos estes anos tenho visto aquela cena mil vezes na cabeça. Vejo-me a dizer aquilo e penso: Frank, que é que se passa contigo? Mas aquelas palavras, juro por Deus, saíram sem pensar da minha boca. Depois, o Walter fica calado. Lembra-se disso?

— Sim.

— Ele não a defende, não me diz para calar a boca. Agora, temos de andar durante horas naquele silêncio. E não posso dizer a ninguém que estou arrependido, porque sinto que nunca mais posso abrir a boca na vossa frente. Como se nunca tivesse sido contratado para abrir a boca na vossa frente… não que eu tivesse sido contratado, mas percebe o que quero dizer. Depois, chegamos a casa da sua família, e eu nunca tinha visto uma casa daquelas na vida, e o Walter nem sequer me apresenta aos pais. Como se eu não existisse. Voltamos para o carro, todo o caminho de volta para a escola, ele não me diz uma palavra. Não me diz uma palavra durante o resto da formação. Comporta-se como se aquilo nunca tivesse acontecido. Olha para mim como se nunca me tivesse visto. Terminamos o curso e graças a Deus que nunca mais o vou ter de ver. Mas, mesmo assim, tenho de pensar nesta coisa para sempre, e não há nada que possa fazer para corrigir o meu erro. Depois, dois anos mais tarde, acabo transferido para o mesmo navio que ele. A minha sorte. Agora, ele é meu superior, coisa que não surpreende. Age como se não me conhecesse. E eu tenho de viver com isto tudo outra vez, todos os dias.

Neste ponto, o Frank parece ter esgotado as palavras.

Ele fez-me lembrar alguém, enquanto ia desenvolvendo a sua história e esforçando-se por se explicar. Depois percebi: era eu. Fez-me lembrar eu, naquela noite, no camarim da Edna Parker Watson, quando tentei desesperadamente justificar-me de uma coisa que nunca poderia ser corrigida. Ele estava a fazer a mesma coisa que eu tinha feito. Tentava absolver-se pelas palavras.

Naquele momento, senti-me dominada por um sentimento de piedade — não apenas pelo Frank, mas também pela versão mais jovem de mim mesma. Senti até piedade para com o Walter, com todo o seu orgulho e condenação. Como o Walter se deve ter sentido humilhado por mim, e como deve ter sido horrível para ele sentir-se exposto daquela maneira na frente de alguém que considerava um subordinado — e o Walter considerava toda a gente sua subordinada. Como deve ter ficado zangado por ter de limpar a minha porcaria a meio da noite. Depois, a minha piedade cresceu e, apenas por um momento, senti piedade por toda a gente que alguma vez se envolveu numa história impossivelmente feia. Todas aquelas tribulações em que nós, seres humanos, nos vemos envolvidos — tribulações de que não estamos à espera, que não sabemos como gerir, e depois não sabemos como resolver.

— Tem mesmo pensado nisto durante este tempo todo, Frank? — perguntei.

— Sempre.

— Bem, peço muita desculpa por isso — disse, e falava a sério.

— Não é a Vivian que tem de pedir desculpa.

— Em certo sentido, sou. Há muita coisa por que tenho de me desculpar, em volta desse incidente. E agora ainda mais, depois de ouvir tudo isto.

— A Vivian também pensou nisto o tempo todo? — perguntou ele.

— Pensei naquela viagem de carro durante muito tempo — admiti. — Nas suas palavras, especialmente. Foi duro para mim. Não vou fingir que não foi. Mas pus tudo para trás das costas há uns anos, e já não pensava no assunto. Por isso, não se preocupe, Frank Grecco… não me estragou a vida, nem nada do género. E se concordarmos em riscar todo este triste acontecimento dos livros?

Ele parou de andar abruptamente. Deu meia-volta e olhou para mim, de olhos muito abertos.

— Não sei se isso é possível.

— Claro que é — insisti. — Vamos encarar tudo isto como coisa de pessoas muito jovens que não sabiam como se comportar.

Pus a mão no braço dele, querendo que sentisse que ia correr tudo bem agora, que tinha terminado.

Mais uma vez, tal como tinha feito no dia em que nos conhecemos, ele afastou o braço, quase violentamente.

Desta vez, devo ter sido eu a encolher-me.

Ele ainda me acha repelente, foi como o li. Uma vez putinha sem vergonha, sempre putinha sem vergonha.

Ao ver a minha expressão, o Frank fez uma careta e disse:

— Oh, meu Deus, Vivian, desculpe. Tenho de lhe dizer. Não é por sua causa. Eu só não consigo… — Calou-se, olhando impotentemente para o parque, como que em busca de alguém que o resgatasse daquele momento, ou me explicasse o que ele era. Corajosamente, tentou de novo. — Não sei como dizer isto. Odeio como tudo falar do assunto. Mas não consigo ser tocado, Vivian. É um problema que eu tenho.

— Ah. — Dei um passo atrás.

— Não é a Vivian — continuou. — É toda a gente. Não consigo ser tocado por ninguém. É assim desde isto. — Acenou com a mão para o lado direito do corpo. Onde as marcas de queimaduras lhe subiam pelo pescoço.

— Foi ferido — disse eu, como uma idiota. Claro que ele foi ferido. — Desculpe. Não tinha compreendido.

— Não, tudo bem, não podia saber.

— Não, lamento muito, Frank.

— Sabe que mais? Não foi a Vivian que me fez isto.

— Mesmo assim…

— Houve outros tipos que ficaram feridos naquele dia. Eu acordei num navio-hospital com centenas de homens, alguns ainda mais queimados do que eu. Fomos retirados da água a arder. Mas montes deles estão bem agora. Não compreendo. Não têm esta coisa que eu tenho.

— Esta coisa — repeti.

— Esta coisa de não aguentar ser tocado. Não ser capaz de me sentar quieto. Esta coisa que tenho com espaços fechados. Não consigo. Estou bem dentro de um carro desde que seja eu a conduzir, mas, em qualquer outro lado, se tiver de ficar sentado muito tempo, não consigo. Tenho de ficar de pé, o tempo todo.

Por isso é que ele não quisera encontrar-se comigo no restaurante, nem sentar-se comigo num banco do parque. Não conseguia estar num espaço fechado e não conseguia sentar-se quieto. E não conseguia ser tocado. Era provavelmente por isso que era tão magro — por precisar de estar sempre a andar de um lado para o outro.

Santo Deus, este pobre homem.

Vi que ele começava a ficar agitado, por isso perguntei:

— Quer dar mais uma volta comigo pelo parque? Está uma tarde agradável, e eu gosto de andar.

— Por favor — disse ele.

E foi isso que fizemos, Angela.

Andámos e andámos e andámos.