CAPÍTULO 14

Consultar a Pedra do Tempo era uma experiência arrasadora. Os corpos acabavam prostrados e as essências lançadas numa voragem que testava os limites da resistência. Porém, quando o vento feroz nos capturou, a força de Thorson manteve-nos unidos. Girámos e rodopiámos sob a pressão do ar, até os ossos quase se desconjuntarem. Gritei e ele bradou:

— Não permitirei que nos separem...

De repente, a impetuosidade do remoinho acalmou. Repousámos no âmago de uma névoa consistente e Thorson descobriu que podíamos suster-nos. Prestes a bruma se fendeu e a luz invadiu os nossos olhos, obrigando-nos a cobri-los. Quando nos habituámos à claridade, não contive uma exclamação de pasmo e maravilha. A magia conduzira-nos a um lugar deslumbrante! Diante de nós estava um lago imenso, que refletia o azul do céu e seduzia os mais puros raios de sol. A abraçar esse espelho de água encontrava-se uma floresta luxuriante que exalava verde: intenso, fresco, único... O verde dos meus olhos! Eu nunca estivera neste sítio, mas a sua essência fazia parte de mim. Este era o Lago Encantado da Floresta Sagrada da Grande Ilha.

O ruído de um ramo a quebrar-se fez-me prender o fôlego. Segui o som e deparei com uma jovem vestida de azul e prata. Os seus longos cabelos negros estavam repletos de caracóis, enfeitados com fitas de seda que esvoaçavam ao sabor da brisa que nos envolvia. Avançava até à margem do lago, mergulhava os pés descalços na água e o seu rosto iluminava-se num sorriso matreiro... Um rosto que, traço a traço, era igual ao meu! O coração quase me saltou pela boca ao concluir que estava perante a feiticeira Aranwen.

— Não... — ouvi Thorson tartamudear. — Não é possível!

Fui incapaz de emitir um som. Espantada, vi os olhos da nossa antepassada cerrarem-se e os braços delicados estenderem-se, como se tencionasse abraçar o Sol. Os lábios rosados libertaram a sua voz... Pronunciava um encantamento como se entoasse uma canção! Então, a superfície do lago agitou-se e uma pedra surgiu, ficando a pairar sobre a água. Seguiram-se outras seis. Serenamente, Aranwen atraiu-as para as suas mãos e regressou à margem.

Sem pressa e com extremo cuidado, a minha trisavó desenhou um círculo em seu redor, sobre a areia... Um anel de poder! Ao longo do interior desse círculo, os dedos hábeis marcaram sete símbolos. Reconheci-os como pertença da linguagem antiga que eu aprendera nos livros do meu trisavô Hakon: liderança, paixão, sabedoria, força e destreza, concórdia, restabelecimento e beleza e arte. Sobre cada símbolo colocou uma das pedras que acabara de colher no lago. Depois, quedou-se no centro do anel e, à volta do seu corpo, traçou um círculo mais pequeno, encerrando-se dentro dele.

Senti a mão de Thorson buscar a minha. Encarei-o e verifiquei que o olhar azul refletia as emoções que me faziam estremecer. Já percebêramos que a Pedra do Tempo nos conduzira até ao instante em que tudo começara. Os Seres Superiores estavam prestes a castigar Aranwen com o exílio na Terra e a perda do seu poder! Os nossos avós, pais e tios tinham ouvido relatar este incidente... Graças à Senhora da Magia, nós íamos testemunhá-lo.

Cercada pelos dois círculos, a jovem feiticeira aguardava com o fôlego descompassado. Estava nervosa! Apesar de se ter preparado bem, ignorava se o ardil iria resultar... De repente, uma chuva de relâmpagos precipitou-se do céu com um estrondo atroador. A sua energia ardente fustigou Aranwen, fazendo-a convulsar e cair inconsciente. Por momentos, nada aconteceu. A nossa antepassada jazia como se morta! Então, a sua pele começou a espargir um vapor de partículas cintilantes, só comparável a pó de estrelas. Engoli em seco, tomada pela comoção. Aquilo era a materialização da magia vibrante e esplêndida que compunha a essência de uma das mais poderosas feiticeiras que jamais tinham vivido; tão real aos nossos olhos como se fosse sangue a esvair-se! Essa magia primordial devia regressar às origens, como sucedera com outros seres do ar igualmente condenados... Todavia, Thorson e eu sabíamos que não era isso que ia acontecer.

A tremer, vimos a nuvem de partículas luzentes que adejava sobre Aranwen a condensar-se, cativa da influência do círculo interior. Ainda sentimos a força atrativa, que deveria sugá-la para a Ilha Sagrada, a sacudir-nos as vestes e a arder na pele. Porém, depressa perdeu o alento, impotente para adversar o sortilégio de retenção. E, à medida que a energia que servia o Conselho dos Seres Superiores se extinguia, as partículas da magia usurpada a Aranwen combinavam-se e assumiam cores distintas, até se transformarem em sete raios.

O que se seguiu foi fascinante... Dir-se-ia que os aros de um arco-íris se tinham separado e iniciavam uma dança irrequieta, entre­cruzando-se numa espiral cada vez mais ampla. Sempre que roçavam a proteção mística que os prendia, esta enfraquecia como se esti­vesse a alimentá-los com a sua energia. Por fim, o anel interior traçado por Aranwen desapareceu e os sete raios ficaram livres para explorar o círculo exterior. Animados por um propósito, cada um desviou-se na direção dos símbolos marcados na terra: o verde para a liderança, o vermelho para a paixão, o branco para a sabedoria, o roxo para a força e destreza, o amarelo para a concórdia, o azul para o restabelecimento e o cor de laranja para a beleza e arte. Adejaram sobre as pedras encantadas... E mergulharam.

Os seixos resplandeceram como se incandescentes. Estávamos no meio da floresta, mas não se escutava um som, como se o tempo tivesse estacado. A fulgência das pedras atenuava-se... Aos poucos, assumiam as cores dos raios que as tinham trespassado. As cores da magia! As cores do destino que haveria de marcar toda a descendência da feiticeira Aranwen!

Concluída a sua missão, a energia que alimentara o anel de poder também se dissipou. Porém, a jovem que era a nossa antepassada continuava sem se mexer. Dilacerada pela ansiedade, ousei um passo... No entanto, Thorson puxou-me para trás e abanou a cabeça em negação, com uma expressão que dizia: «Não podemos interferir!»

Nesse instante, um ruído sobressaltou-nos. Virámo-nos para a feiticeira e quase gritei de susto ao encontrá-la de pé, a fixar-me com olhos enormes, luminosos, aterradores. Thorson envolveu-me na proteção dos seus braços... No entanto, a Entidade que era Aranwen, sem, contudo, o ser, limitou-se a ribombar:

«Uma decisora deve decidir!»

Sem saber como, dei por mim com as mãos erguidas. Um calor súbito obrigou-me a abri-las... E assombrei-me ao deparar com as sete pedras mágicas.

— K... Kelda...? — balbuciou o meu primo, tão perplexo quan­to eu.

Não respondi. Mal conseguia respirar. Sentia a magia ardente que animava as pedras a pulsar sobre as palmas das minhas mãos, desejosa de se imiscuir na essência. E, devido à nossa proximidade, Thorson apreendia-a também. Estremeceu quando assumi a iniciativa de arrostar a feiticeira e indagar, estrangulada:

— O que devo fazer?

A claridade ofuscante do olhar de Aranwen começou a espalhar-se pelo seu corpo, como se fosse assimilá-la, enquanto a voz troante declarava:

«Sobe a Montanha da Magia, decisora. Sob a aura divina das Pedras do Mundo farás o que tem de ser feito.»

Então, a sua figura relampejante desvaneceu-se numa explosão de luz. Desprevenidos, fomos apanhados nessa onda de energia... Concluída a revelação, a Pedra do Tempo reclamava as nossas consciências.

Despertámos em simultâneo. Eu tinha a sensação de ter sido espezinhada por uma manada de bois. Thorson levava a mão à fronte, com um gemido dorido. Estávamos deitados na erva virgem, onde tombáramos. A Pedra do Tempo ensombrava-nos, elevando-se muito acima das nossas cabeças como se rasgasse o manto plúmbeo do céu. Era impossível discernir se a noite já descera sobre a realidade do Homem, pois uma violenta tempestade voltara a cobrir o Norte com trevas. Todavia, em nosso redor, pairavam partículas luminosas que me permitiam enxergar o meu primo. Sentara-se e mirava-me com os olhos arregalados e as faces coradas.

— A revelação de Aranwen foi real? — entaramelei, tentando amenizar o desconforto.

— Diz-me tu — ripostou, apontando para o meu colo.

Baixei os olhos e o meu queixo pendeu ao deparar com quatro pedras coloridas: uma verde, uma roxa, uma cor de laranja e uma vermelha. Arfei, suplantada pelo pasmo, antes de reunir coragem para lhes tocar. De imediato, a sua energia colou-se à minha pele, fazendo-me arrepiar. Fixei Thorson, abrindo e fechando a boca qual peixe prestes a sufocar. Contudo, foi ele que se manifestou, indagando gravemente:

— Essas são as pedras mágicas que a Montanha mantém ao seu cuidado, correto? Sei que levaste a azul para a Ilha dos Penhascos... Mas tens a certeza de que a branca e a amarela estão escondidas no quarto do Mestre Supremo da Ilha Sagrada?

— Sim — volvi. — Tenho a certeza absoluta.

— Então, como é que a Pedra do Tempo quer que tu as reúnas e assimiles a sua magia?

A interpelação de Thorson atingiu-me como uma bordoada na cabeça. Reunir as pedras de Aranwen? Assimilar a sua magia? Eu!?

— Com mil ratazanas aturdidas... — arquejei, chocada. — Só posso estar a delirar!

— Se eu não tivesse partilhado a tua Visão, não acreditaria — confessou o meu primo. — Todavia, não subsistem dúvidas! As sete pedras estavam na tua mão e Aranwen mandou-te subir a Montanha da Magia e fazer o que é devido. Depois, a Pedra do Tempo entregou-te as pedras que guardava.

Passei a mão pela testa, assolada pela confusão. E Thorson continuou com cautela:

— Não entendo... Estamos no inverno. É impossível navegar até à Ilha dos Penhascos para recuperar a pedra azul. Antes de lá chegar­mos, já Halvard terá morto Lysander e destruído o que resta do arquipélago. E como resgatarás as demais pedras? A não ser...

Hesitou e engoliu em seco, como se tivesse as palavras na ponta da língua, mas fosse incapaz de proferi-las. Sacudi a cabeça, sem alcançar o fio do seu raciocínio. Por fim, os olhos azuis adquiriram um brilho intenso ao completar:

— Talvez a Observadora da Ilha Sagrada possa ajudar-te. Afinal, bate-se pela nossa causa!

— Não... — tartamudeei. — Não...

— Evoca uma Visão e tenta falar-lhe — insistiu. — Se a magia da Montanha Sagrada é similar à magia do Observatório, não deve ser difícil. Posso ceder-te a minha energia...

— Não, Thorson! — atalhei com firmeza, elevando o tom para extinguir o seu entusiasmo. — Mesmo que conseguisse tocar a consciência de Íris, não podia pedir-lhe que invadisse o quarto do Mes­tre Supremo e roubasse as pedras! Eu vi-a quando Ingimar invocou o trilho que me trouxe até aqui. Não parecia a mesma... Arriscaria alvitrar que o Conselho a subjugou! Não obstante, ainda que Íris se mantivesse íntegra, entregar-lhe tal missão seria condená-la à morte.

Essa refutação empurrou o meu primo para um silêncio profundo, quase sombrio. E eu também me quedei, transtornada, ao recordar a minha passagem pela Ilha Sagrada. Não esquecia a cintilação do trilho mágico, o riso triunfante de Ingimar, a prostração da Observadora, a pose altiva de Celsus... De súbito, uma ideia invadiu-me a mente, qual baforada de vento. Era uma loucura... Um perfeito disparate! Porém...

Concentrei-me nos recursos que possuía para pôr esse plano em marcha. Conhecia a localização das pedras e o segredo do cofre que as guardava. Sabia como evocar trilhos de luz... E tinha o poder de me esgueirar despercebida debaixo do nariz dos meus inimigos! Se ignorasse a temeridade da empresa, esta assomava-se exequível. Afinal, o que tinha a perder? Se não agisse de imediato, enquanto beneficiava da bênção da Pedra do Tempo, o tempo escoar-se-ia e todos aqueles que amava acabariam esmagados pelo ódio de Halvard.

— Thorson... — apelei, agitada por um frémito de determinação. — Já sei o que devo fazer.

Deixámos o trilho da Montanha e embrenhámo-nos na Floresta dos Carvalhos. Continuava a nevar, embora o vento já não soprasse com tanta irascibilidade. O frio era letal, mas mal o sentia, protegida pelas roupas quentes que encontrara guardadas numa arca. Quase de certeza pertenciam à tia Thora, pois serviam-me perfeitamente. Só esperava fazer-lhe justiça!

Ponderara trazer armas, mas desistira. Só me iriam atrapalhar. Era imprudente usar ferro forjado pelo Homem contra um ente de sangue mágico. Além disso, não me propunha invadir os domínios de um feiticeiro qualquer... Ia entrar no covil do Mestre Supremo! Não obstante Íris me ter assegurado de que a destreza mística do seu soberano depauperava, consequência das resoluções que tomara em desacordo com a «consciência» da Ilha Sagrada, eu era uma mosca a tentar picar os beiços de um lobo.

— Ainda não sei como me convenceste a apoiar-te neste desatino!

O desabafo de Thorson foi ciciado, como se alguém pudesse es­cutar-nos... E, no fim, talvez a Observadora estivesse mesmo a espiar-nos! Essa ideia fez-me estugar o passo. Se a mente de Íris fora corrompida, mal se apercebesse da minha intenção correria a alertar Celsus. No entanto, eu não podia partilhar tais receios com o príncipe vândalo... Ao menor sinal de hesitação, Thorson arrastar-me-ia de volta à Mon­tanha e esta aventura findaria antes de se iniciar. Por isso, tentei soar firme ao ripostar num gracejo:

— Limitei-me a impor-te a minha condição de decisora... É bom que te habitues!

Ele retribuiu o sorriso e controverteu:

— Não abuses, Kelda! Ainda sou o teu primo mais velho!

Senti um nó atar-se na garganta. Em todas as reações, Thorson era o oposto de Halvard... Como era possível que as Entidades que regiam os nossos destinos tivessem moldado dois Filhos do Dragão tão distintos? Há muito que deixara de acreditar que essa diferença resultava da educação que tinham recebido. Sigarr não corrompera Halvard... O meu irmão já nascera retorto.

— Este é um bom lugar — anunciei, desejosa de concluir a minha missão.

— Se nunca fizeste isso, como sabes que irá resultar? — indagou Thorson, de novo vacilante. — E, mesmo que concretizes o feitiço, quem te garante que não cairás no colo do inimigo?

Inspirei um fôlego de resolução e volvi:

— A magia da Ilha Sagrada já me protegeu antes. Não vai desamparar-me agora! — Apertei-lhe as mãos e aditei: — Espera aqui... Se eu não regressar antes de o dia nascer, terás de avisar a Ilha dos Penhascos de que Halvard irá atacá-los.

— Kelda... — ainda protestou. Mas eu já fixava a nesga de céu de tormenta desvendada pelas copas cerradas das árvores. Inflamei a energia da feiticeira que habitava em mim e murmurei:

— Por favor, conduz-me a um lugar seguro.

Fechei os olhos e entoei o encantamento. A exclamação assombrada do meu primo anunciou-me que fora bem-sucedida. Encarei o trilho de luz, num misto de soberba e apreensão. Agora só tinha de me concentrar em não terminar a noite nas garras de Celsus.

— Leva o meu punhal — suplicou Thorson. — Foi um presente de Lysander, por isso resistirá aos malefícios dos feiticeiros... Por favor! Ficarei um pouco mais tranquilo se souber que tens outra forma de te defender, na eventualidade de a magia falhar.

Hesitei, mas acabei por condescender. Prendi o punhal no cinto e sussurrei, comovida:

— Obrigada! Deseja-me sorte...

O meu primo estreitou-me e beijou-me a testa, ripostando roucamente:

— O mal não dorme, Kelda... Faz o que tens de fazer e volta depressa. Precisamos de ti para vencer.

O trilho conduziu-me até à Cascata Sussurrante, situada nos confins dos jardins do Castelo de Cristal. Apesar de este ser um lugar de extrema beleza, os Feiticeiros só o procuravam para meditar. A noite corria avançada, por isso estava deserto. Mal pisei a erva verdejante da margem, a luz mística extinguiu-se, deixando-me mergulhada numa penumbra serena, alimentada pelo canto rico e harmonioso da água que escorria pelas pedras rosadas, formando um pequeno lago digno de uma história de encantar. Cerrei os dentes, inferindo quão pesada soava a minha respiração. Tinha de me acalmar! Fixei as mãos para confirmar que a capacidade de me tornar invisível se manifestara e encarei, com renovada confiança, o caminho que se estendia em frente. Se a Ilha Sagrada não apoiasse a minha iniciativa, a sua magia já me teria denunciado.

Corri tão rápido quanto as pernas permitiam, buscando o abrigo das sombras. Atravessei o jardim e alcancei a infindável escadaria que conduzia ao Castelo de Cristal, sem avistar ninguém. Subi os degraus e entrei no covil do ser mais poderoso da Terra. De imediato, percebi que a magia governava todo o espaço. E que outra coisa seria de expectar? Passagens de energia cintilante sucediam-se a passagens de energia fulgurante; abriam-se diante de mim, como se o próprio castelo me estivesse a conduzir! Decidi confiar na vontade da Ilha Sagrada... E, de súbito, dei por mim no interior de um aposento onde o branco reinava do chão ao teto, da cama às cobertas e em todos os adornos e enfeites. Estremeci, incerta sobre se devia regozijar-me ou gelar de pavor... Descobrira o quarto de Celsus!

A claridade que reinava em meu redor quase feria os olhos. Será que a consciência atormentada do Mestre Supremo o levara a inundar o espaço com luz, para contrariar as trevas que assombravam os seus sonhos? O alvor da decoração era tão monótono que enjoava. A cama estava aberta e já fora usada... Porém, nem sinal do feiticeiro! Mais do que nunca, urgia apressar-me. Se o abjeto se levantara a meio da noite, alguma razão tivera.

Suspirei de alívio ao ver o quadro desvendado pela Visão do Óculo suspenso na parede leitosa. Aproximei-me, sentindo o pelo do tapete a engolir as botas. Era como andar sobre uma nuvem! Quedei-me diante do quadro composto por pregas verticais de branco níveo e a magia inata que vivia em mim ajudou-me a recordar com precisão a sequência dos movimentos de Celsus. Tal como se reagisse às ordens do seu senhor, o quadro assumiu uma candência gradual sob o meu toque, acabando por explodir em centelhas de prata... E o esconderijo revelou-se.

Na Visão, o cofre parecera-me exíguo. Sob o meu olhar, estendia-se até ao infinito! Devia ser aqui que o Mestre Supremo armazenava os tesouros que conquistara ao longo da vida. Com mil ratazanas desatinadas, como conseguiria achar o legado de Aranwen num espaço místico que não tinha fim? Então, o pasmo tornou a suplantar-me. Bastara-me pensar e o meu desejo realizara-se! Eis que as pedras surgiam do nada e só aguardavam que eu lhes deitasse a mão.

A pedra branca da sabedoria e a pedra amarela da união, roubadas à minha família ainda antes de eu nascer, encontravam-se em meu poder... Pulsavam, reconhecendo a minha essência! Enquanto as acariciava entre os dedos, verifiquei que estavam sujas como se pingadas com sangue. Tentei limpá-las, mas apenas espalhei a mancha. Raios, tais cuidados teriam de esperar! Dispus-me a sair, tão rápida e esquiva como entrara. Contudo, uma alteração no equilíbrio da energia que alimentava o ar cortou-me a respiração. Virei-me em pânico... E deparei com um homem alto e esguio, acabado de chegar.

O Mestre Supremo ostentava um roupão branco, onde aplicações ebúrneas intercalavam com plumas alvas. Os cabelos pretos, sempre impecavelmente penteados, tombavam-lhe desgrenhados sobre os ombros, denunciando um sono revoltoso. Estacara abruptamente e mirava-me com olhos esbugalhados. Mas como, se eu continuava invisível, assim como as pedras sob a minha influência? De repente, fez-se luz na minha mente e apeteceu-me esbofetear-me de tão estulta. Celsus não me enxergava! Só não podia deixar de reparar no cofre aberto! Além disso, as minhas botas marcavam buracos profundos no pelo alto do tapete. Logo, o réprobo tinha perfeita consciência do local onde me quedava.

— Quem és tu? — rugiu, enrubescendo de fúria. — Como te atreves...?

Devagar, enfiei as pedras na bolsa que carregava à cintura. Fora longe de mais para perder esta batalha! Se a magia da Ilha Sagrada me guiara até aqui, também me apoiaria na fuga.

— Vais sofrer por esta afronta... — começou. Porém, não lhe dei o ensejo de concluir.

Talvez Celsus já tivesse sido um bom guerreiro... Todavia, após séculos em que o único músculo que exercitara fora a língua, a sua reação tornara-se lenta. Saltei sobre a cama e arrastei as cobertas comigo, recorrendo à magia para lançá-las sobre o facínora. Ele grunhiu um impropério pouco digno da sua posição e prestes revidou, destroçando a manta com um sopro do seu poder. Contudo, essa distração bastou para me garantir passagem.

Saí do quarto com as ameaças do feiticeiro a estrondearem nas minhas costas. Corri com a resolução inflamada, sem olhar para trás. Tal como sucedera antes, a magia do Castelo de Cristal guiou-me incólume até ao exterior, como se nenhum mal me pudesse ocorrer sob a sua aura. Porém, mal pisei as escadas, percebi que estava em apuros. Para além do Mestre Supremo, cinco guardas precipitavam-se no meu encalço.

— Detenham-no!

Galguei três e quatro degraus de uma só vez, concentrada em man­ter a invisibilidade. Se os ignóbeis não me tinham alcançado no castelo, também não o fariam sob a penumbra noturna, na vastidão do jardim. Os seus brados de frustração provavam-no:

— Para onde foi?

— Desapareceu!

Cheguei ao fim das escadas e continuei a correr rumo à Cascata Sussurrante. Um sorriso vitorioso principiava a torcer-me os cantos da boca. Apesar de tudo, fora fácil...

Inesperadamente, um calor abrasador queimou-me a pele e arrancou-me um grito. Tombei no chão, subjugada pela dor e pela confusão. Os olhos discerniram o clarão que me brotava da cintura, ainda antes de a mente se aperceber de que a minha bolsa estava em chamas.

— E agora? Já o veem? — fremiu Celsus, num misto de raiva e arrogância. — Apanhem-no!

Rebolei na erva fresca e socorri-me da magia para extinguir as laba­redas que tentavam devorar-me. Acabei com a roupa em farrapos e a pele da barriga em chaga. No meio do caos, a bolsa ficara em cinzas e as pedras caídas a alguns passos de distância. Com os dentes cer­rados, concluí que tinham sido precisamente as pedras a ditar a minha desgraça. Agora entendia o significado das manchas que as cobriam! O Mestre Supremo marcava os seus tesouros, vertendo, sobre cada um deles, uma gota de sangue com um sortilégio incluso. Assim, se alguém se atrevesse a roubá-lo, bastar-lhe-ia um pensamento para que a magia se manifestasse. E a sua vontade ordenara que as marcas nas pedras se incendiassem, denunciando-me à sua perceção.

Tentei restabelecer a invisibilidade, mas estava tão transtornada pelo medo e pelo suplício da queimadura que o esforço foi inútil. Do topo da escadaria, Celsus cuspia iracundo:

— Tinhas de ser tu, impura insolente! Vou ensinar-te a respeitar quem te é superior. Tragam-na de volta! Inteira! Infelizmente, preciso dela...

Sim! Ironicamente, ser crucial para a realização da profecia do Filho do Dragão tornara-se uma vantagem. Pelo canto do olho, vi o brilho branco e amarelo das pedras. Estavam livres da influência maligna... E eu não ia desistir de reclamá-las, nem, muito menos, render-me!

Os guardas desciam os degraus e o meu instinto troava em alerta. Mais uma vez, era como jogar o Jogo da Antecipação. Movimento... Pulsação... No instante em que Celsus levantava o braço para atrair as pedras, desprezei a dor e saltei sobre elas. A perturbação causada pela sua magia ainda me agitou os cabelos. Ouvi-o rugir, enquanto me sustinha com os troféus na mão. Porém, de que me servia...? Os seus lacaios iam cair-me em cima!

Tombei no cerne de uma tempestade. Os guardas tentavam imobilizar-me. Eu evocava a magia para repeli-los. Eles anulavam a minha defesa e atacavam. Eu contrafazia os seus feitiços e recuava... Mas não o suficiente! Perdi o ar. Perdi as forças. Perdi o chão... Pensei que era o fim! Celsus fremia... Então, alguém surgiu da bruma e escudou-me, surpreendendo os meus émulos. Bastou-lhe agitar os braços para projetar os guardas num voo letífero, ao mesmo tempo que clamava:

— Foge, Kelda! Foge!

Fixei Íris, petrificada. O que é que estava ela a fazer? O Mestre Su­pre­mo haveria de castigá-la severamente por isto! Como se em resposta, Cel­sus estrondeou do cimo da escadaria:

— Perdeste o siso, Íris? Prende a humana ou nunca mais assentarás os pés no Observatório!

Tentava debelar a sublevação da súbdita, atacando-a onde mais lhe doía. Todavia, a jovem ignorou-o. O seu rosto propalava aflição, mas também uma resolução férrea, quando evocou o seu poder para criar um trilho de luz a poucos passos. Encarou-me e ordenou com premência:

— Vai, Kelda! Eles não podem destruir esse caminho, mas a sua energia esgotar-se-á em pouco tempo.

— Não irei deixar-te à mercê daquele tirano! — protestei.

— Apanhem-nas! — já ordenava Celsus.

— Essa decisão é minha — contestou a Observadora. — Des­pacha-te!

E lançou-se contra os guardas. Para alguém sem treino de combate, Íris desenvencilhava-se bem! A sua magia era mais forte do que alguma vez deixara transparecer! Ainda assim, dois energúmenos escaparam ao seu bloqueio e acometeram contra mim. Em simultâneo, o alerta do meu instinto tornou a soar. De novo, Celsus preparava-se para reclamar as pedras. E eu não podia protegê-las enquanto lutava! Só havia uma maneira de resguardá-las.

Num ímpeto, enfiei a pedra branca na boca e engoli-a. Engas­guei-me e as lágrimas saltaram-me dos olhos. Contudo, logo a amarela seguiu o mesmo rumo. Estava tão aflita que fui incapaz de me defender do ataque de um dos feiticeiros. Recebi uma explosão de energia em pleno peito e esmaguei-me contra o solo. No entanto, não obstante o aparato da queda, sofri meras beliscaduras. Atento às instruções do soberano, o imbecil apenas quisera atordoar-me. Curvou-se para puxar-me pelo braço, bramindo:

— Julgas-te esperta? E agora o que é que...?

Levantei as pernas e aprisionei-o pelo pescoço, aproveitando o impulso para projetá-lo por cima do meu corpo. Depois, sustive-me sob o olhar pasmado do segundo guarda. Sem lhe dar o ensejo de reagir, rodopiei no ar e pontapeei-o nas fuças. Vi-o cuspir sangue e dentes, antes de me desviar de outro raio... Fora o próprio Celsus quem o lançara! Quanta honra! Essa energia ardente acabou por atingir o primeiro guarda que, entretanto, voltava à carga. Caiu estendido, a fumegar. O companheiro que recebera o pontapé também não se mexia. Pude inspirar um fôlego e interiorizei que o tormento causado pela queimadura no ventre quase se extinguira. A magia que os meus avós extraíam da Árvore da Sabedoria acelerava a regeneração! Virei-me para ajudar Íris... E afligi-me ao verificar que a minha amiga fora capturada e estava inconsciente. Os guardas arrastavam-na para a escadaria. Todavia, Celsus berrava, num tom que soou chocado por eu me ter livrado dos seus lacaios:

— Deixem a Observadora! Detenham a humana...

Como se eu fosse fugir e abandonar Íris! A fúria tomou conta de mim... O Dejeto Supremo era um dos principais responsáveis pela guerra que o meu povo tinha de travar. Podia ser o ente mais poderoso da Terra, mas não me veria a tremer.

De imediato, os guardas soltaram Íris. Dois investiram contra mim. Lancei-me sobre eles: punho na cara de um; bota na face do outro. Uma reviravolta. Bota nas frontes do primeiro e cotovelo no nariz do segundo. O sangue antigo jorrou... Fustigaram-me com ondas de energia, mas desfi-las facilmente. Era incrível como os sé­culos de inércia tinham enfraquecido a destreza combativa desta gente! O segundo guarda desfaleceu aos meus pés. O primeiro recebeu uma joelhada entre as pernas e tombou no chão, a ganir de dor. Com mil ratazanas esmagadas, os Seres Superiores não eram tão diferentes dos humanos como proclamavam!

O feiticeiro que ficara para trás evocara o seu poder para criar uma vara de fogo. Enfim acometeu, manejando-a com admirável perícia... Todavia, eu era Kelda da Montanha Sagrada! No derradeiro instante, esquivei-me, torci o corpo e capturei a arma mística. Rodámos com as mãos fechadas na haste, medindo forças. O feiticeiro fitava-me, assom­brado. Devia interrogar-se como é que a minha condição humana me permitia enrolar os dedos em torno das chamas, sem que estas me queimassem. Há pouco, vira-me arder... Há pouco, eu fora apanhada desprevenida! Espantou-se ainda mais ao constatar que o fogo se transformava em gelo debaixo dos seus dedos. Inferir que a minha vontade sobrepujava a sua fê-lo chiar de terror e soltar a vara. Empunhei-a com precisão e arremessei-a contra o seu crânio. O imbecil revirou os olhos e ruiu como se não tivesse ossos.

A perceção de movimento nas minhas costas fez-me saltar para o lado. A disputa não estava resolvida! O guarda que ficara a ganir recompunha-se... Porém, Íris também se levantava e reclamava a presa para si, corada de indignação. Confrontado com o poder fulminante da sua investida, o seu émulo caiu prostrado, sofreu duas convulsões e deteve-se, retesado como um bacalhau seco.

Abraçámo-nos, exultantes perante a colossal adversidade que acabáramos de superar. Todavia, antes que pudéssemos proferir uma palavra, já Celsus uivava de ódio, pulava do topo da sua sobranceria e precipitava-se contra nós, qual falcão gigante com a morte nas garras.

— Desce o trilho, Kelda — suplicou Íris, empurrando-me na dire­ção da luz. — Rápido!

— Tens de vir comigo — objetei, sacudindo-a. — Se ficares aqui morrerás.

Os seus olhos dilataram-se ao tomar consciência de que eu tinha razão. Contudo, antes que pudesse replicar, fomos colhidas e separadas por uma violentíssima explosão de energia.

Bati contra o tronco de uma árvore e as trevas cobriram o jardim. Só não perdi os sentidos porque a luz da minha essência tornou a fulgurar com ardor. Mesmo cega, obriguei-me a suster. A energia curativa do Povo da Terra era realmente prodigiosa! Já divisava pontos brilhantes a rasgarem a cerração, como estrelas cintilando num céu noturno. Escutei o grito agoniado de Íris e julguei que o réprobo a atacara. Então, senti um braço de ferro a rodear-me o pescoço, aper­tando-o até me arrancar os pés do chão.

— Sabes o que te vou fazer, impura? — ululou Celsus, louco de raiva. — Vou entregar-te ao teu irmão e ordenar-lhe que te submeta às piores torturas!

Levei as mãos à garganta, sufocada. Distingui a copa da árvore a ondular e um súbito clarão, como um relâmpago a despenhar-se sobre nós à velocidade do pensamento. Antes que conseguisse raciocinar, uma nova explosão de energia fez-me bradar de dor. Todavia, apenas recebi os resíduos do seu efeito devastador. Tombei no solo, atordoada, mas livre do aperto que me asfixiava. Nesse instante, os berros lancinantes de Celsus fustigaram-me os ouvidos. E a verdade fez-me arfar de estupefação... A Observadora ousara atacar o Mestre Supremo!

— Rápido, Kelda! — apelou, pegando na minha mão. — Antes que o trilho se extinga...

Segui-a aos tropeções. Quando consegui restaurar a visão, os meus pelos eriçaram-se. O tumulto acabara por atrair a atenção dos habitantes da Ilha Sagrada. As casas mais próximas enchiam-se de luz... Prestes, o jardim estaria repleto de feiticeiros a reclamarem a nos­sa pele.

O caminho mágico era um raio de esperança a rasgar as trevas. Nas nossas costas, Celsus roncava e voltava a arremeter. Pensei que devia estar arrependido de não ter troado um alarme... Decerto quisera poupar-se à vergonha de confessar aos súbditos que uma humana invadira o Castelo de Cristal, assaltara o seu quarto e quase escapara impune. Se a sua guarda pessoal tivesse reposto a ordem, o incidente passaria despercebido e o seu orgulho não sofreria mácula. O facto de Íris se ter aliado a mim penalizava-o ainda mais! Ela era a única Observadora que restava. Sem a sua colaboração, o Conselho ficaria cego para a realidade do Homem.

Pisámos o trilho e Íris vacilou. Dei-lhe um esticão e lancei-lhe um olhar severo. Finalmente, ela rendeu-se. Desatámos a correr rumo à Terra, cientes de que a morte galopava no nosso encalço. As minhas pernas doíam, os pulmões ardiam e o coração ameaçava rebentar. Íris também respirava aos soluços, mas não se queixava. No Norte do mundo continuava a nevar... Todavia, nesse instante, aquela paisagem agreste de inverno até me pareceu acolhedora! Já quase tocávamos nas copas das árvores da Floresta dos Carvalhos quando uma sombra adejou sobre nós... E o soberano dos Feiticeiros saltou por cima das nossas cabeças, aterrou no trilho e cortou-nos a fuga.

— Como ousais, miseráveis? — trovejou com os olhos em chamas.

Quis avançar, preparada para enfrentá-lo. Porém, Íris deteve-me, rogando aflita:

— Não... Ele é demasiado poderoso!

— O execrável não pode matar-me — contestei com firmeza.

— É verdade... — rugiu Celsus. — Mas essa traidora já não me serve para nada!

Enormes esferas de energia soltaram-se dos seus dedos e atingiram Íris, fazendo-a contorcer-se na orla do abismo, como uma folha seca à mercê de um furacão. Depois, sem que eu pudesse impedi-lo, o Celerado Supremo arrojou-a para fora do trilho numa queda vertiginosa. Os gritos da minha amiga gelaram-me o sangue... No entanto, o pior foi o silêncio que se seguiu.

— Monstro! — bradei. Porém, Celsus já me enredava na sua magia e esmagava contra a energia do trilho, exercendo pressão até o meu corpo se enterrar na solidez radiosa e os ossos suplicarem por clemência. Mordi os lábios para não gritar... E, percebendo-me aturdida, Celsus caiu-me em cima e varou-me o olhar, vociferando:

— Achaste que engolir as pedras era uma ideia brilhante? Que assim me impedirias de resgatá-las? Tens sorte de eu precisar de ti viva, sua ordinária, senão arrancava-te as tripas!

Dito isto, distendeu os dedos diante dos meus lábios. Senti o seu poder como uma serpente de ar a invadir-me a boca, violando a gar­ganta e deslizando pelo canal. O feiticeiro tencionava arrancar as pedras do meu estômago? As lágrimas inundaram-me os olhos, tamanha a agonia... Então, quando a dor já se tornava insuportável, uma lâmina surgiu rente à sua garganta e o vozeirão de Thorson fez-me estremecer:

— Liberta-a ou juro que te mato!

O meu primo vira o trilho aparecer e, confrontado com o caos que se gerara, não hesitara em subi-lo para me socorrer. Agora tinha o soberano da Ilha Sagrada cativo da sua espada! O feiticeiro riu escarninho e ciciou algo ininteligível para as mentes simples: um sortilégio capaz de derreter qualquer metal forjado pelo Homem. No entanto, Thorson não se inquietou. A sua arma permanecia intacta, pois possuía o cunho do Povo da Terra. Irredutível, pressionou-a até desenhar uma linha de sangue na pele frágil do facínora. E acabou por ser Celsus a suster o fôlego, ciente de que estava demasiado vulnerável para se opor. Revirou os olhos e mastigou:

— Mata-me e a esperança da tua raça definhará comigo...

— Não torno a avisar-te! — bramiu o príncipe vândalo, premendo ainda mais a lâmina.

Celsus obedeceu e eu rastejei para longe do seu alcance. Sur­preen­di-me quando Thorson molhou a mão no sangue que escorrera do corte e besuntou a fronte do émulo. A Besta Suprema ainda estrebuchou, cuspindo pragas. Porém, era quase impossível adversar um feitiço de sangue. Não tendo forçosamente de se recorrer à magia negra para executá-los com mestria, impunha-se o domínio das manhas da Arte Obscura... E eu estava tão habituada a pensar no meu primo como um servo da Lágrima do Sol, que, por vezes, me esquecia de que o meu pai também lhe ensinara os segredos da Lágrima da Lua! Vi-o cingir Celsus até o outro desfalecer. Depois, afastou-o com um repelão... E tive de admirar o seu controlo! No seu lugar, talvez não tivesse resistido à tentação de provar a energia daquela essência. Devia ser inebriante! Porém, era essa capacidade de abstenção que distinguia o bem do mal. Apesar de tudo o que aprendera, a alma de Thorson continuava sóbria e cristalina.

— Vem — apelou, ajudando-me a suster. — Ele não se deixará subjugar por muito tempo.

Corremos rumo à floresta... No entanto, fomos obrigados a estacar ao verificar que o trilho principiava a extinguir-se. O fenómeno era lento, mas, ainda assim, a cintilação que podia salvar-nos já mal penetrava nas copas das árvores.

— Isto é obra dos feiticeiros? — indagou Thorson.

— Não — ripostei, arquejante de aflição. — A energia que sustenta o trilho está a esgotar-se...

— Prepara-te — atalhou determinado. — Vamos ter de saltar.

E saltámos, recorrendo à Arte para condensar o ar à nossa frente, prodígio que nos permitia planar e deslizar como esquilos. Mal alcan­çássemos as árvores, os ramos amenizariam a queda. Eu estava prestes a agarrar um braço de madeira... Então, uma força invisível capturou-me.

Thorson bradou o meu nome, antes de desaparecer no meio das copas. Enquanto eu gritava e girava no vazio, presa pela cintura, apercebi-me de que Celsus se quedava no limite do caminho de luz, controlando um laço místico. Tinha mesmo de ser extraordinariamente forte, para debelar num ápice o sortilégio que o príncipe vândalo lhe impusera!

Fui içada para o trilho, apavorada ante a rapidez com que este agora regredia. Cravei os dedos na amarra de energia e lutei para me libertar... Em vão! E se, ao invés de adversar Celsus, eu vigorasse o seu ímpeto? Outra ideia louca... Mas os meus desvarios costumavam resultar!

O Infame Supremo movia os braços como se puxasse por uma corda. Assim que me teve ao alcance da sua perversidade, ribombou, mordaz e triunfante:

— Lamento, Kelda... Não posso apartar-me de ti!

Interiorizei a energia do esticão que me atrairia para o trilho e alimentei-a, multiplicando a força com que rasgava o ar rumo ao feiticeiro. O facínora só se apercebeu da armadilha no instante em que os seus braços se fechavam sobre mim. Tarde de mais! Envolvi-lhe o tronco com as pernas e arrastei-o na veemência do meu voo. Celsus ainda tentou agarrar-se à segurança da magia que lhe permitiria regressar à Ilha Sagrada... Porém, a minha determinação arrojou-nos até ao limite do caminho de luz e impôs-nos a queda no abismo.

Desta feita, era o feiticeiro que tentava repelir-me e eu que o prendia contra mim. O ardor do seu desespero transpareceu, enquanto nos despenhávamos. Celsus quis contrariar as regras da Natureza, projetando uma garra de energia na direção do trilho. Porém, este já se distanciara demasiado. As copas das árvores aguardavam-nos quais estacas... Estava na altura de me livrar do meu fardo. Verguei as costas, tencionando cravar-lhe as pernas na barriga e empurrá-lo. Todavia, ciente de que nada tinha a perder, o réprobo exprobrou:

— Se queres viver, terás de obedecer...

— Pois prefiro morrer! — cuspi.

O feiticeiro rugiu uma obscenidade e aumentou a constrição, ten­tando usurpar-me a consciência. O tempo esvaía-se! Em pânico, levei a mão à cintura em busca do punhal de Thorson... E, sem hesitar, enterrei-o nas soberanas costelas. Celsus berrou, mas insurgiu-se. Então, comecei a desferir golpes ao acaso com quanta força me res­tava. Algures entre o frenesim e a agonia, o Ascoroso Supremo convenceu-se de que seria incapaz de refrear o meu ímpeto. Enfim, libertou-me, soltando um ronco inflamado pelo ódio:

— Não te livrarás de mim...

Eu tinha de sobreviver! Evoquei a magia e tomei o ar como aliado, criando sucessivas redes de energia para travar a queda. Contudo, não foi suficiente. O meu peso, combinado com a velocidade que o corpo adquirira, rasgava uma após outra. E eu não podia torná-las demasiado espessas, pois seria o mesmo que me esmagar no chão.

— Kelda... — ouvi Thorson clamar.

A copa de uma árvore... Se tentasse agarrar os ramos, arrancaria os braços. A última rede desfez-se. Preparei-me para a dor... De repente, um sopro quente irrompeu do solo ao meu encontro, exercendo uma oposição vigorosa. Sempre que me impelia para cima, a carne parecia separar-se dos ossos, mas o corpo refreava. Escorreguei por dentro dessa bolsa de ar, resguardada dos troncos acutilantes. Se não era eu quem estava a criá-la...

— Thorson... — solucei de alívio, ao estatelar-me nos seus braços. Estava viva!

O meu primo estreitou-me e murmurou comovido:

— Pregaste-me um susto tremendo, Kelda!

— Recuperei as pedras... — ripostei, ofegante.

Ele acenou em congratulação, mas retrucou sombriamente:

— Temos um problema.

— Íris! — exclamei angustiada. — Ela está...?

— Não — volveu estrangulado. — Porém, duvido que se aguente. Consegues andar?

Por Íris, eu voaria! Apesar de dorida até ao âmago, segui o meu primo através de uma vereda íngreme. Não tardei a deparar com a Observadora. Os seus ossos despedaçados tinham rasgado a carne; o sangue ensopava-lhe as vestes de seda e manchava o monte de neve onde tombara. Ajoelhei-me ao seu lado e vi mais sangue a escorrer-lhe dos lábios e do nariz. Os seus olhos estavam semicerrados, com o branco a espreitar. Thorson começou a impregná-la com energia curativa, enquanto arquejava:

— Ela sustém-se por um fio. Receio que estes instantes em que a deixei tenham sido fatais! Talvez se fundirmos a nossa magia...

Com mãos cuidadosas, envolvi a cabeça da minha amiga e busquei a sua consciência. As lágrimas saltaram-me dos olhos ao inferir que não havia magia capaz de salvá-la. Concentrei-me em extinguir a sua dor. Íris sacrificara-se por mim! Era meu dever assegurar-lhe uma passagem tranquila! O entrelaçar das nossas energias denunciava quão avidamente lutava pela vida... Mal o seu tormento se amenizou, a doçura do olhar castanho revelou-se com um breve suspiro:

— Kelda... Valeu a pena... Foi... libertador...

— Íris... — carpi. — Oh, Íris...

— Aguenta-te! — ordenou-lhe Thorson, numa voz que eu nunca escutara. E instou sem se resignar: — Não te entregues! A justiça divina compensa a coragem dos perseverantes.

Íris fitou-o com uma expressão arrebatada e esboçou um sorriso, murmurando:

— Jamais imaginei... sentir o teu calor...

Perante o meu assombro, a mão ensanguentada ergueu-se num esforço imensurável, até acariciar o rosto do príncipe vândalo. Ainda acrescentou:

— Cuidem... um do outro...

Thorson rangeu os dentes e estremeceu, tal o empenho em conter as lágrimas. Cobriu a mão de Íris com a sua e beijou-a ternamente, replicando:

— Não vou deixar-te partir! Não vou...

— Certificar-me-ei de que lhe fazes companhia.

O urro minaz fez-nos saltar de susto. Era impossível! Celsus surgia à nossa frente, com as vestes esfarrapadas, mas praticamente incólume... E disposto a fulminar-nos com a sua sanha.

— Protege Íris — ordenou Thorson, sustendo-se com um salto e desembainhando a espada.

Ante tamanha resolução, o Odioso Supremo gargalhou:

— Tu nada podes contra mim, reles impuro!

— Como vos sentis ao pisar a Terra após tantos séculos, excelência? — instigou o príncipe, cuspindo desdém. — Tínheis saudades de enterrar essas abençoadas patas na lama...?

— Vou desfazer-te! — bramiu o feiticeiro.

Duas bolas de fogo surgiram nas suas mãos e foram prontamente arremessadas. O meu primo defendeu-se com um escudo de ar, mas a brutalidade do ataque roubou-lhe o chão e arrojou-o contra uma árvore. Ao ver que a atenção do execrável se fixava em mim, Thorson recompôs-se e revidou... Porém, Celsus intercetou o seu fogo, segurou-o e moldou-o numa lança, com um sorriso perverso. Assim demonstrava que a magia do príncipe era inferior e não podia causar-lhe dano. Obviamente, pretendia cravar a arma na Observadora...

— Não! — entaramelei aterrada. Se eu quebrasse o nosso elo, Íris morreria... Porém, se nada fizesse, o resultado seria igual!

De súbito, a floresta estremeceu. Celsus cambaleou, abismado... E, mesmo ao meu lado, o solo fendeu-se, jorrando um clarão intenso. A lança rasgou o ar... Puxei o corpo da minha amiga contra o peito e deixei-me tombar dentro do fosso de luz, clamando a plenos pulmões:

— Thorson...