CAPÍTULO 1
A face pálida da Lua sorria-me uma vez mais. Desafiava-me:
«Vem! Vamos brincar! Eu serei rainha no céu. Tu serás rainha na Terra. Entrega-te a mim, Kelda... Não podes fugir do teu destino!»
Destino. Sina. Ventura. Maldição. Sonho e realidade. Vida e morte. Estava cansada de tudo isso! Esta existência nada me reservava, além de esforço e sofrimento. Nem o sono me concedia paz, flagelando-me com a lembrança da destruição que causara e das mortes que não fora capaz de evitar. O que teria acontecido se a espada mágica tivesse falhado a sua missão? Por vezes, desejava não ter despertado ao nascer do Sol. Escapara às garras gélidas da rainha do submundo, apenas para preparar o fim do meu irmão... O meu fim! Se Halvard não me matasse, seria eu a matá-lo. E, depois, não teria como continuar a subsistir, destroçada pelos remorsos. A verdade é que amava o meu gémeo, tanto quanto o odiava. Em suma, nós éramos carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue... e podridão da mesma podridão! Depois de tudo o que fizera sob as suas ordens, as minhas mãos jamais ficariam limpas. Uma vez perdida a inocência, não existia luz capaz de sufocar as trevas que devoravam a alma.
Fixei a porta do salão nobre do palácio dourado, aguardando a chegada do mestre da Arte Obscura. O pacto que nos unia extravasava o inimaginável e roçava o grotesco. O meu maior inimigo tornara-se meu mentor; a mão que me conduzia e ajudava a erguer quando caía. Por outro lado, Sigarr via-me como uma tábua de salvação; a única consciência capaz de deter o homem que haveria de prostrá-lo... Isso se a roda da sorte não mudasse de direção! Como permitira eu que esta história tivesse uma evolução tão hedionda? A justificação era uma amálgama dolorosa de fracas desculpas, envoltas numa ingenuidade tão absurda que me enraivecia.
A Pedra do Tempo nomeara-me decisora... Porém, eu errara grosseiramente a maior parte das resoluções que tomara. Mais parecia que me fora retirado o dom de acerto quando assumira a identidade de Oriana! Será que fracassara porque deixara a pedra azul de Aranwen para trás, ainda que com a melhor das intenções? Às vezes, interrogava-me se a magia do amuleto teria sido capaz de curar a essência de Halvard... Jamais saberia! Só possuía uma excruciante certeza: a maldição do Filho do Dragão tornara-se imparável. Assim sendo, eu era obrigada a mergulhar nas entranhas do mal. Só desvendando os seus segredos ficaria apta a combatê-lo.
As sombras bailavam em meu redor, quais fantasmas, animadas pelo som da cascata que alimentava o tanque de pedra verde. No jardim, os pássaros ainda cantavam... Rememorei o meu vogar entre realidades, imposto pela magia da espada; uma experiência admiravelmente tranquila, sem dor nem compunção. Todavia, ao despontar dos primeiros raios de sol, fora como se o meu espírito tivesse de atravessar uma barreira de lâminas para recuperar a vida. Abrira os olhos, sôfrega por ar. Então, Sigarr estreitara-me nos seus braços, até que reaprendera a respirar e recobrara o discernimento. Só depois constatara que o olhar do «Criador das Trevas» estava preso em mim, arregalado de assombro.
«Erebus não ver, não acreditar!», titubeara.
Sorri ao relembrar a felicidade do meu primo, quando o mestre anunciara que ele viajaria connosco para o Sul. Pensar que não teria de continuar a combater fora um alívio para Erebus! Depois, Sigarr conduzira-me até um dos celeiros da cidadela do Império que escapara incólume à fúria do Filho do Dragão. E o meu queixo pendera ao deparar com os sobreviventes da batalha, entre os quais estavam os idosos, as mulheres e as crianças que eu salvara, a receberem agasalhos e comida das mãos da guarda pessoal do feiticeiro.
«O que vai ser deles?», inquirira receosa. E Sigarr voltara a espantar-me ao retrucar:
«Dei ordens para que sejam mantidos em segurança. Quando a guerra terminar, o território precisará de braços fortes e mentes resignadas e agradecidas para reconstruírem o que a conquista destruiu... Até o Filho do Dragão terá de reconhecer isso!»
«E podes garantir que ninguém será molestado?», volvera incrédula, recordando a avidez peçonhenta dos mercenários de Halvard. No entanto, tinha consciência de que os guerreiros do feiticeiro eram homens bastante diferentes, gélidos e sombrios, que pareciam viver para a exclusiva satisfação do seu senhor. Nessa altura, Sigarr encarara-me e asseverara:
«Tens a minha palavra, Kelda.»
E a sua circunspeção fizera-me confiar que não jurava em vão.
A viagem para o Sul parecera-me interminável. Angustiava-me pensar no que me esperava, mas nem me atrevia a imaginar as consequências da selvajaria que deixava para trás. Orava para que os meus entes queridos tivessem forças para enfrentar a onda procelosa que estava prestes a abater-se sobre as suas cabeças... E tentava esquecer Lysander a todo o custo! Porém, era constantemente dilacerada pela memória do seu rosto deformado pela ira. Revê-lo a cortar as amarras da ponte fazia-me bufar de raiva. O herdeiro de Lyria já me magoara antes... Contudo, desta vez, haveria de arrancá-lo do meu peito, pois tivera a confirmação de que ele não era digno do sentimento puro e incondicional que lhe dedicava.
Da gigantesca frota que invadira o Império, apenas o navio que nos transportava regressara à Terra das Montanhas de Areia. E, após uma semana a bordo, Sigarr ficara irreconhecível! Por alguma razão que escapava ao meu entendimento, decidira livrar-se da carapaça de sobranceria etérea e juntara-se aos marinheiros como se fosse um deles. Abismara-me ao vê-lo em tronco nu a atender ao leme, a esticar cabos e a correr de um lado para o outro. Os cabelos atados expunham-lhe o rosto às carícias do Sol e a sua pele não tardara a ganhar um tom dourado, que ainda evidenciava mais o azul-claro do olhar... Sempre que nos encarávamos, dava por mim a suster o fôlego. Depois desviava a cara, corada e a praguejar interiormente. Com mil ratazanas mutiladas, por que raio me perturbava com a sua atenção?
Erebus não saíra do meu lado, durante a viagem, e amenizara um pouco a minha tristeza. No entanto, embora satisfeito por ter embainhado a espada, o meu primo não escondia o receio que o futuro lhe inspirava. Ao precipitar-se atrás de Lysander e de Ulfvaldr, sedento de vingança, Halvard acreditara que o seu mestre me levaria para a cidadela e aguardaria o seu regresso. Devia ter explodido de fúria no instante em que a notícia da nossa partida para o Sul lhe chegara aos ouvidos! Sigarr haveria de se justificar, dizendo que agira em meu benefício e no seu melhor interesse. Todavia, eu também temia a reação do meu irmão. Por isso, vivia obcecada com o treino da Arte Obscura. Um dia, teria tempo para me lastimar... Mas não agora!
Mais uma vez, olhei para a porta do salão. Só esperava que a demora do feiticeiro não estivesse relacionada com o meu pai... Esse era outro assunto que me estracinhava os nervos! Assim que pisara a Terra das Montanhas de Areia, exigira ser conduzida à presença do Rei da Lua. Todavia, Sigarr negara-se a ceder. E, quando me insurgira, o seu tom azedara:
«O teu pai está bem e em segurança. É tudo o que precisas de saber... Concentra-te no teu objetivo! O treino da Arte Obscura requer muita atenção. Um passo em falso poderá ser-te fatal.»
Evidentemente, não me resignara! Nas suas costas, esgueirara-me até ao túmulo do rei-feiticeiro e alcançara a sala secreta sem dificuldade... Porém, encontrara-a vazia! Ainda tentara descobrir uma centelha da essência do meu pai que me revelasse o seu novo esconderijo. Todavia, o esforço fora vão. Regressara ao palácio, a ferver de raiva e de frustração... E não me surpreendera ao deparar com Sigarr, pronto para me repreender como se ofendido:
«Queres que seja teu mestre, Kelda? Então respeita-me e cumpre as minhas instruções! Sei que desejas falar com o teu pai... Mas terás de aprender a ser paciente!»
O feiticeiro achava que estava a favorecer-me ao me preservar de um confronto que me distrairia dos treinos. Não entendia que eu necessitava de ver o Rei da Lua para mitigar a ânsia do meu coração, mesmo arriscando-me a ser novamente repudiada. No fim, ainda que contrafeita, tivera de me conformar. Se o pressionasse, Sigarr acabaria por se recusar a adestrar-me. E tal seria desastroso!
A aterradora confirmação de que Lysander me ocultara inúmeros segredos da Arte Obscura impusera-se mal iniciara as aulas. Isso significava que, para além de Halvard ser mais forte, a minha ignorância concedia-lhe ampla vantagem, só possível de contrariar com uma preparação rigorosa. Não podia perder tempo... Essa ideia fez-me deixar o salão em busca de Sigarr, a transbordar de impaciência. Que ele nem sonhasse em descuidar o nosso acordo!
Enquanto marchava pelos corredores, ponderei que o «muito» que já aprendera estava longe de ser suficiente. Precisava de «muito mais»! A maior parte dos exercícios a que Sigarr me submetia realizavam-se a coberto da noite. Por beneficiar da influência da Lua, a Arte Obscura avigorava-se com as energias que reclamava à bruma. Obviamente, mal se apercebera das «omissões» de Lysander, o feiticeiro não perdera a oportunidade de me espicaçar:
«O príncipe da Gente Bela pode ter-te treinado para enfrentares um exército de homens, mas não te preparou para lutares contra um mestre da Arte Obscura.»
Reclamar de quê, quando o seu reparo fazia eco no ressaibo que me envenenava as vísceras? Ainda assim, não quisera dar-lhe a satisfação do triunfo e replicara:
«Lysander foi um bom mestre...»
A gargalhada desdenhosa do feiticeiro cortara-me a voz e arrepiara-me:
«Tão bom que só te deu uma gota de água a beber de uma nascente inesgotável! Porquê, Kelda? Não confiava em ti?»
Eu rangera os dentes e ignorara a provocação. Não me interessava discutir o passado. A minha prioridade era assegurar a existência de um futuro! Quando Sigarr se convencera de que podia ladrar quanto quisesse que não me ouviria a rosnar, começara a abrir portas na minha mente. No início, com mil cuidados, como se receoso de que a minha essência não suportasse a pressão. Inclusive pejorara:
«Só podes ser tola se te julgas capaz de assimilar, em tão pouco tempo, os conhecimentos que o teu irmão levou anos a adquirir!»
Todavia, não demorara a pasmar-se ante a rapidez com que eu evoluía. A minha habilidade inata, aliada ao treino que recebera da avó Catelyn, permitia-me uma interiorização imediata das informações. Ao contrário dos seus anteriores pupilos, não precisava de repetir um sortilégio até à exaustão para aperfeiçoá-lo. Na maior parte das vezes, realizava-o à primeira tentativa. Por isso, Erebus não tardara a ser chamado para me apoiar... E também o meu primo se admirara com tamanhos progressos, num misto de orgulho e apreensão. Afinal, estava a revelar-me muito mais forte do que eles tinham imaginado.
Como mestre, Sigarr divergia bastante de Lysander. Não obstante ser sóbrio e exigente, as suas palavras impregnadas de sarcasmo mantinham-me estimulada para novos desafios. Por outro lado, não se coibia de expressar agrado quando eu superava uma prova. Raramente o príncipe me elogiara — eu não tinha de ser aplaudida, se estava a cumprir a minha obrigação! Em contraste, o feiticeiro exultava quem vencia tão fervorosamente como arrasava quem fracassava. E, visto que eu não errava, só recebia louvores. Em poucos dias, já se mostrava tão desejoso de me ensinar quanto eu estava sôfrega por aprender. E essa perigosa combinação tornara-nos quase inseparáveis.
O meu medo de que o feiticeiro ousasse uma aproximação «física» não se concretizara. No entanto, por mais que me custasse, tinha de admitir que uma estranha energia latejava entre nós. Quando os nossos olhares se cruzavam, a sua expressão crispava-se e a respiração alterava-se, ao mesmo tempo que o meu estômago se comprimia e um nó me apertava a garganta. Recuávamos e fingíamos que nada se passara. Porém, era-me impossível conter um sorriso, sempre que chegava ao quarto e deparava com um rebuçado sobre a almofada.
Aos poucos, Sigarr aguçava-me a mente, fortalecia-me o corpo, adoçava-me a boca e amolecia-me o coração. Até me surpreendia a apreciar a sua companhia, durante as refeições! O feiticeiro escolhia as histórias que contava e direcionava as conversas, de modo a não ferir suscetibilidades... Porém, o que eu realmente prezava era ver o carinho que ele devotava a Erebus. Não havia dúvidas de que o meu primo era feliz ao lado do mestre. Além disso, estava radiante por treinar comigo, sem a sombra do Filho do Dragão a pairar sobre nós.
Nas últimas semanas, eu criara hábitos que me ajudavam a não cogitar nas atrocidades cometidas pelo meu gémeo. Dormia quando o Sol nascia, lutava com Erebus ao fim da tarde e praticava magia pela noite dentro. Sigarr já me fazia rir quando me colocava perante um desafio e reptava, esforçando-se por manter uma postura severa e o calor afastado da voz:
«Aposto que é desta vez que vais falhar, criatura molesta!»
O seu rigor aumentava o meu denodo. Porém, apesar do esforço constante, não me sentia cansada. Os duelos com o meu primo garantiam-me uma excelente forma física. E, em contraste com a Arte Luminosa, a Arte Obscura como que se alimentava a si própria, tornando-se mais poderosa a cada evocação, sem exigir longos repousos entre os treinos. Inclusive, ficava desapontada quando o feiticeiro me obrigava a parar. Tinha de continuar a adquirir competências! Por isso, passar um dia sem me exercitar era inadmissível.
Encontrei Sigarr numa das salas recônditas que utilizava quando não desejava expor as suas conversas a ouvidos indiscretos. Com a audácia conferida pela minha nova condição, entrei desembestada, sem me anunciar, e deparei com dois dos seus generais. Estes calaram-se abruptamente e franziram o sobrolho. No entanto, ainda distingui um nome: Edwin McGraw.
— Podeis ir — dispensou-os Sigarr com um aceno. Depois, o olhar azul-celeste escureceu ao fixar-me. Senti as pernas bambolearem e o coração quase a saltar pela boca, enquanto o ar solidificava em meu redor e me impedia de respirar. Só a grande custo consegui gaguejar:
— O que aconteceu... ao meu avô?
O feiticeiro hesitou como se escolhesse as palavras, antes de responder:
— O teu avô está bem. Halvard libertou-o para que entregasse a sua mensagem à Ilha dos Penhascos.
— Que mensagem? — balbuciei, rouca de aflição. A minha visão tingia-se de negro ao adivinhar a pravidade que os generais tinham acabado de reportar.
Sigarr respirou fundo e anunciou num tom grave:
— A Grande Ilha tombou aos pés do Filho do Dragão. Os McGraw lutaram até ao último homem... O teu avô foi o único sobrevivente.
Cerrei os olhos e rangi os dentes para conter os gritos que me destroçavam a garganta. Os meus tios... Os meus primos... Comecei a tremer sem controlo. Não ia chorar! Era inútil chorar! O melhor que podia fazer pelos mortos era seguir em frente para vingá-los no momento da verdade! Não obstante, as pernas falhavam-me. Dei por mim a soluçar... Suportara com firmeza a notícia da queda do Império. Porém, chegara ao limite da resistência.
Sigarr quis apoiar-me, mas afastei-o com um repelão. Afundei-me num cadeirão e cuspi amargurada:
— Não me toques... Isto é tudo culpa tua!
Os seus braços penderam ao admitir, como se consternado:
— Tens razão! Fui eu que atirei a pedra que provocou a avalanche. E, por mais que me arrependa, não há como remediar o mal que está feito.
Soprei o ar com desprezo. Não confiava na sua contrição. Perante o meu vilipêndio, a expressão do feiticeiro endureceu e o seu tom arrefeceu quando me interpelou:
— Achas que o meu pesar é falso? Que me finjo afetado para te obsequiar, porque preciso da tua ajuda? Pois fica sabendo que tentei impedir que mais sangue fosse derramado! Depois de Halvard tomar o Império, procurei o príncipe da Gente Bela e fiz-lhe uma proposta...
Eu não queria escutá-lo... Porém, a determinada altura, percebi que falava a sério. Estupefacta, ouvi-o descrever o plano que traçara para travar o Filho do Dragão. Era ousado, contudo exequível! E implicava poucos riscos para a minha família, uma vez que Halvard estaria privado da razão. Sigarr reclamara a Lágrima da Lua... Mas tal parecia de somenos importância, comparado com os benefícios do fim da guerra! Além do mais, como ele fazia questão de salientar, a Lágrima do Sol continuaria na posse da sua Guardiã, por isso as forças ficariam repartidas.
— Como condições, ditei que Halvard fosse retido na Montanha Sagrada — elucidou. — Decerto entendes que não podia arriscar-me a que ele viesse atrás de mim! Além disso, exigi liberdade incondicional para Erebus... — Aproximou-se e prendeu-me o olhar, antes de concluir com a voz alterada pela comoção: — E pedi que Lysander se comprometesse a limpar o teu nome, para que a tua família e o teu povo reconhecessem os sacrifícios que fizeste para benefício de todos. Com o seu apoio, haverias de regressar a casa com a cabeça erguida.
— E eles não aceitaram? — titubeei, estrangulada de indignação, ao contabilizar os inocentes que esse ajuste teria preservado.
Sigarr baixou o rosto e esboçou um gesto de impotência, ripostando sombriamente:
— Duvido que Lysander sequer tenha feito chegar a minha palavra aos demais interessados. Ele até concordava em devolver-me a Lágrima da Lua e em manter Halvard afastado da realidade do Homem. Porém, impunha que Erebus fosse condenado, alegando que alguém tem de ser castigado pelos crimes que o Filho do Dragão já cometeu... E, quanto a ti, mostrou-se ainda mais irredutível! Assegurou que, no que depender da sua vontade, nenhum traidor receberá indulto.
Fiquei chocada... Fora tão tola ao acreditar que Lysander haveria de me perdoar quando tivesse a confirmação de que a espada era mágica! «O dever acima de tudo...» Pelos vistos, sua majestade preferira sacrificar a Grande Ilha e milhares de vidas do que ser obrigado a conviver comigo! No fim, não sabia se me sentia mais magoada ou furiosa.
— Após a queda da Grande Ilha, a Ilha dos Penhascos aceitou conversar com o teu irmão — continuou Sigarr. — Ainda não sei o resultado dessa reunião, mas é provável que os Aliados tenham admitido nada poder fazer, além de se sujeitarem às imposições do Filho do Dragão.
— Estão a tentar ganhar tempo — volvi, forçando-me a superar a contusão. — No entanto, de nada lhes servirá! Halvard irá esmagá-los...
— Sim — concordou. E inclinou-se sobre o braço do cadeirão, enunciando: — Sabes que os meus argumentos não são desprovidos de interesse... É verdade que quero escapar ao destino que a Visão me revelou. Se, no processo, puder recuperar a minha herança de sangue, melhor! Todavia, também não desejo mal a Halvard, pois reconheço a minha culpa no seu descontrolo... E ficaria feliz se Erebus tivesse a oportunidade de experimentar uma vida livre de tribulações.
Fez uma pausa para recuperar o fôlego. E o nó da sua garganta subiu e desceu, enquanto esticava os dedos para tocar-me no queixo, finalizando num tom cavo e repleto de ansiedade:
— Além disso, gostava de te ver recuperar a paz de espírito, no seio daqueles que amas. Assim, talvez um dia pudesses encarar-me sem sentires ódio... Por mim, mas também por ti e por Erebus, estou disposto a repetir a minha proposta. Após o infortúnio da Grande Ilha, talvez o príncipe da Gente Bela se mostre menos intransigente.
Afastei-lhe a mão e ergui-me num ímpeto, demasiado abalada para suportar a intensidade do seu olhar. Enchi o peito de ar e quedei-me um instante, reunindo coragem para retrucar:
— Agradeço que o faças para o bem do meu povo... Para o bem de todos nós! E, se é o rancor que me devota que impede Lysander de negociar, diz-lhe... Diz-lhe que concordo em não tornar a pisar o solo dos meus antepassados, desde que Halvard permaneça incólume sob a guarda dos meus pais e que Erebus não sofra nenhuma punição.
— Não, Kelda! — refutou Sigarr, franzindo a testa como se exasperado. — Não é justo que te sujeites a tamanho sacrifício! A minha proposta é equilibrada... Lysander não pode colocar os seus ódios pessoais à frente dos interesses do vosso povo! Desta feita, tentarei falar com a tua mãe... Se a tivesse procurado no início, ao invés de perder tempo com aquele fedelho arrogante, talvez Halvard já estivesse avassalado pela magia da Montanha Sagrada e muitas mortes tivessem sido evitadas.
Fiquei sem palavras ante a obstinação do feiticeiro em defender-me da intolerância do herdeiro de Lyria. Sentia a cabeça a andar à roda... Não havia dúvidas de que o meu mundo estava virado do avesso! Tinha de ocupar a mente com um desafio exigente, pois decerto enlouqueceria se continuasse a congeminar no que acabara de acontecer.
— Vamos treinar — demandei num arquejo.
— O quê? — ripostou, aturdido. — Depois disto, como é que podes querer...?
— Por acaso os mortos ressuscitarão se me prostrar a chorar? — contestei num rosnado azedo. — Ou o meu irmão ficará livre da maldição se eu clamar a minha revolta? Só dominando a Arte Obscura serei capaz de travar o progresso do mal... — Não permiti que me interrompesse, rematando com ardor: — O tempo urge! Se a Ilha dos Penhascos anuir na entrega das Lágrimas, Halvard não cruzará os braços à espera da primavera. Há de regressar aqui para exigir justificações sobre a nossa retirada... Mesmo que as aceite, tornarei a ficar prisioneira dos seus desvarios! Logo, o meu treino terá de estar concluído aquando da sua chegada.
«Maldita sejas, Kelda! Hás de pagar com lágrimas e sangue pelo que eu estou a penar!»
A voz de Oriana ressoava-me na mente, qual tambor infernal. Tinha consciência de que estava a dormir e sentia a batalha que os meus olhos travavam para se abrirem. Porém, continuava prisioneira da imagem da minha irmã de criação e do seu vómito de rancor:
«Hei de destruir-te, Kelda! Conquistarei tudo o que tu sempre almejaste... Tudo!»
Empreendi um esforço supremo para me libertar dessa agonia... E enfim consegui! Sentei-me na cama, a tremer e a transpirar, sorvendo sopros de aflição. Como é que um pesadelo podia ser tão real? Será que o meu delírio possuía um fundo de verdade?
— Não... — titubeei, tentando apaziguar o coração. — Porque haveria Oriana de me odiar? Eu salvei-a! — Sacudi a cabeça e pulei da cama, moendo exacerbada: — Para, Kelda! Estás a misturar tudo! A permitir que o medo e a culpa te dominem... Mas não vais recuar! Não podes recuar!
Fui até à varanda e o ar gélido da noite ajudou-me a acalmar. Apesar de fustigadas pela fúria do vento, as chamas dos archotes que iluminavam o jardim teimavam em não se extinguir. No céu, a escuridão imperava. As estrelas estavam encobertas por um véu cinzento e a Lua fenecera para, mais uma vez, poder renascer num ciclo perpétuo. Os meus antepassados diziam que o definhar da Lua marcava um tempo de reflexão; de preparação para uma nova vida...
— Mas que vida será a minha? — suspirei, num misto de tristeza e resignação. — Porque me viraste as costas, Lysander?
Por instantes, a dor destroçou-me. Deixei escapar um soluço, com o espírito exaurido, tão quebrado como a ponte que nos separara. Contudo, o tormento foi-se amenizando e dei por mim a sentir... nada! Absolutamente nada! Parecia dormente, alheada, suspensa no tempo... Com mil ratazanas arrepiadas, será que ainda possuía um coração? Ou este acabara de murchar dentro do meu peito? Era como se, num fôlego, a humanidade tivesse sido purgada da minha essência e eu me tivesse tornado um ser indiferente a quaisquer carências e aflições. Só uma coisa me preenchia a mente: a vontade de vencer.
Sem saber como, dei por mim diante da porta do quarto do feiticeiro. Entrei sem bater, pronta a enfrentá-lo. De imediato, o pelo do tapete que forrava o chão envolveu-me os pés e uma centena de pequenas luzes coruscantes acenderam-se, pairando em meu redor, quais pirilampos. Movida por uma determinação que extravasava quaisquer apelos da consciência, avancei rumo à zona sombria onde se situava a cama. Deparei com Sigarr envolto numa manta cor de neve, desgrenhado e com olhos ensonados. Soltou um gemido antes de protestar:
— O que julgas que estás a fazer, criatura desassisada?
— Quero ir treinar — volvi pertinaz.
— Eu avisei-te que hoje não haveria treino — resmungou. — Preciso de dormir... E tu também!
— Dormirei quando estiver morta — retorqui inflexível, aditando num repto: — E tu também!
O olhar celeste abriu-se um pouco. Contudo, parecia não ter intenção de se levantar.
— Kelda, Kelda... — grazinou, com o óbvio propósito de me intimidar. — Ninguém te ensinou que não fica bem a uma donzela invadir a privacidade de um homem? Para mais quando esse homem é um feiticeiro renegado sem um pingo de moral? Sê uma boa menina e desaparece da minha frente, antes que despertes o monstro que vive em mim...
— Deixa-te de tolices! — ripostei com maus modos. — E para de me tratar como se eu fosse uma pirralha...
— Tu és uma pirralha! — bramiu tempestivo, afastando a manta com um repelão e saltando da cama, sem cuidar em ocultar a sua nudez. — És uma fedelha inconsequente e insuportável, que me consome a paciência até à última gota! Sai daqui! Sai, ou não respondo por mim...
Fechou a mão no meu braço e começou a arrastar-me para a porta. A imposição da sua força incendiou-me o sangue e fez a minha ira explodir com uma violência irracional.
— Quero treinar! — berrei desvairada. — E tu vais treinar-me!
Insurgi-me com tamanho ímpeto que o derrubei. Rebolámos sobre o tapete: eu a escoicear, tentando esmurrá-lo; Sigarr a defender-se. Acabou por me imobilizar, arrostou-me e ordenou:
— Olha para ti, Kelda! Começo a pensar que o príncipe estulto tinha razão!
Atordoada, vi os seus olhos tornarem-se espelhos e neles distingui o meu reflexo... Mas não me reconheci! As minhas faces estavam rubras, os lábios arrepanhados, os dentes a ranger, o olhar invadido por labaredas que se alastravam sem controlo. A Arte Obscura governava a minha vontade! Tal perceção deveria assustar-me... Porém, só me acirrou a resolução. Diante de mim estava um ser que rutilava com todo o poder que eu almejava. E eu tinha de usurpá-lo!
Lancei as mãos ao pescoço do feiticeiro para lhe capturar os lábios. O meu ventre pulsava com uma fome devastadora. Todavia, a ânsia que me fazia contorcer sob o seu corpo nu não era luxúria... Era a necessidade incontrolável de assimilar a sua essência.
— Kelda... — arfou Sigarr, ainda resistindo ao furor do meu abraço. — Sua néscia...
E tombou sobre mim com uma edacidade bravia. De imediato, a sua essência manifestou-se e ficou à minha mercê. Não perdi tempo... E ele também não! Mal comecei a tragar a sua energia, o mestre da Arte Obscura cravou-me os dentes nos lábios e apossou-se do meu sangue, revertendo o domínio da situação. Num instante, deliciava-me com o seu poder; no seguinte, era ele quem sugava o meu vigor sem me dar tréguas.
Mais tarde, compararia este incidente com a história do rei tolo e presunçoso, que saíra da sua cidadela para combater o inimigo e deixara os portões abertos para provar quão convicto estava na vitória. No fim, o inimigo esmagara-o e entrara na cidadela sem encontrar oposição. A sofreguidão com que eu assaltara a essência de Sigarr impedia-me de recuar... E dir-se-ia que o feiticeiro se dispunha a assimilar a minha energia até à última gota! Senti o corpo desfalecer, a visão a turvar-se, o coração a falhar... Ia perder os sentidos! Contudo, no derradeiro instante, Sigarr parou. Ainda me apercebi quando os seus lábios me libertaram, com um urro arrebatado... E da gentileza do seu toque ao embalar-me junto ao peito, enquanto sussurrava:
— Perdoa-me, Kelda... Não me deste outra opção.
Deitou-me na sua cama. Ajeitou as almofadas. Cobriu-me com a manta alva e quedou-se a observar-me, com o fôlego alterado. Julgava-me desacordada. Todavia, parte da minha razão sustinha-se, suficientemente vivaz para sentir a sua mão a envolver a minha e os lábios quentes a pressionarem-me os nós dos dedos. Beijou a tatuagem do Dragão da Lua, no meu pulso esquerdo, inspirando fundo como se o odor da pele o deleitasse. Por fim, exclamou:
— Tu vais ser a minha morte, criatura adorável!
Despertei na cama de Sigarr... Mais uma vez! Os raios de sol que espreitavam pelo teto transparente permitiram-me tomar consciência do que me rodeava. Não tardei a deparar com o feiticeiro, recostado numa pilha de almofadas. Instintivamente, puxei a manta sobre o peito, tentando recordar o desfecho do meu tresvario. Afinal, o que é que me passara pela cabeça para invadir o quarto dele...? Com mil ratazanas alucinadas, eu saltara para cima de Sigarr!
As minhas faces incendiaram-se e o coração pulou de susto. Mal consegui respirar até me assegurar de que estava ilesa. Todavia, poderia não estar! O mestre da Arte Obscura tivera-me à sua mercê para fazer o que bem entendesse. No entanto, contrariando o que seria de expectar de um ente da sua índole, escolhera subjugar-me e consumir as labaredas malignas que me distorciam a vontade. Salvara-me de mim própria... E, apesar de tudo, tratara-me com assombroso respeito.
Sigarr ostentava trajes de guerreiro como se estivesse pronto para sair. Fui fustigada pela lembrança do seu corpo desnudo e da veemência do seu desejo, quando me sujeitara. Engoli a custo e torci a manta entre os dedos, assolada pela vergonha. O que estaria a pensar? As suas mãos tremiam ligeiramente ao levar um rolo de ervas de fumar aos lábios. O olhar celeste ainda guardava vestígios do fogo que eu ateara... Porém, refreava-se sem dificuldade aparente. Por isso, era o mestre dos mestres! Pousou o rolo no tabuleiro e enunciou numa voz rouca, um pouco anelante:
— Antes que desates aos gritos, é bom que saibas que não te molestei. A tua virtude está intacta e a tua mente não sofreu dano. Apenas demorarás um pouco a recuperar a energia mística... Entretanto, temos assuntos a esclarecer.
Acenei em confirmação, travando uma batalha para suportar o seu esgar. Então, ele disse:
— Não tenho condições para continuar a treinar-te.
— O quê? — arfei alvoroçada. — Não... Nós firmámos um acordo! Preciso dominar a Arte...
— Precisas é de recuperar o siso, criatura néscia! Estás tão obcecada com a aprendizagem que deixaste a bruma sufocar a tua luz. Tens noção do que poderia ter acontecido?
— Peço desculpa — ripostei, tentando remediar a situação. — Não sei o que me deu...
Fiquei sem voz quando Sigarr anulou a distância que nos separava e se debruçou sobre mim, objetando com o olhar inflamado:
— Estarias a desculpar-te se eu não tivesse tido forças para me refrear? Não! Estarias furiosa e ultrajada... Estarias a odiar-me!
Recuou e quedou-se de costas voltadas, com a respiração ofegosa. Assim que recuperei do pasmo causado pela sua investida, obriguei-me a altercar:
— Juro que não tornarei a perder o controlo...
— Não jures o que não podes cumprir — atalhou sem me encarar. — O príncipe da Gente Bela nunca te disse o quão perigosa és, Kelda? Encantadora e letal? Sabes como me custou afastar de ti? Não, não sabes, ou estarias a fugir para o teu quarto para te esconderes debaixo da cama!
— Queres assustar-me para me demoveres — repliquei. — Mas não tenho medo de ti, Sigarr!
— Não? — controverteu, fitando-me abrasado. — Então, porque é que estás encolhida atrás da manta, a tremer como um coelho encurralado por um lobo?
Soltei uma exclamação abespinhada e saí da cama, enfrentando-o com arrojo:
— Eu não sou um coelho e tu não és um lobo. Somos aprendiza e mestre e assim continuará a ser, até aprender tudo o que tens para me ensinar!
O seu olhar percorreu-me da cabeça aos pés, como se enxergasse os pormenores do meu corpo por baixo das roupas. Mantive-me altiva e firme, mesmo quando contestou num tom cavo:
— A tua essência não está preparada para assumir a complexidade do seu lado negro! Agora entendo a razão por que Lysander apenas entreabriu essa porta. Ele inferiu que as tuas trevas são muito mais poderosas do que a tua luz... E não ousou arriscar-se. — Encheu o peito de ar, antes de prosseguir com firmeza: — Eu também não posso fazê-lo! Hoje tive a confirmação de que o fulgor da tua essência se extinguirá se abraçares em pleno a magia negra... E, sem luz, serás incapaz de contrariar Halvard. — Estendeu as mãos e segurou-me nos pulsos, expondo as tatuagens do Guardião da Montanha. — É a dualidade entre a clareza e a bruma que te torna tão especial, Kelda... Única! Se a perderes, estaremos condenados.
Reuni coragem para apertar os seus dedos, redarguindo em protesto:
— Não tenho a mínima intenção de apagar a chama da Arte Luminosa da minha essência.
— Isso não depende da tua vontade — contestou, retrocedendo. — Não podes ser mestra da Arte Obscura sem renunciares ao equilíbrio da tua natureza.
— A luz de Erebus resistiu...
— Tu não és Erebus, criatura obstinada!
— Isso significa o quê? Que a minha essência é mais maligna?
— Presta atenção! Até agora, foste treinada para que a luz prevalecesse sobre a obscuridade e servisse de alimento à tua consciência. Se esse clarão se finar...
— Já percebi! — cortei, sem vontade de ouvir que, sob a influência da Arte Obscura, podia tornar-me uma assassina tão letífera e sanguinária quanto Halvard. Não sabia se as suas alegações eram credíveis... Mas, mesmo que fossem, não me desviariam do objetivo! Empinei o nariz e afiancei: — Não vou desistir, Sigarr! Este incidente revelou as minhas fragilidades... Há de tornar-me mais forte! Não voltarei a permitir que a Arte Obscura me suplante... E, decerto, tu conheces alguns truques que poderão ajudar-me a debelar a voracidade das trevas.
Engoli em seco quando o feiticeiro se aproximou. Fiquei cativa do seu olhar, enquanto me envolvia o rosto com as mãos e acariciava a pele. Porque não o repelia, se já não estava sob o efeito da Arte Obscura? Então, inclinou-se até a sua respiração me abrasar e murmurou:
— Tu transformaste a minha existência num caos, fedelha daninha! Invadiste a minha mente e despedaçaste a pedra que envolvia o meu coração. De repente, todas as minhas convicções ficaram reduzidas a cinzas. Os meus antigos desejos assombram-me como pragas, ridículos, mesquinhos, cruéis... Já não me reconheço! Surpreendo-me a congeminar loucuras; a desejar coisas que, há pouco tempo, seriam impensáveis. Às vezes, acho que perdi o rumo... Outras, que enfim me encontrei... Tens noção do que me estás a fazer, Kelda?
Comecei a tremer, sem discernir se o que sentia era medo... ou algo bem distinto, que nem me atrevia a nomear! O que estava o feiticeiro a dizer? Que eu o tornara mais benigno? Ou que...
— Sigarr... — titubeei, intimidada com a proximidade. Todavia, ele já se afastava e rebatia:
— Queres que continue a treinar-te? Pois que esta tenha sido a última vez que te insurgiste contra as minhas ordens! Se te mandei dormir...
— Eu não posso desperdiçar tempo!
— Não podes é andar a correr às cegas, com um abismo à tua frente. Às vezes, é preciso parar! — Tornou a prender-me o olhar, mastigando impaciente: — Esta não foi uma noite igual às outras. As trevas que encobriam a Lua possuíam uma energia perniciosa. Invocar a magia negra sob a sua influência, sem estar devidamente habilitado para controlá-la, era demasiado perigoso.
Quedei-me, empedernida. Estava justificada a violência do meu desvario!
— Porque não me explicaste...? — comecei a interpelar, mas ele atalhou com rispidez:
— Porque não tinha de fazê-lo! Como minha aprendiza, devias confiar em mim! — Deteve-se e hesitou. Então, semicerrou os olhos e demandou: — Confias em mim, Kelda?
A imposição no seu tom não admitia subterfúgios. Ao longo da vida, o feiticeiro habituara-se a ser prontamente obedecido. Agora, eu contestava a sua autoridade sem que ele pudesse retaliar. Por isso, exigia-me uma declaração de obediência. Confiar em Sigarr... Antes do nosso ajuste, tal seria inconcebível! No entanto, era inegável que a convivência alterara o modo como o encarava. À minha frente já não estava o monstro que despertara o meu ódio. Estava... um homem capaz de admitir que cometera erros graves e que parecia empenhado em corrigi-los! Porém, as razões que o moviam começavam a alarmar o meu instinto de preservação. Acreditar que pretendia meramente salvar a pele era menos complicado do que conjeturar o significado do calor no olhar celeste, da ansiedade na sua voz, do carinho no seu toque...
— Sabes que sim... — tartamudeei engasgada. Porém, Sigarr instou com ardor:
— Di-lo a olhar-me nos olhos.
Porque é que o meu coração batia tão desabalado e o fôlego me falhava ao encará-lo? A única forma de me livrar deste constrangimento era declamar aquilo que ele desejava ouvir:
— Sim, confio em ti! De outro modo, jamais teria colocado a minha sorte nas tuas mãos.
O feiticeiro não reagiu de imediato, como se dissecasse cada uma das minhas palavras, a minha expressão, os meus fôlegos, tentando discernir se estava a ser sincera ou se o iludia para que cumprisse o meu propósito. Por fim, deu-me espaço para respirar e ordenou:
— Vai trocar de roupa... Há algo que devo fazer e quero que me acompanhes.