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Problemas da história cultural

Como acontece em tantas atividades humanas, todas as soluções para o problema de escrever história cultural mais cedo ou mais tarde geram questões próprias. Se deixarmos de ler Burckhardt, vamos sair perdendo. Mas seria um erro imitar muito de perto a sua obra, e não apenas porque seu caminho é difícil de seguir e exige um grau de sensibilidade que falta à maior parte de nós. Vistos à distância de mais de um século, seus livros, como também os de Huizinga e outros clássicos, mostram de modo muito claro suas fraquezas. As fontes, os métodos e as suposições desses estudos precisam ser questionados.

Os clássicos revisitados

Tomemos, por exemplo, a maneira pela qual as evidências são tratadas nos clássicos da história cultural. Em Outono da Idade Média, em particular, Huizinga lançou mão repetidas vezes de poucas fontes literárias. Se recorresse a outros escritores, poderia ter produzido um quadro da época muito diferente. A tentação a que o historiador cultural não deve sucumbir é a de tratar os textos e as imagens de um certo período como espelhos, reflexos não problemáticos de seu tempo.

Em seu livro sobre a Grécia, Burckhardt defendia a confiabilidade relativa das conclusões de historiadores culturais. A história política da Grécia Antiga, dizia ele, estava cheia de incertezas, porque os gregos exageravam ou até mesmo mentiam. “Em contraste, a história cultural tem um grau primário de certeza, já que consiste, em sua grande parte, em materiais gerados de modo não intencional, desinteressado ou mesmo involuntário pelas fontes e monumentos.”1

No que se refere à confiabilidade relativa, Burckhardt sem dúvida tem uma certa razão. Seu argumento em favor do testemunho “involuntário” também é convincente: testemunhas do passado podem nos dizer coisas que não sabiam que sabiam. De qualquer forma, não seria correto supor que, digamos, os romances e as pinturas sejam sempre desinteressados, livres de paixão ou de propaganda. Como seus colegas de história política ou econômica, os historiadores culturais têm de praticar a crítica das fontes, perguntar por que um dado texto ou imagem veio a existir, e se, por exemplo, seu propósito era convencer o público a realizar alguma ação.

No que se refere ao método, Burckhardt e Huizinga foram muitas vezes criticados, chamados de impressionistas ou mesmo anedóticos. Sabe-se muito bem que observamos ou lembramos aquilo que nos interessa pessoalmente ou que se encaixa no que já acreditamos, mas nem sempre os historiadores refletiram sobre a moral dessa observação. “Trinta anos atrás”, confessou certa vez o historiador econômico John Clapham, “li e sublinhei Travels in France, de Arthur Young, e dei aulas a partir das passagens sublinhadas. Há cinco anos li o livro de novo e descobri que eu havia marcado todas as vezes que Young falava de um francês infeliz, mas que muitas de suas referências a franceses felizes ou prósperos ficaram sem sublinhar.” Pode-se suspeitar que Huizinga fez algo parecido ao ilustrar sua afirmação de que “em nenhuma outra época as pessoas pensaram tanto na morte quanto nos últimos anos da Idade Média”.

A história cultural está condenada a ser impressionista? Se não, qual é a alternativa? Uma possibilidade é o que os franceses chamam de “história serial”, ou seja, a análise de uma série cronológica de documentos. Na década de 1960 alguns historiadores franceses já trabalhavam dessa maneira na questão da difusão da alfabetização e na “história do livro”. Eles comparavam, por exemplo, o número de livros publicados sobre diferentes assuntos em diferentes décadas na França do século XVIII.2 A abordagem serial dos textos é adequada em muitos domínios da história cultural e já foi empregada na análise de testamentos, escrituras, panfletos políticos e assim por diante. As imagens também foram assim analisadas, por exemplo, imagens votivas de uma determinada região — como a Provence —, que revelam mudanças em atitudes religiosas ou sociais ao longo dos séculos.3

O problema levantado por Clapham acerca das leituras subjetivas dos textos é bem mais difícil de resolver. Mas há uma alternativa possível a esse tipo de leitura. Ela acabou sendo conhecida como “análise de conteúdo”, um método usado nas faculdades norte-americanas de jornalismo no começo do século XX, antes de ser adotado, durante a Segunda Guerra Mundial, como um modo de obter informações confiáveis dos boletins de notícias alemães. O procedimento é escolher um texto ou corpus de textos, contar a frequência de referências a um dado tema ou temas e analisar sua “covariância”, ou seja, a associação entre temas.

Por exemplo, podem-se analisar dessa maneira os escritos históricos de Tácito, observando a notável frequência de palavras referentes a “medo” (metus, pavor) e tratando-as como mostras da insegurança, consciente ou inconsciente, do autor.4 Na década de 1970, um grupo estabelecido em Saint-Cloud que se intitulava Laboratório de Lexicometria e trabalhava com a Revolução Francesa listou os temas mais comuns nos textos de Rousseau, Robespierre e outros. Observou-se, por exemplo, que o substantivo mais comum no Contrato social de Rousseau era loi (“lei”), enquanto nos textos de Robespierre era peuple (“povo”), e ainda que Robespierre tendia a associar esse termo a droits (“direitos”) e souveraineté (“soberania”).5

Análises de conteúdo desse tipo têm de enfrentar algumas perguntas incômodas. O trabalho do grupo de Saint-Cloud era puramente descritivo, e pode-se argumentar que não vale a pena investir tanto esforço sem uma hipótese para testar. De qualquer forma, a passagem das palavras para os temas é difícil. A mesma palavra tem significados diferentes em contextos distintos, e os temas podem ser modificados ao se associarem com outros. Uma abordagem quantitativa é mecânica demais, insensível demais às variações para ser esclarecedora por si mesma.

No entanto, quando combinada a métodos literários tradicionais, a análise de conteúdo pelo menos corrige o tipo de viés descrito por Clapham. Pode-se desenvolver uma argumentação semelhante a respeito da “análise do discurso”, uma análise linguística de textos maiores que uma frase isolada, abordagem com muita coisa em comum com a análise de conteúdo que ela suplantou, muito embora dê mais atenção à fala cotidiana, aos esquemas verbais, aos gêneros literários e a formas de narrativa.6

Outro tipo de problema, o das suposições, é enfatizado por Ernst Gombrich em sua conferência “Em busca da história cultural”, uma crítica a Burckhardt, Huizinga e também aos marxistas, especialmente Hauser, por construírem sua história cultural sobre “alicerces hegelianos”, em outras palavras, a ideia do Zeitgeist, tão popular no mundo de fala alemã nas viradas dos séculos XVIII e XIX.7 Entretanto, a seguir vou comparar as abordagens burckhardtiana e marxista da cultura, discutindo primeiro a crítica marxista dos clássicos e depois os problemas levantados por uma história marxista da cultura.

Debates marxistas

A principal crítica marxista sobre a abordagem clássica da cultura é que ela “fica no ar”, faltando-lhe contato com qualquer base econômica ou social. Burckhardt tinha pouco a dizer, como ele mesmo admitiu posteriormente, acerca das fundações econômicas do Renascimento italiano, enquanto Huizinga virtualmente ignorou a peste negra em seu relato sobre o sentimento de mortalidade do final da Idade Média. O ensaio de Panofsky também tinha pouco a dizer acerca dos contatos entre os dois grupos sociais responsáveis pelas realizações da arquitetura e da escolástica góticas, os mestres de obras e os mestres das artes.

Uma segunda crítica marxista aos historiadores clássicos da cultura acusa-os de superestimar a homogeneidade cultural e ignorar os conflitos. Uma expressão muito contundente dessa crítica encontra-se em um ensaio de Edward Thompson no qual ele chama a cultura de “termo desajeitado” que amontoa as coisas, esconde as distinções e tende a “nos empurrar para noções excessivamente consensuais e holísticas”.8 Seria preciso traçar as distinções entre as culturas das diferentes classes sociais, as culturas dos homens e das mulheres e as culturas das diferentes gerações que vivem na mesma sociedade.

Outra distinção útil é a que se faz entre o que pode ser chamado de “zonas temporais”. Como sugeriu o historiador marxista alemão Ernst Bloch na década de 1930, “nem todas as pessoas existem no mesmo Agora. Isso só acontece externamente, pelo fato de poderem ser vistas hoje”. Na verdade, “elas carregam consigo um elemento anterior; e isso interfere”.9 Bloch pensava nos camponeses alemães da década de 1930 e na empobrecida classe média de seu tempo, que viviam ambas no passado. No entanto, a “contemporaneidade do não coetâneo”, como chamou ele, é um fenômeno histórico muito mais geral, que solapa a velha suposição da unidade cultural de uma era.

Esse ponto pode ser ilustrado pela própria história da história cultural, já que a abordagem clássica, a história social da cultura e a história da cultura popular coexistem há muito tempo.

Problemas da história marxista

A própria abordagem marxista levanta problemas complicados. Ser um historiador marxista da cultura é viver um paradoxo, se não uma contradição. Por que os marxistas deveriam se preocupar com o que Marx descartou, por considerar uma mera “superestrutura”?

Retrospectivamente, o famoso estudo de Edward Thompson, A formação da classe operária inglesa (1963), aparece como um marco na história cultural britânica. Por outro lado, quando foi publicado, o livro recebeu críticas de alguns colegas marxistas pelo que eles chamavam de “culturalismo”, ou seja, por colocar ênfase nas experiências e nas ideias, e não nas duras realidades econômicas, sociais e políticas. A reação do autor foi criticar seus críticos pelo “economicismo”.

Essa tensão entre culturalismo e economicismo foi criativa, pelo menos na ocasião. Encorajou uma crítica interna aos conceitos marxistas centrais de uma fundação econômica e social, ou “base”, e uma “superestrutura” cultural. Para Raymond Williams, por exemplo, a fórmula de base e superestrutura era “rígida”, e ele preferia estudar o que chamou de “relações entre elementos no modo de vida como um todo”. Atraía-lhe a ideia de “hegemonia cultural”, ou seja, a sugestão — feita pelo marxista italiano Antonio Gramsci, entre outros — de que as classes dominantes exercem poder não apenas diretamente, pela força e a ameaça da força, mas porque suas ideias passam a ser aceitas pelas “classes subalternas” (classi subalterni).10

Também para Thompson a ideia de hegemonia cultural apresentava um conceito da relação entre cultura e sociedade melhor que o de “superestrutura”. Como ele escreveu em Whigs and Hunters (1975), com sua retórica característica:

A hegemonia da pequena nobreza e da aristocracia no século XVIII era expressa, acima de tudo, não na força militar, não nas mistificações dos sacerdotes e da imprensa, nem mesmo na coerção econômica, mas nos rituais de estudo dos juízes de paz, nas sessões trimestrais dos tribunais de condado, na pompa das sessões dos tribunais superiores e no teatro das execuções dos criminosos.

Os problemas continuam. Por um lado, um marxismo que dispensa as noções complementares de base e superestrutura corre o risco de perder suas qualidades distintivas. Por outro, a crítica de Thompson às “noções holísticas” parece tornar impossível a história cultural, ou, pelo menos, parece reduzi-la a fragmentos. Por mais diferentes que fossem os dois estudiosos, Thompson parecia estar apontando para a mesma direção que Gombrich quando este rejeitava as “fundamentações hegelianas” das sínteses de Burckhardt e Huizinga. Tais críticas levantam uma questão fundamental: é possível estudar as culturas como um todo, sem fazer falsas suposições sobre a homogeneidade cultural?

Foram propostas duas respostas principais a essa pergunta. Uma é estudar as tradições culturais, e outra é tratar a cultura erudita e a cultura popular como “subculturas”, parcial embora não inteiramente separadas ou autônomas.

Os paradoxos da tradição

A ideia de cultura implica a ideia de tradição, de certos tipos de conhecimentos e habilidades legados por uma geração para a seguinte. Como múltiplas tradições podem coexistir facilmente na mesma sociedade — laica e religiosa, masculina e feminina, da pena e da espada, e assim por diante — trabalhar com a ideia de tradição libera os historiadores culturais da suposição de unidade ou homogeneidade de uma “era” — a Idade Média, o período do Iluminismo ou qualquer outra. Entre os historiadores mencionados no capítulo anterior, Aby Warburg e Ernst-Robert Curtius estavam particularmente preocupados com a tradição, no caso, o destino da tradição clássica no mundo pós-clássico.

A ideia de tradição parece quase autoevidente, mas essa noção tradicional de tradição, como podemos chamá-la, é problemática. Os dois problemas principais podem ser descritos como os paradoxos gêmeos da tradição.

Em primeiro lugar, uma aparente inovação pode mascarar a persistência da tradição. A persistência de atitudes religiosas sob forma secularizada já foi observada em muitas culturas, sejam elas católicas, protestantes, judaicas, hindus e maometanas. A sobrevivência de certas atitudes e valores puritanos nos Estados Unidos de hoje é um exemplo óbvio — o sentido da importância do indivíduo, por exemplo, ou a necessidade de realização e a preocupação com o autoexame. Historiadores das missões costumavam concentrar-se na “conversão” de indivíduos, grupos ou povos de uma religião para outra. Atualmente, cientes da persistência da tradição, colocam mais ênfase na mistura consciente ou inconsciente ou na síntese das crenças e valores das duas religiões envolvidas.

Assim, o sociólogo francês Roger Bastide, discutindo o Brasil, escreveu sobre reinterpretação do catolicismo pelos escravos da África Ocidental por meio do filtro de suas próprias visões de mundo; enquanto um estudo recente do Japão moderno argumenta que “convertido” e mesmo “cristão” são “rótulos errados”, nesse caso, e adota o termo local Kirishitan como forma necessária de distanciamento. Sua ideia é que a tradição sincrética do Japão (incluindo o xintoísmo, o budismo, o confucionismo e o daoísmo) torna mais fácil para as pessoas aceitarem mais uma religião ou, pelo menos, mais um culto.

Inversamente, os signos externos da tradição podem mascarar a inovação, tema enfatizado no volume coletivo sobre A invenção da tradição (discutido adiante). O chiste de Marx, ao afirmar que não era marxista, é bem conhecido. Ele parecia se referir a um problema recorrente que pode ser descrito como o problema dos fundadores e seguidores. A mensagem do fundador bem-sucedido de um movimento, filosofia ou religião raramente é simples. Ela atrai muitas pessoas porque tem muitos aspectos. Alguns seguidores enfatizam um aspecto, alguns enfatizam outro, segundo seus próprios interesses ou a situação em que se encontram. Ainda mais fundamental é o problema do “conflito interior das tradições”, a disputa inevitável entre regras universais e situações específicas sempre em transformação.11

Em outras palavras, o legado muda — na verdade deve mudar — no decorrer de sua transmissão para uma nova geração. A grande fraqueza do estudo sobre a literatura europeia feito por Curtius é a relutância do autor em reconhecer esse fato, tratando como constantes os lugares-comuns que estudou. Warburg, ao contrário, estava bem ciente das modificações produzidas na tradição clássica ao longo dos séculos. Atualmente, os historiadores culturais estão ainda mais interessados na questão da “recepção”, como veremos no Capítulo 5.

Cultura popular em questão

Uma outra alternativa óbvia para a suposição da homogeneidade cultural é distinguir entre cultura erudita e cultura popular em uma dada sociedade. No entanto, como o conceito de Zeitgeist e a ideia de superestrutura, a noção de “cultura popular” tornou-se, ela própria, uma questão em debate — para o qual teóricos como Michel de Certeau e Stuart Hall e historiadores como Roger Chartier e Jacques Revel deram contribuições valiosas.12

Para começar, é difícil definir o tema. Quem é “o povo”? Todos, ou apenas quem não é da elite? Neste último caso, estaremos empregando uma categoria residual e, como acontece muitas vezes em se tratando dessas categorias, corremos o risco de supor a homogeneidade dos excluídos. Talvez seja melhor seguir o exemplo de vários historiadores e teóricos recentes e pensar as culturas populares (ou, como os sociólogos costumam chamar, “subculturas”) no plural, urbana e rural, masculina e feminina, velha e jovem, e assim por diante. O termo “subcultura” parece estar caindo em desuso, talvez porque esteja associado à delinquência ou porque, erradamente, tenha passado a significar mais posição inferior em uma hierarquia cultural do que a parte de um todo. A pluralidade, contudo, continua em discussão.

No entanto, essa solução plural gera um novo problema. Existe, na mesma sociedade, por exemplo, uma cultura feminina autônoma, distinta da cultura dos homens? Responder “não” é negar diferenças palpáveis, mas responder “sim” talvez seja exagerá-las. Pode ser mais esclarecedor pensar em termos de culturas ou “subculturas” femininas mais ou menos autônomas ou demarcadas. Serão mais autônomas sempre que as mulheres forem mais segregadas dos homens; no mundo mediterrâneo tradicional, por exemplo, ou na cultura islâmica, ou nos conventos (alguns estudiosos recentes falam de “cultura de convento”).

No caso da Grécia Antiga, um classicista inspirado pela antropologia cultural, John Winkler, mostrou que, embora as fontes sobreviventes sejam quase inteiramente resultado do trabalho de homens, elas podem ser vistas sob a ótica contrária, revelando pontos de vista claramente femininos sobre sexo e outros assuntos. Ele trata a lírica de Safo e o festival feminino de Adonia como evidências particularmente valiosas de “uma consciência, por parte das mulheres gregas, no que se refere aos significados de sexo e gênero diferentes dos enunciados por seus maridos e pais”.13

Outro problema para os historiadores da cultura popular é definir se devem ou não incluir as elites, pelo menos em certos períodos. O que torna a exclusão problemática é o fato de que as pessoas de status elevado, grande riqueza ou poder substancial não são necessariamente diferentes, no que diz respeito à cultura, das pessoas comuns. Na França do século XVII os leitores dos livrinhos baratos tradicionalmente descritos como exemplos de cultura popular incluíam mulheres nobres e até mesmo uma duquesa. Isso não é de surpreender, já que na época as oportunidades educacionais das mulheres eram muito limitadas.

Sendo assim, Roger Chartier argumentava que era praticamente impossível rotular objetos ou práticas culturais como “populares”. Focalizando os grupos sociais, e não os objetos ou práticas, pode-se argumentar que as elites da Europa Ocidental no começo dos tempos modernos eram “biculturais”, participando do que os historiadores chamam de “cultura popular” e também de uma cultura erudita de que as pessoas comuns estavam excluídas. Só depois de meados do século XVII as elites deixaram em geral de participar da cultura popular.14

Os especialistas várias vezes sugeriram que as muitas interações entre cultura erudita e popular eram uma razão para abandonar de vez os dois adjetivos. O problema é que sem eles é impossível descrever as interações entre o erudito e o popular. Talvez a melhor política seja empregar os dois termos sem tornar muito rígida a oposição binária, colocando tanto o erudito como o popular em uma estrutura mais ampla. O historiador francês Georges Duby, por exemplo, fez isso em um artigo desbravador sobre a difusão dos modelos culturais na sociedade feudal, examinando o movimento para cima e para baixo dos objetos e práticas sem dividir a cultura em dois compartimentos.15

O que é cultura?

O termo “cultura” é ainda mais problemático que o termo “popular”. Como observou Burckhardt em 1882, história cultural é um “conceito vago”. Em geral, é usado para se referir à “alta” cultura. Foi estendido “para baixo”, continuando a metáfora, de modo a incluir a “baixa” cultura, ou cultura popular. Mais recentemente, também se ampliou para os lados. O termo cultura costumava se referir às artes e às ciências. Depois, foi empregado para descrever seus equivalentes populares — música folclórica, medicina popular e assim por diante. Na última geração, a palavra passou a se referir a uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, casas e assim por diante) e práticas (conversar, ler, jogar).

Falando estritamente, esse novo uso não tem nada de novo. Em 1948, em Notas para uma definição de cultura, T.S. Eliot, um norte-americano que observava a Inglaterra com um olhar antropológico, descreveu a cultura inglesa como incluindo, entre outros elementos, “O Dia do Derby, … o alvo de dardos, … repolho cozido e picado, beterraba ao vinagrete, igrejas góticas do século XIX e a música de Elgar”. O antropólogo Bronislaw Malinowski já havia definido cultura de maneira ampla, em um artigo que marcou sua colaboração na Encyclopaedia of the Social Sciences, em 1931, abrangendo “as heranças de artefatos, bens, processos técnicos, ideias, hábitos e valores”.

Na verdade, em 1871, em seu Primitive Culture, outro antropólogo, Edward Tylor, apresentou uma definição semelhante de cultura “tomada em seu sentido etnográfico amplo”, como “o todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. A preocupação antropológica com o cotidiano e com sociedades em que há relativamente pouca divisão de trabalho encorajou o emprego do termo “cultura” em um sentido amplo.

Os historiadores culturais — e outros membros de sua cultura — se apropriaram dessa noção antropológica na última geração, a era da “antropologia histórica” e da “nova história cultural”. Esses movimentos gêmeos são o tema dos próximos capítulos.