Quatorze

– Você se lembra daquela festa? – Greta me agarrou e sussurrou no meu ouvido quando saí do banheiro do andar de cima. Minhas mãos ainda estavam molhadas e eu as esfreguei na malha.

– Hum?

Greta soltou um suspiro irritado.

– É, você lembra. Lembra que eu perguntei se você queria ir a uma festa? Jillian Lampton? Lembra?

Eu não tinha esquecido exatamente. Acho que apenas arquivei em algum lugar. Ou talvez tenha pensado que era tudo brincadeira desde o início. Algo cruel que Greta dissera só para ver o que eu responderia. Fiz que sim com a cabeça, de qualquer forma.

– É, bem, ela foi adiada várias vezes, mas vai ser hoje à noite.

– Hoje à noite? Mas...

– Eu disse à mamãe que precisam de ajuda na peça.

– Eu não estou na peça.

Greta revirou os olhos e puxou um fôlego profundo e estável.

– Sim. Eu sei. Você vai à festa.

– Ah.

Eu nunca mentira para os meus pais sobre aonde ia. Nunca tivera nenhum lugar para ir antes.

– Você pode levar a Beans também. Se quiser.

Eu não era amiga da Beans fazia anos. Não de verdade. Quando Beans se mudou para cá de Ohio na terceira série, com seu corte de cabelo de Dorothy Hamill e seus distintivos da 4-H costurados do lado de fora da mochila, ela não tinha ninguém. Naquela época, éramos melhores amigas. Por muito tempo, até o final do primário, Beans foi minha única amiga. Porque eu sempre fui assim. Só precisava de um bom amigo e era suficiente. A maioria das pessoas não é assim. A maioria está sempre à procura de mais pessoas para conhecer. No final, Beans era como a maioria das pessoas. Depois de um tempo, ela tinha dúzias de amigos e, na quinta série, ficou bem óbvio que, apesar de ela ser minha melhor amiga, eu não era a dela.

De alguma forma, minha família toda deixou de notar o fato de Beans e eu não sermos mais boas amigas. Eu poderia ligar para ela e ela seria simpática e tudo mais, mas seria estranho. Não importava quantas vezes eu dissesse à minha mãe que Beans tinha toneladas de amigos, minha mãe não conseguia deixar de ver a situação como costumava ser entre nós. Talvez eu não quisesse que ela deixasse, porque, então, começaria a me importunar para encontrar novos amigos. Eu não queria explicar para ela quem eu era. Que eu era a menina esquisita que carregava um exemplar gasto de The Portable Medieval Reader na mochila, a menina que só usava saia, geralmente com botas medievais, a menina que era pega encarando os outros. Eu não queria ter de dizer a ela que as pessoas não estavam exatamente fazendo fila para passar um tempo comigo.

Além disso, depois de ter um amigo como Finn, era quase impossível achar alguém no colegial que chegasse pelo menos perto dele. Às vezes, eu me perguntava se passaria a vida toda procurando alguém que chegasse pelo menos um pouquinho perto.

Greta abriu o zíper da bolsa.

– A mamãe ficou muito feliz por fazermos alguma coisa juntas. Sabe o que ela fez?

Balancei a cabeça, negando.

– Ela me deu dez pratas. – Greta deu um sorriso largo e tirou uma nota de dez dólares da bolsa, exibindo-a na minha frente. – Ela disse que eu devia te levar para tomar um sorvete depois. Então, tudo resolvido. Você ainda quer ir?

– Acho que sim.

– Ótimo. Traga botas. E vista algo bem quente. É no bosque.

– Greta?

– O quê?

– Sabe aquele cara do funeral?

– Sei.

– Ele era namorado do Finn, né?

Eu estava me esforçando ao máximo para fingir que não me importava com a resposta.

Desde aquele dia com o bule de chá, eu pensava que via Toby em toda parte. Não conseguia me lembrar com exatidão da aparência dele, apenas a forma, o que piorava a situação. Havia homens altos e magros por todos os lugares e, à primeira vista, qualquer um poderia ser Toby.

Nos últimos dias, eu estivera tentando pegar Greta desprevenida. Eu achava que, se perguntasse alguma coisa quando ela não estivesse esperando, ela poderia me contar mais do que queria. O que aprendi ao longo dos anos foi que me fingir de boba era a melhor maneira de fazer isso. Assim que ela pensasse que eu não sabia de algo, entrava com tudo.

– Parabéns, Sherlock. Você só levou alguns séculos para perceber isso.

– Não é isso que estou tentando dizer.

– Certo, então, o quê?

– Então ele está morando no apartamento do Finn agora?

– Isso mesmo. A vida não é justa. Você mata um homem e acaba com um ótimo apartamento no Upper West Side.

– Então você acha que ele definitivamente passou AIDS para o Finn. Você tem certeza.

– Não apenas certeza, sei que ele fez de propósito. Aquele cara sabia que tinha AIDS quando conheceu o Finn. Ele sabia.

– Como você pode saber?

– Apenas sei. Ouvi coisas.

– Então ele realmente é, tipo, um assassino?

– Exato.

O tom dela tinha mudado. De repente, parecia contente por eu estar interessada no que ela sabia. Pensei que talvez eu pudesse lhe contar sobre o bule de chá e a carta e sobre a estação de trem no dia 6 de março. Talvez ela ouvisse e ficasse impressionada por eu ter minhas próprias notícias, para variar. Mas não consegui fazer as palavras saírem. A carta dizia para eu não contar a ninguém, e talvez Toby tivesse razão. Talvez até um assassino possa estar certo às vezes.

– Certo.

– Certo o quê?

– É só isso. Eu só queria ter certeza.

– Tanto faz, June. Cresça. Tudo está acabado agora.

– É. Eu sei que está.

Eu chamei Beans. Acho que pensei que devia fazer esse esforço, mas ela disse que não podia sair. Então, seria apenas eu. Eu e um monte de amigos de Greta.

Mais tarde, enquanto descíamos a escada para o jantar, Greta me cutucou no ombro e, depois, colocou um bilhete no bolso de trás dos meus jeans. Festa cancelada. Acontece que várias pessoas não podiam sair. Mas Greta já tinha mentido para os nossos pais, e, assim, eu tinha de ir ao ensaio da peça com ela de qualquer maneira. Teria de me sentar no fundo do auditório naqueles assentos de veludo vermelho, vendo-a se transformar na Bloody Mary de novo e de novo.

É claro que eu estava aliviada porque a festa fora cancelada. Não era só a questão da timidez, o completo retardo social. Era mais do que isso. Eu não estava interessada em beber cerveja e vodca ou fumar cigarro ou fazer todas as outras coisas que Greta acha que nem posso imaginar. Não quero fazer essas coisas. Qualquer um pode imaginar coisas assim. Eu quero imaginar o tempo com fendas, bosques cheios de lobos e pântanos frios à meia-noite. Sonho com pessoas que não precisam fazer sexo para saber que se amam. Sonho com pessoas que só nos beijariam no rosto.

Naquela noite, fiquei sentada no auditório da escola e vi Ryan Cooke, com todo o seu carisma de ouro, cantar sobre noites encantadas. O Sr. Nebowitz, o diretor, ficava interrompendo Ryan, fazendo-o cantar certas partes da música vez após outra, dizendo-lhe para deixar as palavras transparecerem no rosto dele.

– Devíamos poder ler seu rosto como um poema. Mesmo que você não diga uma palavra, todos na plateia devem saber exatamente como você se sente.

O Sr. Nebowitz era jovem, com muito cabelo escuro e encaracolado. Era o final que ele queria que Ryan acertasse. A parte sobre “segurar e soltar”.

Ryan tentou de novo e de novo. Eu não conseguia perceber muita diferença, mas o Sr. Nebowitz disse:

– Melhor. Está ficando melhor.

Ele deixou Ryan sair e chamou Greta no palco.

Happy Talk, certo?

Greta fez que sim com a cabeça e entrou no palco sem nada de maquiagem nem figurino. Apenas ela, de jeans e camiseta. Nem tirou os óculos. Puxou o cabelo para trás com uma mão e fechou os olhos por um segundo. O Sr. Nebowitz começou a tocar o piano.

– Até o final direto – ele disse, acenando com a cabeça para Greta.

Ela cantou a música toda e eu não pude ver ou ouvir nenhum erro. Quando terminou, o Sr. Nebowitz bateu palmas, virou-se para o restante do elenco, que estava sentado na plateia sem participar, e disse:

– Esse é o padrão que estou procurando, pessoal.

Depois, olhou de novo para Greta no palco e agradeceu por todo o esforço que ela estava fazendo. Algo assim teria me deixado envergonhada além do imaginável, mas Greta apenas fez uma reverência exagerada como a de um palhaço, o topo da cabeça quase tocando o chão, e provocou uma grande risada nos outros alunos. Eu ri também, porque era a primeira vez em muito tempo em que eu a via solta e brincalhona assim. Fiquei feliz em ter sido forçada a ir ao ensaio.

Greta saiu do palco e eu pensei em Toby de novo. Pensei que amigo especial poderia significar qualquer coisa. Não precisava ser uma coisa importante. Talvez Finn nunca o tivesse mencionado porque ele não era ninguém. Foi minha mãe que usou a palavra especial. Finn nunca chamaria alguém assim. Não sem fazer cara de piada, de qualquer maneira. Talvez fosse apenas um golpe de sorte aquele cara ter ficado com o apartamento de Finn. Talvez Finn tivesse pena dele.

O ensaio acabou por volta das 20h30. Continuei sentada e vi Greta e Ryan e vários outros alunos da peça sentados na ponta do palco, as pernas dependuradas, rindo. Eram aquelas as pessoas com quem Greta andava na época. As inteligentes. As que não eram apenas inteligentes, mas populares também. As que podiam fazer qualquer coisa. Ryan Coooke e Megan Donegan e Julie Contolli. Greta parecia feliz lá. Relaxada. Como se aquela fosse mesmo uma ilha no sul do Pacífico. Mas também parecia mais nova do que todos os outros. Em fila daquele jeito, eu não entendia como ninguém conseguia ver o quanto era óbvio. Ryan tinha um pequeno bigode. As pernas de Megan e Julie eram pernas de mulher. Cheias e torneadas. As pernas finas de Greta estavam dependuradas do palco e a faziam parecer uma criança em um balanço.

O Sr. Nebowitz deu boa-noite a todos e perguntou a Greta se ela tinha um minuto. Ela seguiu o diretor para fora do auditório. Eu fiquei na fileira do fundo, pensando que não deveria ir embora sem Greta.

– Ei, você aí. Vou desligar as luzes.

Pude ver que era Ben Dellahunt, aluno do penúltimo ano e assistente de contrarregra da peça.

Nas sombras, fiz que sim com a cabeça.

– Só estou esperando a minha irmã – eu disse. – Vou daqui a um minuto.

Ben era um daqueles adolescentes que você achava que poderia ser rico quando crescesse. Não porque havia algo de grande nele, mas porque era o tipo de cara que sempre parecia ter um plano. Sempre usava o cabelo em um rabo de cavalo e havia boatos de que ele realmente inventara uma nova linguagem de computador, mas provavelmente não era verdade. Ele não era o melhor da turma, mas era bem inteligente. Inteligente o bastante. Colocou a mão sobre os olhos e os apertou, olhando para a última fila, como se observasse o mar. Depois, começou a andar até o corredor central. Quando se aproximou, ele me examinou, olhando direto para os meus pés.

– Ei, você é a menina das botas.

Ele sorriu e balançou a cabeça como se tivesse resolvido algum tipo de charada. Estava prestes a se sentar ao meu lado, mas, antes que pudesse, Greta voltou pela esquerda do palco. Ela ficou ali em cima, olhando para as fileiras de assentos.

– Você vem ou não? – chamou, já se virando para ir embora.

– Sim. ‘Tô indo – gritei de volta.

Disse tchau para Ben e, depois, corri para alcançar Greta. Ela saiu brava na frente, deixando-me passos para trás durante todo o caminho para casa. Quando finalmente chegamos, ela não disse uma palavra. Apenas correu para o andar de cima, direto para o quarto, e bateu a porta depois de entrar.