Prefácio

Acompanhei o trabalho de Orlando Coser durante vários anos. Vi aos poucos se delinear seu percurso, e assisti de perto à maneira pela qual sua pesquisa, inspirada na prática clínica, tomou inicialmente a forma de uma tese de doutorado, e se tornou finalmente um livro.

Por inspiração clínica, entenda-se aqui o traço possível de se reconhecer ao longo do esforço teórico, e que tem por origem a dupla inserção profissional do autor durante o tempo em que elaborou seu trabalho: de um lado a cadeira de psicologia médica do Hospital Universitário da UFRJ, onde recebia pacientes enviados pelos médicos das várias especialidades cujos sintomas pediam um outro tipo de intervenção; do outro, o consultório privado onde dirige tratamentos psicanalíticos. São demandas diferentes, expectativas, sem dúvida, diversas, o que implica uma diferença inicial de lugar que se oferece ao psicanalista. No hospital, ele é antes de tudo chamado a complementar o trabalho do médico, suposto especialista que é do psiquismo, como outros o são do coração, do estômago etc. No consultório, recebe pedidos aparentemente mais diretos, de sujeitos que em geral têm um destinatário já nomeado para suas queixas, que chamam por antecipação, isto é, antes que o trabalho analítico efetivamente comece, de psicanalista.

Em ambos os lugares, como aliás em muitos outros atualmente, uma queixa comum se repete, a de depressão: no hospital, em geral como um efeito no sujeito da sua situação de dependência, que o faz se sentir às vezes como um mero corpo manipulado, ou às vezes como experiência de uma certa aproximação ou risco de morte; e, no consultório, como uma impotência diante da exterioridade do inconsciente, ou simplesmente dos imperativos da vida, que exigem de cada um que seja fiel à sua determinação simbólica e ao seu desejo.

A depressão, pelo que se diz, está na moda. Não somente as pessoas se dizem deprimidas com maior facilidade do que antes, como também os profissionais da saúde diagnosticam com maior freqüência seus pacientes de deprimidos, ou mesmo recomendam antidepressivos para sujeitos – fóbicos, obsessivos, ou mesmo os que querem abandonar o vício do fumo – que, a rigor, nem se queixam e nem apresentam sinais clínicos de depressão. Cabe perguntar: os antidepressivos são inespecíficos, ou o termo depressão tende a encobrir um continente cada vez mais amplo?

Para um estado de sofrimento pouco preciso, é natural, o único remédio cabível é a panacéia. Isto é, a dissolução do que pode haver de particular no remédio – podemos pensar aqui na ideologia de uma droga da felicidade – corresponde à da particularidade do quadro clínico, a tal ponto que um diagnóstico mais fino pode se tornar desnecessário e mesmo indesejável. Deprimido, então, passa a ser todo aquele que procura fugir ou reage mal aos embates da vida, ou que se considera insuficientemente apto para enfrentar as exigências que lhe aparecem, ou que é infeliz. O medicamento, então, transformado em droga da felicidade, já não é exatamente um medicamento, assim como a infelicidade não é uma estrutura clínica. O que se insinua aqui, é muito importante que se saiba, é um deslizamento da função do medicamento, que, de poção química com efeitos sobre o organismo – que é o que lhe dá, e com certa razão, uma imagem de algo objetivo –, de repente se revela um recurso que opera eticamente, saibam disso ou não os usuários e profissionais.

É justamente aqui que os psicanalistas têm o que dizer, a partir de algo no fim das contas muito simples: é que a amplitude da droga, assim como a da queixa, delineia um lugar semelhante ao que coube à psicanálise ocupar historicamente. Explico-me: também a psicanálise apareceu como um desdobramento externo do tratamento médico, como uma confluência entre as técnicas da medicina científica e a ética. Nos tempos de Freud, essa exterioridade surgiu como resposta para os sintomas histéricos, pouco dóceis, como se sabe, à disciplina dos saberes constituídos. Acatando a histérica, Freud na realidade, a legitimou como sujeito, inscrevendo-a em um quadro racional que permitiu, simultaneamente, sua inclusão no debate científico e seu tratamento. Para isso, reconheceu por trás do sofrimento o sintoma, de cujo protocolo o sujeito histérico fora exilado, junto com seus males incompreensíveis.

Seria tentador dizer então que os deprimidos de hoje tomaram o lugar dos histéricos de outrora, e a partir daí tentar definir que nova abordagem clínica lhes convém. Isso estaria bem de acordo com a respeitabilidade que ganhou nos nossos tempos e no nosso país o que quer que surja de novidade, como o atesta a aceitação sem muita discussão de quaisquer resultados de estudos divulgados pela imprensa, em geral após um preâmbulo do tipo "as últimas pesquisas feitas nos Estados Unidos e na Europa demonstram que...". O que se quer acentuar não é a 'demonstração', e nem sequer as 'pesquisas', mas o fato destas serem as 'últimas'. É um sinal dos tempos, sem dúvida, mas fazer essa constatação não é suficiente, se não se entende a relação que há entre essa fascinação pelas novidades e o corte radical que as gerações atuais sofreram com o que se costuma chamar de história, o que produziu um bloqueio na transmissão e a conseqüente dificuldade em se situar a responsabilidade do sujeito. É mais um indício, como o testemunha cotidianamente a clínica psicanalítica, da séria crise que sofre a função paterna, que está no cerne do mal-estar da nossa civilização.

O problema é que a depressão não é uma estrutura, como a histeria, assim como a tristeza ou a astenia não é um sucedâneo das conversões, apesar de poder se manifestar, como essas últimas, sob a forma de padecimentos corporais inexplicáveis. O que se chama de depressão hoje em dia – se excluímos a psicose melancólica – são eminentemente estados de alma que escondem o sujeito mais do que o revelam, uma espécie de recuo ético que impede o sujeito – por razões sempre compreensíveis, claro, – de assumir as conseqüências, digamos assim, da existência do inconsciente, cuja irrupção poderia se resumir com a seguinte descoberta: 'eu não quero o que desejo'. É o que levou Lacan a chamá-la de "covardia moral". Em face disso, a primeira tarefa do clínico deveria ser justamente a de, visando além da queixa que aceitou ouvir, desvelar o sintoma e fazer falar o sujeito, retomando com isso o caminho freudiano de legitimação do sujeito do sintoma como sujeito de direito. Isso, naturalmente, costuma levar algum tempo e exige cuidados, dado o poder de inércia que caracteriza as depressões.

O importante, naturalmente, não é contrapor a psicanálise aos recursos da farmacologia – aliás, são dissimétricos e por isso dificilmente comparáveis –, nem mesmo postular que o limite para o uso dos medicamentos é o mesmo que separa a psicose das neuroses. A grande questão atual, com o avanço efetivo das pesquisas farmacológicas, é de como impedir que o apelo aos medicamentos seja um substituto – moderno, sem dúvida – da palavra do sujeito, sobretudo se essa substituição se dá em nome da vantagem que teria um tratamento supostamente capaz de remediar a precariedade que é própria do sujeito. Em suma, trata-se de romper a nefasta ligação que se produziu entre uma droga da felicidade e um sujeito definido simplesmente como deprimido.

A pesquisa de Orlando Coser pretende refazer criticamente – dos pontos de vista metodológico, clínico e teórico – o percurso dessa nova forma de mal-estar e nova tendência terapêutica, para com isso advogar a causa do sujeito, isto é, verificar as chances que tem este último de se manter como 'desejante', e, a partir daí, poder se beneficiar do que há de melhor no progresso da ciência. Este debate interessa a todos nós: psicanalistas, psiquiatras, pesquisadores, e, em última instância, àqueles que experimentam a dor de se verem sem saída.