Um rebanho de íbex pastava no alto de um desfiladeiro no deserto da Judeia — os corpos pequenos de antílopes pareciam ainda menores comparados aos gigantes pares de chifres em curva. Uma brisa bem-vinda soprava no dorso dos animais enquanto eles procuravam os arbustos raquíticos que um dia existiram ali naquela imensidão, enfiando o focinho quente e rachado na terra quente e rachada, roendo todo e qualquer broto verde e suculento que conseguira despontar em meio às rochas.
Tentado pela visão de algumas folhas de relva na beirada do precipício, um íbex se afastou dos demais, pastando mais perto da queda fatal do que qualquer um deles se atrevia a se aproximar. Com os dentes, puxava as folhas com muito cuidado. Os cascos fendidos faziam as pedras soltas estalarem quando ele transferia seu peso de uma pata para a outra, lançando um cascalho ou outro em um mergulho de milhares de metros de altura até o vale lá embaixo. Dez milhões de anos de aspirações geológicas destruídos em segundos.
Quilômetros ao norte de onde o animal mastigava a refeição obtida com tanto esforço, um carpinteiro prosseguia em sua jornada para Jerusalém, sob o sol escaldante do meio-dia. Sua mente revisitava histórias de pragas e inundações para impedir que a sede o enlouquecesse; a jovem esposa, muitíssimo grávida, dormia no lombo de um burro atrás dele. E embora o íbex jamais fosse saber — embora sua vida, bem como a de todos os outros íbex, fosse passar completamente despercebida e desconsiderada pelos anais da história —, estava prestes a se tornar o único ser vivo a testemunhar uma visão de fato extraordinária.
Havia algo errado...
Talvez fosse um brilho no canto de seus olhos, uma vibração quase imperceptível sob suas patas. Qualquer que fosse a razão, o íbex de repente se sentiu compelido a erguer a cabeça e mirar o vasto deserto abaixo. Lá, a distância, o animal notou uma pequena tempestade de areia se movendo pouco a pouco em meio aos indistintos beges e marrons. O que não era de forma alguma incomum. Tempestades de areia se formavam a todo instante, dançando aleatoriamente pelo deserto, como redemoinhos de espíritos. Mas duas coisas tornavam aquela nuvem especial: a primeira, o fato de que se movia em uma linha perfeitamente reta, da direita para a esquerda. A segunda, o fato de que estava sendo seguida por outra nuvem, uma muito maior.
Ao menos era o que parecia. O íbex não sabia se nuvens de areia podiam, de fato, perseguir umas às outras. Sabia apenas que devia fazer o máximo para evitá-las, pois significavam a morte. Ainda ruminando, o animal virou-se para ver se os outros também tinham percebido aquilo. Não. Estavam todos pastando, alheios ao mundo, os focinhos enfiados no chão. O íbex virou-se de novo e ponderou sobre o estranho fenômeno por mais um instante. Então, convencido de que não se tratava de um perigo para si mesmo ou para o rebanho, retomou sua refeição. As duas nuvens se moviam em silêncio e continuamente, a distância.
Quando arrancou com os dentes mais um punhado de folhas das rochas, o íbex já havia se esquecido de que as nuvens sequer existiam.
Baltasar não conseguia ver porcaria nenhuma.
Trotava pelo vale desértico, batendo os calcanhares feito louco no lombo do camelo, apenas os olhos visíveis no kuffiyah que usava para se proteger do sol e do cheiro do animal embaixo dele. Dois alforjes repletos de coisas pendiam um de cada lado do camelo, e um sabre balançava freneticamente pendurado no cinto do homem enquanto ele seguia a galope, levantando areia do deserto atrás de si. Baltasar virou-se para avaliar se seus perseguidores estavam perto, mas só conseguia enxergar a “nuvem”. A mesma nuvem gigante e implacável que o seguia desde Tel Arad. A nuvem que tornava impossível distinguir quantos homens o seguiam. Dúzias? Centenas? Não havia como saber. Era, naquele momento, uma nuvem de cólera indeterminada.
Vindo da mesma direção que a nuvem, ouviu um assobio discreto, quase como o barulho do vento cortando uma ravina. Primeiro era uma nota única, cujo som gradualmente tornava-se mais grave e mais alto a cada segundo. A essa nota reuniram-se outra e mais outra, até que a atmosfera atrás de Baltasar tornou-se um coro de assobios discretos — começavam sopranos e terminavam tenores, conforme ficavam mais altos, mais próximos. Assim que Baltasar percebeu o que era aquilo, as flechas começaram a atingir o solo atrás dele.
Estão atirando enquanto cavalgam, pensou.
Nenhuma das flechas chegou perto o suficiente para causar preocupação. Baltasar não estava surpreso. Qualquer arqueiro experiente sabia que atirar de um cavalo a galope era quase impossível, porque mesmo a menos de vinte metros a chance de acertar o alvo era muito pequena. Daquela distância, seria impossível — sinal de desespero ou de raiva. Baltasar não achava que aquele grupo da Judeia estivesse desesperado. Estavam furiosos, e se o pegassem iam despejar nele toda aquela fúria. Afinal de contas, as incalculáveis legiões que formavam aquela nuvem não estavam apenas perseguindo o ladrão que fugira roubando uma fortuna em ouro, não estavam atrás do assassino de vários camaradas seus...
Estavam tentando pegar o “Fantasma da Antioquia”.
Essa era a alcunha que surgira das duas únicas coisas que os romanos sabiam a seu respeito: que nascera na Síria, o que provavelmente significava que crescera na Antioquia, e que tinha grande aptidão para invadir os lares dos ricos e fugir com seus bens sem ser visto ou ouvido. Os romanos não sabiam nada além dessas informações escassas e uma descrição física aproximada — nem sua idade, nem sequer seu nome verdadeiro. E embora o “Fantasma da Antioquia” não fosse um apelido lá muito inspirado, também não chegava a ser de todo ruim. Baltasar tinha que admitir que gostava de vê-lo nas listas de “criminosos conhecidos” pintadas nas paredes dos prédios públicos — sempre em vermelho, sempre em latim: Recompensa! O Fantasma da Antioquia — Inimigo de Roma! Ladrão do Império do Oriente! É verdade que não alcançara a fama de um Aníbal ou um Espártaco, mas era uma espécie de celebridade menor naquele pequeno canto do mundo.
Houve uma segunda onda de assobios, seguida por uma segunda saraivada de flechas atrás dele. Baltasar se virou e viu a última acertar o chão. Embora ainda longe o suficiente para não causar preocupação, a curva que produzira não fora tão inofensiva quanto a da primeira leva. Estão chegando perto, pensou.
— Mais rápido, seu imbecil! — gritou para o animal teimoso, o calcanhar golpeando-o nas laterais.
Se ao menos pudesse sair do campo de visão deles por um minuto ou dois, mudar de direção... Mesmo com um número indeterminado de soldados da Judeia em seu encalço, no meio do nada, contando apenas com um camelo cansado e malcheiroso e uma espada cega para protegê-lo, e mesmo com seus algozes somente a dois minutos de distância, ainda assim Baltasar tinha uma chance. Ele passara anos memorizando uma rede de túneis nos quais se esconder, os atalhos que cruzavam as terras desérticas, e os melhores lugares para encontrar comida e água em caso de fuga. Tinha treinado para sobreviver. Para seguir em frente nos momentos em que o mundo inteiro parecesse determinado a acabar com ele. Momentos como aquele.
Notou que o camelo estava diminuindo o ritmo e novamente usou os calcanhares para apressá-lo.
Vamos lá... só mais um pouco...
Era difícil para o animal manter o trote com tanta carga nas costas, e Baltasar fora obrigado a deixar para trás alguns dos objetos mais pesados quando fugiram de Tel Arad. A visão de todo aquele tesouro voando pela areia quase o tinha feito vomitar. Imaginar que algum pastor sortudo pudesse tropeçar no produto de sua pilhagem o fazia ranger os dentes de raiva. Não havia nada mais revoltante e mais injusto que negar a um homem os frutos de seu trabalho suado, principalmente se tais frutos eram de ouro maciço. Baltasar chegara a pensar em cortar um dos próprios membros para diminuir o peso. Mas as perspectivas de um ladrão de um braço só eram muito limitadas.
— Mais rápido! — gritou de novo, como se desse jeito pudesse atiçar mais o camelo do que nas milhares de vezes que cravara nele os calcanhares.
No entanto, o animal continuava diminuindo o ritmo, e, mais uma vez Baltasar foi obrigado a considerar o impensável: livrar-se de outra parte de seu suado tesouro.
Enfiou a mão em um dos alforjes e vasculhou até encontrar algo que lhe pareceu bem pesado. Quase não podia suportar a dor de olhar enquanto estendia a peça sob a luz do sol. Em sua mão havia uma taça de prata maciça, quase do tamanho de uma tigela. Finamente esculpida e decorada com pedras preciosas. Era um objeto impressionante, feito da melhor matéria-prima, pelos melhores artesãos. Era também incrivelmente pesado. Baltasar ergueu a taça ao lado do corpo. Então, revirando os olhos e com as entranhas se corroendo, deixou-a cair por entre os dedos. E virou o rosto para poupar-se de vê-la rolar nas areias do deserto, atiçando mais uma vez o camelo, em retaliação.
Vamos, seu imbecil... só um pouco mais...
Não podia ser sede. Camelos eram capazes de beber cento e cinquenta litros de água de uma só vez, e seu corpo armazenava tudo isso por semanas. A urina do animal era como um molho espesso, mas de dejetos. E as fezes eram tão duras que poderiam servir de lenha, pelo amor de Deus. Não... não era sede. De jeito nenhum. Cansaço? Pouco provável. Camelos eram conhecidos por viver cinquenta anos ou mais. E na olhadela rápida que Baltasar dera na cara daquele espécime em particular, enquanto o roubava de um beduíno muito insatisfeito, calculara que não devia ter mais que quinze anos. Vinte, no máximo. Ainda estava no auge de sua vida miserável.
Só um pouco mais, seu filho da puta...
Não, o camelo estava simplesmente sendo teimoso. E teimosia se corrigia com uma ou duas palmadas. Baltasar julgou que o animal ainda aguentava mais uma hora de galope. Quem sabe duas. E se a estimativa estivesse correta — se conseguisse demover a teimosia do camelo —, então ele teria grandes chances de chegar a Jerusalém. E se chegasse, estaria a salvo. Lá, poderia se misturar às multidões que sem dúvida lotavam as ruas por causa do censo. Conseguiria desaparecer. Negociar a pilhagem em troca de moedas, roupas, comida — e um camelo novo, claro.
Baltasar podia ser um ladrão, mas era contra correr riscos. O risco fazia as pessoas morrerem. Não era necessário. Quando um homem se preparava, quando estava no controle, as coisas normalmente aconteciam conforme planejado. Mas no instante em que deixava qualquer detalhe ao sabor do acaso... No instante em que confiava nos parceiros, ou no instinto, ou na sorte... Era aí que tudo ia por água abaixo. E era por isso que Baltasar estava sendo caçado pelo deserto por uma nuvem gigante, montando um animal fedorento e desmotivado. Porque tinha se arriscado. Porque cometera o pecado imperdoável de confiar nos próprios instintos.
Por mais que isso o aborrecesse, por mais que fosse de encontro à sua natureza, Baltasar tinha que admitir que o desdobramento daquela situação estava além de seu controle. Ele podia atiçar o camelo e praguejar o quanto quisesse...
Agora dependia do animal.