Tudo parecera perfeito demais. Todos os elementos tentadores estavam presentes: um estoque malguardado de itens valiosos, um nobre corrupto, um povo do qual os romanos tiravam proveito. Nem um cartógrafo conseguiria desenhar uma rota mais direta até o coração de Baltasar.
A localização havia sido outra tentação. A cidade de Tel Arad ficava mais de oitenta quilômetros ao sul de Jerusalém. E quanto mais longe de Jerusalém, menor era a probabilidade de se deparar com alguma tropa, quer fossem as tropas do rei Herodes, quer fossem os soldados de elite de Roma. E embora Tel Arad não chegasse aos pés da capital da Judeia, ainda assim era lar de novos e impressionantes templos. Para quem não era um criminoso, talvez esse parecesse um detalhe trivial. Mas, para Baltasar, era tudo. Templos significavam que haveria viajantes e troca monetária. Significavam que era menos provável que um homem de aparência ou sotaque estranhos chamasse atenção, e que alguém interessado em trocar mercadorias roubadas por moedas de ouro e prata poderia fazer isso sem nenhum problema. Templos eram os melhores amigos de um ladrão.
Tel Arad fora fundada havia milhares de anos, destruída e reconstruída mais vezes do que qualquer morador se dera o trabalho de contar. E por milhares de anos nunca passara do posto de “vilarejo deserto”. Mas os tempos tinham mudado. Impérios haviam se desenvolvido dos dois lados do povoado um dia esquecido e o transformaram em um grande centro comercial. De uma hora para outra, Tel Arad estava no centro da rota percorrida pelas mercadorias romanas rumo a leste e pelas mercadorias árabes rumo a oeste, para o Egito, o Mediterrâneo e, por fim, para Roma, e seu status gradualmente fora elevado ao de “cidade pequena”.
O sinal mais claro de sua importância emergente viera um ano antes, quando Roma decidira enviar um governador — Décimo Petrônio Verres — para cuidar da cidade. Oficialmente, Décimo estava lá para se certificar de que Tel Arad seguia as tradições e virtudes da vida romana. Extraoficialmente, e mais importante, estava lá para subjugar os arruaceiros à pena de morte e cuidar que os moradores pagassem seus impostos em dia.
Décimo ficara arrasado ao tomar conhecimento de sua tarefa. O cargo lhe fora apresentado como uma “honra”, é claro. Fora “escolhido a dedo pelo próprio Augusto para representar o império no Oriente”. Mas Décimo sabia o que aquilo significava de verdade: uma castração. A punição por ter ficado vezes demais contra o imperador no Senado.
Chorara sozinho ao saber das notícias. Como podiam fazer aquilo com ele? Primeiro, o deserto não era lugar para um romano, principalmente um de peso considerável, como ele, e de tez tão clara. Ademais, era perfeitamente feliz onde estava: a salvo, abrigado com tranquilidade nos subúrbios de Roma, protegido pelas cercas conferidas por uma riqueza razoável, se não exorbitante. Estava na casa dos cinquenta anos — velho demais para juntar uma vida inteira nas costas e se arrastar no calor. Roma era o centro do mundo. Lar de todo entretenimento e sedução que um homem poderia desejar. Já o deserto era uma sentença de morte. Mas o imperador havia ordenado. E, castração ou não, Décimo não tinha escolha.
Nem mesmo os membros exilados da nobreza romana poderiam partir sem levar o conforto de sua casa. Logo após a chegada a Tel Arad, Décimo ordenou que se construísse um complexo murado segundo suas especificações exatas — uma réplica em escala e fortificada de seu casarão em Roma. O mesmo pintor foi levado para recriar os afrescos preferidos do governador, os mesmos artesãos montaram no chão os mosaicos, pedra por pedra. O mesmo jardim formal e as mesmas fontes dominavam o coração do pátio central. Os mesmos escravos foram servir Décimo durante o dia, e as mesmas concubinas, à noite.
Depois de finalizado, o complexo era uma visão impressionante. Um símbolo reluzente da superioridade de Roma, escondido dos olhos do povo por muros de três metros de altura. Fora construído em uma colina que dava para a região nordeste da pequena cidade, com vista para o templo e o mercado, onde, como Décimo dizia, “a gritaria dos animais, a cantoria dos mercadores e a rezaria dos homens unem-se em um coro incansável que não me permite um momento sequer de paz”.
Mas Tel Arad não era de todo ruim. Levou algum tempo, mas Décimo acabou por se habituar à cidade. Não por causa das riquezas culturais ou da beleza natural, já que não havia nada disso. Tampouco pelas mulheres, pois ele levara as suas. Não, Décimo se apegara ao novo lar porque aquilo era, politicamente falando, um lixão.
Em Roma, sempre havia alguém mais poderoso, alguém que precisava ser aplacado ou subornado. Atos como traição e deslealdade tinham consequências bem reais e muito severas. Roma era uma cidade de leis. Mas no deserto elas não existiam. Em Tel Arad, Décimo era o único que precisava ser aplacado. Sua mão era a única que precisava ser molhada. Ele era a lei. Era uma função que nunca tivera a oportunidade de desempenhar em Roma, e ele a apreciava mais e mais a cada dia.
Como governador daquele pequeno e maldito areal, ele tinha o poder — de fato, a responsabilidade — de se certificar de que as mercadorias árabes a caminho do Ocidente estivessem de acordo com o “padrão romano”, termo que tinha uma definição ampla e bastante variável, mas que podia ser resumido mais ou menos a “bens que Décimo não quisesse pegar para si”.
Ele nomeou um grupo de homens do lugar para trabalhar como seus “inspetores” e então os deixou circular livremente pelo mercado, onde conduziam os chamados controles de qualidade quando bem entendiam. Tais inspetores tinham interesse em tudo, de joias a cerâmica, de tecidos a alimentos. E se um item parecesse ser de “qualidade inferior” ou fosse “suspeito de fraude”? Era confiscado e levado até o complexo do governador, para inspeção futura. Lá, Décimo daria a palavra final, decidindo se a mercadoria seria devolvida ou confiscada indefinidamente, armazenada em um cômodo construído especialmente para este fim. Nos seis meses desde que as inspeções começaram, nenhum mercador se lembrava de ter tido um item devolvido. E se reclamassem? E se causassem o menor dos problemas? Décimo providenciava para que jamais pisassem em seu mercado novamente.
Agora era ele quem tinha o poder de exilar.
Com tantos bens valiosos empilhados em um único lugar, não demorou muito para que Baltasar tomasse conhecimento do caso. Os boatos lhe chegaram pelas vias de sempre e foram descritos com o exagero habitual:
— Nunca houve romano tão ladrão! Ele se senta no topo de uma pilha de tesouros que faria inveja até aos deuses!
E embora, em geral, esses boatos não significassem muita coisa, a mera possibilidade de furtar um pequeno tesouro e, com isso, humilhar um governador romano já justificava uma olhadela em primeira mão. Assim, Baltasar partiu de Damasco, onde estivera investigando outro boato. O mesmo que perseguira durante anos. O único que realmente importava. Seguira escondido para o sul, por Bosra, evitando ao máximo as estradas. E na quinta noite de sua viagem, viu as tochas de Tel Arad queimando a distância e, mais no alto, os muros brancos e grandiosos do complexo do governador.
No dia seguinte, assuntou pelo mercado, torcendo para que algo das histórias que chegaram até ele no norte se confirmassem. Para sua surpresa, não só as histórias eram verdadeiras, como o valor dos itens confiscados era muito mais alto do que imaginara. Cálices de ouro, braceletes de prata, perfumes e especiarias raras — tudo apreendido pelo tal “Décimo”. Tudo trancafiado em algum lugar atrás de sua muralha.
Parecia um daqueles raros momentos em que a verdade é maior que o mito.
Baltasar tinha sua motivação. Agora, só precisava de uma oportunidade. Ele investigou o complexo a distância, tomando nota de quantos guardas havia, quando e como patrulhavam o terreno, que tipo de armas carregavam. Embora Tel Arad fosse uma província romana, e seus moradores pagassem impostos romanos, o exército romano não podia perder tempo indo tão longe ao oriente — não para cuidar de um governador que não estava mais nas graças do imperador. Décimo tivera que se contentar com um punhado de soldados do bem menos impressionante exército da Judeia, sob empréstimo de Herodes, o Grande, para proteger seu complexo. As tropas podiam não ser tão profissionais ou bem-equipadas como sua contraparte romana, mas não deveriam ser subestimadas. Invadir a fortaleza sozinho estava fora de questão.
Baltasar precisava de uma porta de entrada. Uma forma de romper as defesas. Dois dias depois de chegar a Tel Arad, ele a encontrou.
Seu nome era Flávia.
Aos dezessete anos, ela deveria estar em Roma, aproveitando os benefícios da riqueza e da juventude na maior cidade do mundo, compartilhando-os com outros filhos e filhas da classe dominante. Em vez disso, o pai a arrastara para o deserto do Império do Oriente e a deixara lá para murchar sob o calor. Sem nada para fazer. Sem ninguém para conversar além de concubinas e escravos.
Baltasar a observara por três dias. Todas as manhãs, ela descia a colina do complexo do pai acompanhada de dois soldados. Nas horas seguintes, vagava pelo labirinto de ruas abarrotadas que formava o mercado, comprando de tudo, de seda a harpas e figos, sem saber ou talvez ignorando de propósito o fato de que poderia conseguir qualquer um daqueles produtos de graça na fortaleza do pai. E então, ao meio-dia, subia a colina de volta e desaparecia atrás dos muros, não sendo mais vista até o dia seguinte.
Quando Baltasar finalmente agiu, o fez utilizando-se do truque mais velho e mais fácil que existe. Tão fácil que quase teve vergonha de si mesmo.
— Com licença — disse ele.
Flávia se virou, bem como se viraram os soldados em torno dela. Era loura, de cabelo cacheado — uma raridade naquela parte do mundo —, voluptuosa, com rosto bonito e sardas no nariz — outra raridade. Não fazia o tipo de Baltasar, mas não era de se jogar fora.
— Acho que deixou cair isto.
Ele lhe estendeu a mão fechada, que foi prontamente agarrada por um dos soldados. Baltasar riu e abriu os dedos, revelando um bracelete de contas. O bracelete que a mãe de Flávia dera a ela antes de morrer.
O bracelete que Baltasar havia roubado de seu pulso momentos antes.
Flávia examinou a peça, incrédula. Elas sempre agem assim. E imaginou como podia ter deixado algo tão importante cair de seu braço. Ordenando aos soldados que se afastassem, agradeceu a Baltasar com entusiasmo e se apresentou, estendendo-lhe a mão.
— Flávia — disse.
— Sargon — respondeu Baltasar, apertando-lhe a mão.
— Sargon... você se incomodaria de me acompanhar em um passeio pelo mercado?
Neste instante devo hesitar... o rosto vermelho de modéstia. Claro, posso acompanhá-la em um passeio pelo mercado. Mas vou fazê-la acreditar que essa é a última coisa que passaria por minha cabeça...
— Venha — disse ela, percebendo a hesitação dele. — Deixe-me comprar alguma coisa para você. Uma recompensa por sua boa ação.
— Ah, bom... não sei...
Claro que sei. Mas agora devo hesitar um pouco mais. Não por muito tempo — não o suficiente para fazê-la perder o interesse. Só o bastante para você acreditar que eu diria não. E então, no instante em que eu notar essa crença em seus olhos, vou dizer:
— Acho que sim, mas... sua companhia é a única recompensa de que preciso.
E você vai desfalecer em silêncio... enquanto eu me preparo para lhe ganhar com mentiras mais longas que a própria vida.
Flávia e “Sargon” caminharam durante horas, contando de tudo um ao outro. Dois espíritos solitários que finalmente — como que por milagre — encontraram uma afinidade naquela terra tão distante. E, embora os soldados observassem Sargon com desconfiança, embora tivessem preferido despachá-lo com um sermão, sabiam que era melhor não negar as vontades da única filha de Décimo Petrônio Verres.
Três noites e três visitas ao mercado depois, Flávia deu um jeito de levar Baltasar às escondidas para o complexo, para seu próprio quarto... exatamente como ele sabia que ela faria.
As duas semanas seguintes foram divertidas. Mais importante ainda: foram produtivas.
A cada noite, enquanto Flávia dormia, Baltasar se levantava da cama e se dedicava ao trabalho — esgueirando-se lenta e metodicamente pelos caminhos do complexo adormecido. Mapeou-o em sua mente até conhecer todos os cantos de cor. Até saber os hábitos noturnos de cada escravo e a posição de cada sentinela. Até saber como andar de um lado a outro sem ser iluminado pelo brilho das tochas. E, mais do que tudo, até ter examinado cada item confiscado no lendário depósito do governador, que encontrara na primeira noite e que, como tudo mais em Tel Arad, excedera suas expectativas.
E na noite em que Baltasar sentiu que não havia mais nada para descobrir, encheu dois alforjes com itens já escolhidos de acordo com a proporção valor-peso — colocou o máximo de coisas que podia carregar e ainda assim mover-se depressa, caso fosse necessário. Com as bolsas cheias, voltou pelo caminho cuidadosamente ensaiado em direção ao portão da muralha. O portão que sempre ficava desprotegido durante um intervalo de dez minutos, graças a um guarda com um organismo assombrosamente regular.
Ele se esgueirou pelas sombras, atravessou o jardim — vinte e sete passos — até a fonte — mais dez, só que um pouco para a esquerda — e fez uma curva fechada para a direita ao alcançar o relógio de sol. Só faltavam trinta passos em linha reta para chegar ao portão. Trinta passos até a liberdade...
— Sargon?
Baltasar quase deu um grito ao se virar na direção da voz. A princípio, achou que estivesse frente a frente com um fantasma. Um ser transparente de tão branco parecia flutuar na direção dele, saído da escuridão, quase irreconhecível sob a luz da lua. Ele permaneceu paralisado enquanto o ser se aproximava... até que Baltasar entendeu o que realmente era: uma camisola branca, esvoaçando na brisa cálida da noite.
— Flávia... — sussurrou ele.
— Você é um... você é um ladrão — disse ela.
O que lhe deu tal impressão? As duas bolsas enormes cheias de tesouro roubado que estou carregando no meio da noite?
— Não...
— Você me usou.
Sim, usei você, e usaria de novo. Aliás, quem é você para se sentir usada? Você é uma romana. E tudo o que os da sua laia fazem é usar os outros. Estuprar, incendiar, pilhar e matar.
— Não — disse Baltasar. — Flávia, escute...
— Cale a boca!
Bastava que ela gritasse, e os guardas viriam correndo. E quando isso acontecesse, a empolgação que naquele momento fazia o coração de Baltasar palpitar contra suas costelas iria se tornar um problema de verdade — e bem sangrento — em um instante.
Por outro lado, ela poderia muito bem deixá-lo escapar na noite. Ninguém jamais suspeitaria de seu papel no roubo. Sua castidade jamais seria questionada, e pela manhã Baltasar já estaria a meio caminho de qualquer lugar, com a promessa de voltar e “tirar você daqui, Flávia — quando chegar a hora, tirar você deste lugar para que possamos ser felizes juntos”. Uma promessa que ele não tinha a menor intenção de cumprir.
— Flávia — disse ele. — Preste atenção. Pois é... eu estava pegando isto aqui. Pegando do depósito do seu pai. Mas você precisa acreditar em mim: tenho um bom motivo para pegar isto! Seu pai roubou estas coisas do povo de Tel Arad! Gente pobre! Gente honesta! Eu não podia vê-los sofrer e não fazer nada. A verdade é que, sim, eu estava roubando. Roubando do homem que os roubou em primeiro lugar. Roubando tudo isto de volta para seus donos por direito! Você não está sempre reclamando de como seu pai é egoísta e cruel? Bem, Flávia, aqui está a prova!
Estou quase conseguindo convencê-la. Agora é só tornar tudo um pouco pessoal... distrair sua mente do roubo.
— E... e sim... — continuou ele — eu sei que devia ter lhe contado antes. Mas eu não queria envolver você. E se alguma coisa desse errado? E se você ficasse em perigo? Eu jamais iria me perdoar, Flávia. Você é boa demais para isso.
— Eu... eu não sei...
Sabe sim.
— Flávia, eu juro por nosso amor... por minha alma... que estou falando a verdade.
Ela continuou de pé ali por um instante, dividida e confusa. Uma vítima da juventude, da inexperiência e de um desejo profundo — uma necessidade — de acreditar que o que ele dizia era, de fato, verdade.
— Por favor, Flávia, não temos muito tempo...
Eu bem que podia dar-lhe uma pancada na cabeça. Só uma pancadinha, por via das dúvidas. Não o suficiente para machucá-la de verdade, mas forte o bastante para eu conseguir sumir daqui.
Mas Baltasar não achava que isso seria necessário. Seus instintos estavam começando a lhe dizer que ia dar tudo certo... e decidiu confiar neles.
Ela não vai gritar. Ela odeia o pai. Isso, ela odeia o pai, odeia o fato de ele tê-la trazido para este lugar. Além do mais... nós compartilhamos tudo. Nossos segredos mais sinceros. Nosso amor mais profundo. E, sim, é tudo uma grande tolice — mas não para ela. Ela jamais desistiria de mim. Ela me ama. Não... Sou um sujeito com talento para saber das coisas, e sei que ela não vai gritar. Nunca tive tanta certeza na vida.
Ela gritou.