Belchior e José deram água aos camelos e encheram os cantis no córrego do deserto, e Maria se sentou na areia com o menino debaixo de suas roupas. Baltasar ajoelhou-se junto ao córrego um pouco além e, com as mãos unidas, levou água primeiro à boca, depois ao rosto e ao peito, lavando o sangue que continuava a minar de seus pontos.
— Isso é loucura — disse Gaspar, que se ajoelhara ao lado dele. — O exército da Judeia está inteiro atrás de nós, e ainda assim nós vamos dar uma de ama de leite para um bebê. Já poderíamos estar a meio caminho do Egito a essa hora se não os estivéssemos se arrastando conosco. É muito perigoso, Baltasar. Precisamos pensar em nós mesmos.
— Estou pensando em mim mesmo. Estava com sede. Encontramos água. Resolvi parar.
— Você sabe o que estou querendo dizer.
— Sei — disse ele, levando mais um punhado de água até a ferida. — Também sei o que vi em Belém. O que todos nós vimos. Você quer deixá-los para os homens de Herodes?
— Sim, eu vi. E o mesmo vai acontecer conosco se formos capturados. Não escapei da morte certa para jogar minha vida fora por causa de estranhos.
— Também não gosto disso, está bem? Mas não voltei para salvar um bebê para depois deixá-lo apodrecendo no deserto. Assim que atravessarmos a fronteira, nos separamos. Até lá, vamos bancar a ama de leite.
Baltasar se levantou, sacudiu a água das mãos e enxugou-as nas roupas.
— Por que o Fantasma da Antioquia se importa tanto se um bebê vive ou deixa de viver? — perguntou Gaspar.
Era uma pergunta idiota, é claro. A resposta óbvia era: “Porque ainda tenho um pingo de decência”, ou “A verdadeira pergunta é: por que você não se importa?” Mas Baltasar não disse nada disso, porque por mais óbvias que as respostas fossem, não eram verdadeiras.
Vá em frente, diga a ele, Baltasar. Diga a ele por que você se importa tanto. Por que você odeia tanto, mata tanta, procura tanto, como se isso fosse um dia trazê-lo de volta...
— Pergunte a si mesmo — disse Gaspar, tirando Baltasar de seu transe —, você daria sua vida para proteger a deles?
Baltasar olhou para José e Belchior lutando com os camelos. E depois para Maria, sentada no chão, dando de mamar ao bebê sob suas roupas.
— Não se eu puder evitar — disse e se afastou.
Pôncio Pilatos encarava as águas do Mediterrâneo. Apenas algumas horas depois de se ajoelhar na sala do trono do imperador, ele estava de pé na proa do Heptares — um enorme navio de guerra com mais de mil homens —, liderando uma frota de trirremes menores vindas de Roma. Nunca tinha visto a água passar tão depressa ou uma vela se abrir tanto quanto a que estava acima dele. Em geral, as centenas de homens sentados no deque inferior remariam por todo o trajeto. Hoje, porém, tudo o que podiam fazer era se sentar com seus remos no colo, já que um forte vento de cauda os empurrava com mais força do que qualquer mortal jamais poderia ter.
Pilatos não tinha certeza, mas fazia uma boa ideia de qual era a fonte desse estranho e estável vento. O feiticeiro estava a bordo do Heptares com eles, acomodado confortavelmente em seus aposentos particulares lá embaixo. E, embora a porta de sua cabine estivesse fechada, ele podia ser ouvido murmurando sozinho atrás dela. Rezando em uma mistura estranha de latim e outras línguas, repetindo as mesmas frases várias vezes como em um cântico. Pilatos não conseguira discernir muita coisa, mas ao encostar a orelha na porta do sacerdote, ouvira uma palavra repetida entre as outras: ventus.
Vento.
O imperador fizera confidências a Pilatos, em Roma, contando a ele a história secreta dos Césares e do feiticeiro, seus poderes e o papel que tinha desempenhado na criação do império atual, e o que se sabia das origens e do término de sua seita. Ao terminar, Augusto convocou o sacerdote para seu palácio e o apresentou ao jovem oficial.
Pilatos fez o melhor que pôde para esconder seu pavor de encontrar um homem tão estranho e perigoso. Havia sido preparado para a singularidade da aparência do velho, mas nada o preparara para a sensação de ver aqueles penetrantes olhos negros. Sentiu como se eles o atravessassem, como se espreitassem o interior de sua cabeça. Seus pensamentos. Mais incômodo ainda era o fato de que o feiticeiro tinha a exata aparência que Júlio César descrevera em sua carta quarenta anos antes.
Que não tivesse envelhecido um dia em todo esse tempo apenas enervou Pilatos ainda mais.
— Ele não fala — dissera Augusto —, mas vai lhe dizer tudo o que você precisa saber. Ouça-o, Pilatos, e traga-o de volta para mim são e salvo. Estou confiando meu bem mais precioso a você.
E ali estava ele, sozinho na proa do Heptares, comandando dez mil homens e um ser místico. Pilatos sentia-se mais perto a cada quilômetro. Mais perto de seu prêmio, de seu destino. Era disso que se tratava, afinal — o destino se revelando, quilômetro a quilômetro. Não existem acasos nesta vida. Pilatos acreditava que os deuses tinham um plano para todos nós. E, não importava que caminho ele tomasse, acreditava que sua vida iria encontrar a grandeza mais cedo ou mais tarde. Seu nome repercutiria ao longo dos tempos, imortal.
Em geral, se o mar sorrisse para você, um navio levaria uma semana para navegar de Roma até a Judeia. No ritmo em que estavam, Pilatos encontraria sua grandeza em menos de dois dias.
Maria cavalgava atrás de um homem terrível. Sim, ele voltara por causa deles, salvara-os dos homens de Herodes, e ela era grata por isso. Grata o suficiente para arriscar tudo para salvar sua vida em troca. Mas Maria estava ansiosa para chegar ao Egito e se livrar dele para sempre.
O sol felizmente estava descendo no céu, embora a areia ainda irradiasse calor, cozinhando-os da sola dos pés até o topo da cabeça. Pelo menos por enquanto o bebê parecia satisfeito e feliz, piscando os olhos azuis para ela, sonolento. Ela derramou água de seu cantil na mão e a passou pelo couro cabeludo do bebê, para mantê-lo fresco. Ajeitou suas vestes, tentando evitar que o sol batesse no rosto do filho, enquanto sussurrava uma de suas histórias preferidas das Escrituras para conduzi-lo mais rápido ao sono pelo qual seu corpo ansiava.
E um grande clamor chegou a Moisés. “Por que você nos trouxe até aqui?”, perguntaram. “Não havia mais sepulturas no Egito? Você nos trouxe para o deserto para murchar e morrer?” E Moisés respondeu: “Fui ordenado pelo Senhor a trazê-los até aqui, pois vocês eram escravos de um faraó cruel, e é melhor morrer no deserto do que morrer escravo.”
Quando era pequena, Maria sussurrava aquelas histórias para si mesma durante a noite — uma forma de acalmar sua mente inquieta, de se consolar quando estava com medo ou ansiosa. Imaginava as Escrituras como um poço infinito de histórias. Um lugar onde sempre podia se saciar, mesmo aqui no deserto.
Por ser mulher, fora proibida de estudar os pergaminhos em que as histórias foram escritas, mas fora autorizada a se sentar na parte de trás da sinagoga e ouvir os homens lerem em voz alta. Fora transportada por aquelas histórias quando menina: Jonas na barriga da baleia, a loucura de se construir uma torre até o céu, o teste de fé de Noé antes do grande dilúvio. E, embora nunca tenha dito em voz alta, ela se orgulhava de ser capaz de citar essas passagens melhor do que muitos dos homens que se abanavam no calor da sinagoga e cochilavam sob os xales. A seguinte surgira em sua cabeça do nada.
“Não tenham medo”, disse Moisés. “Mantenham-se firmes, e o Senhor estará com vocês. Fiquem aqui, e ele lutará por vocês.”
— O que você está resmungando aí atrás? — perguntou Baltasar.
— Não estou resmungando. Estou recitando uma história para ajudar o bebê a dormir.
— Bem... recite em silêncio.
Maria mordeu o lábio de frustração. Alma miserável! Seu infeliz indiferente e desalmado! Ela ficou em silêncio por alguns instantes, lembrando-se de que cada passo do camelo era um passo mais perto do Egito. Mas na ausência da voz suave da mãe, o bebê começou a se mexer e acordar de novo. Logo iria começar a chorar, e o homem insuportável na frente dela só se tornaria mais insuportável. Tudo bem, então. Se você não me deixa sussurrar, vai ter que falar comigo.
— Você conhece as Escrituras? — perguntou ela.
Baltasar revirou os olhos. Lá vamos nós. Qual o problema dessas pessoas? Por que não podiam simplesmente manter suas ilusões para si mesmos?
— Isso pode ser um choque para você — disse ele —, mas nem todos no mundo são judeus.
— Não... mas mesmo os romanos têm suas histórias sagradas. Certamente o seu povo também tem.
— Velharia sem sentido, escrita por tolos que já estão mortos. Assim como as suas Escrituras.
— Como você pode dizer isso depois de Deus ter falado com você?
— Deus nunca “falou” comigo. Na verdade, adoraria se você tentasse ser mais como ele.
— E o seu sonho? Zacarias disse que você foi escolhido.
— Ele não escolheu nada.
— Como você sa...
— Porque “ele” não existe.
Maria não podia acreditar que um homem dissesse tal absurdo. Uma coisa era ser cruel e insensível. Mas ser blasfemo?
— Mas... isso é ridículo. Quem enviou as pragas para o Egito? Quem criou a terra abaixo de nós? E as estrelas acima de nós? Quem criou o homem?
— Está quente demais para discutir. Principalmente com uma mulher.
— Não estou discutindo. Eu só... nunca conheci um homem que não acreditasse em Deus.
Baltasar se virou e a encarou. Maria se surpreendeu pelo desprezo em seu rosto sulcado.
— Claro que não — disse ele. — Você é uma garotinha idiota de uma aldeiazinha idiota de fanáticos. Aqui é o mundo real.
— Mas uma vida sem Deus é...
— É o quê? O que tem de tão grandioso em seu deus? Me diga o que tem de tão grandioso em um deus que não faz nada enquanto crianças são assassinadas pelo fio de espadas. Espadas empunhadas por seus fiéis seguidores, aliás. Me diga que tipo de deus é este.
Maria não tinha resposta.
— Ou eu estou certo — continuou ele —, e ele não existe, ou você está certa, e ele é o tipo de deus que assiste à morte de crianças. O tipo de deus que fica sentado sem fazer nada enquanto homens como Herodes constroem palácios e as pessoas boas morrem de fome. De um jeito ou de outro, não vale a pena adorá-lo.
Maria ficou em silêncio. Nunca tinha ouvido alguém duvidar do Senhor. Claro que ele existia. Pensar o contrário seria admitir que tudo em que ela acreditava era uma mentira. Pior, significaria que ela estava louca. Mas as palavras de Baltasar eram confusas.
— Todos os homens precisam de algo em que acreditar — disse ela, afinal.
Sem olhar para baixo, Baltasar desembainhou sua espada.
— Bem... você tem a sua arma — disse Maria —, e eu tenho a minha.
Baltasar guardou a espada e voltou-se para o deserto a sua frente.
— Gosto mais da minha — disse ele.