Todos eles haviam sobrevivido a tempestades de areia, todos já haviam sentido o ardor dos grãos finos na pele, o deserto seco soprando em olhos semicerrados. Mas aquilo era bem diferente de tudo que poderiam já ter imaginado.
Aquela tempestade estava viva.
Cada grão de areia tinha sido substituído por um gafanhoto. Seus olhos pretos e sem vida, as pernas finas e a casca dura da cor da areia do deserto. Os insetos voaram até eles como detritos de um tornado, seus corpos formando uma nuvem em torno dos fugitivos, capaz de cegar apenas por sua densidade, de ensurdecer com o bater de milhões de asas. E, embora ao longe parecesse que os gafanhotos estavam voando por conta própria, dentro da nuvem ficava claro que estavam sendo soprados por algo poderoso. Algo com raiva.
O palpite de Baltasar provara-se correto até então. Os gafanhotos não pareciam interessados neles. Pelo menos não diretamente. Não da maneira como se interessavam pelos romanos, sufocando-os com seus corpos, mordendo olhos e pele. Mas, embora não fossem alvo de sua ira, os fugitivos ainda tinham de lidar com os milhões e milhões de insetos voadores passando por eles na direção de Bersebá, atingindo-os feito granizo vivo e deixando marcas em seus braços e rostos à medida que eles tentavam avançar contra a corrente. E isso continuou até que a escuridão dos gafanhotos em torno deles começou a se confundir com a escuridão do céu, e, por fim, a nuvem sumiu.
Quando o sol desapareceu atrás do horizonte, deixando os resquícios de sua cor no céu pálido, os fugitivos pararam para descansar e avaliar o que tinham visto. José enrolou um pano na cabeça e tirou alguns minutos preciosos de sono no chão. Maria, por sua vez, embalou o bebê, alimentando-o sob a roupa.
Sela sentou-se a poucos passos deles, bebendo de um cantil e conferindo os braços e as pernas sob a luz do fim de tarde. Examinando os pequenos hematomas do impacto constante de corpos minúsculos na sua pele e avaliando os pensamentos que vinham se chocando na sua cabeça havia dias.
Aqui estou.
Mais uma vez, Baltasar conseguira virar sua vida de cabeça para baixo. Na primeira vez, ele o fizera indo embora. Agora, ele o fizera voltando.
Ela estava muito bem vivendo infeliz em Bersebá. Muito bem sozinha. Agora que seu sofrimento tinha companhia, estava pior do que nunca: presa no deserto sem nenhum bem no mundo. Presa com dois estranhos, um bebê e uma antiga paixão que ela aprendera a odiar depois de anos de ausência. Mesmo que pudesse voltar para Bersebá, o que havia lá para ela? Sua casa fora queimada. Sua cidade, abandonada. Se fossem pegos, os romanos a matariam tão depressa quanto os outros. Era um deles agora, gostasse ou não. Uma fugitiva. E, embora houvesse um tempo em que talvez ela considerasse isso aventureiro e romântico, agora a ideia era apenas incrivelmente irritante e preocupante.
Sela deu outro gole, estimando suas poucas opções. Iria para o Egito com eles, sim. Ir para o sul fazia sentido, e, além do mais, os números transmitiam segurança — mesmo que não fossem números que você teria escolhido se tivesse a oportunidade. Mas não ficaria lá. Continuaria sozinha. Talvez atravessasse o norte da África até Cartago ou cruzasse o mar até a Grécia.
Você reconstruiu sua vida uma vez antes; é capaz de fazê-lo de novo.
Ela não tinha interesse em segurar vela para um casal judeu. Também não queria gastar seu tempo junto de um homem que um dia fora o amor de sua vida. E, ao que parecia, Baltasar também não tinha nenhum interesse nela. Estava por aí, sozinho, observando...
Um rebanho de íbex pastava a distância. Era um rebanho pequeno, uma dúzia mais ou menos. Não a centena de animais que ele tinha visto nas proximidades de Hebrom enquanto seguiam direto para uma emboscada. Baltasar sentou-se a uma boa distância dos outros e ficou observando os íbex em sua ignorância, ruminando abobalhados. Confortando-se naquilo.
Na simplicidade das pequenas e boas coisas da vida.
Eles passavam suas curtas existências por aí, indo de um canto para o outro, pegando o que precisavam para sobreviver. Sempre buscando o próximo pedaço de grama do qual se manter, fugindo quando havia perigo, sem parar até que fossem caçados ou simplesmente desaparecessem. Esquecidos.
Baltasar era capaz de pensar em um milhão de explicações para o que tinham visto em Bersebá, e nenhuma fazia muito sentido. Assim como podia pensar em um milhão de razões pelas quais um córrego poderia aparecer do nada no meio do deserto ou um motim poderia eclodir bem na hora em que eles precisavam. Mas ele já não podia fugir da incômoda sensação que o vinha perseguindo pelo deserto havia dias:
Tem alguma coisa naquele bebê.
Tinha que ter. Por que mais essa gente toda iria querer matá-lo? Uma criatura recém-nascida minúscula que nem sequer tinha pronunciado uma única palavra ainda. Um ser que ainda tinha os olhos semicerrados e a cabeça disforme do parto. E por que ele sempre parecia tão calmo? Como se soubesse exatamente o que estava acontecendo? Por que o velho em seu sonho tinha lhe mostrado uma imagem do Egito? Por que a própria natureza parecia vir em seu socorro quando eles precisavam? E como?
Baltasar estava cheio de novas perguntas. Novas dúvidas. Questionando suas velhas dúvidas. E esse emaranhado de perguntas e dúvidas o deixava confuso. E ficar confuso o deixava irritado. E ali estava ele, sentado longe dos outros, olhando o céu que escurecia lentamente no deserto. Irritado e sozinho.
Sela já o estava observando havia algum tempo quando uma voz veio se somar à sua tristeza sem ser chamada:
— Por que você não fala com ele?
Ela se virou para a esquerda e se deparou com Maria, caminhando em sua direção. O bebê ainda mamava sob as roupas.
— Desculpe, o quê?
— Por que você não vai lá? — perguntou Maria, sentando-se a seu lado. — Sente-se lá. Fale com ele.
— E por que eu faria isso?
Maria parecia confusa. Não é óbvio?
— Porque... você o ama.
Sela não sabia se estava ouvindo direito. Eu o amo?
— Você viu o jeito como eu o recebi quando ele apareceu na minha porta?
— Vi. E, se você não ligasse a mínima, teria virado as costas. Batido a porta na cara dele. Mas a simples visão dele a deixou com raiva. Violenta. Esses são sentimentos passionais. Você não sente isso se não se importa com alguém.
— Está um pouco tarde para a paixão.
— Se houve amor entre vocês, amor mesmo, quem pode dizer que está...
— Sabe — disse Sela, interrompendo-a —, acho que temos coisas mais urgentes para falar, como o fato de que estamos sozinhos no meio do deserto. Ou que um exército inteiro está tentando nos encontrar e nos matar.
Maria percebeu que tinha ido longe demais.
— Sinto muito — disse.
— Tudo bem.
— Não, você está certa. Não é da minha conta.
— Sério, está tudo bem. Vamos deixar...
— Eu só estava tentando ajudar. Dar um pequeno conselho.
Sela não pôde conter um sorriso.
— O que foi? — perguntou Maria.
Apenas diga “nada”, Sela. Não a insulte... deixe para lá.
— Eu só... Eu só achei engraçado, é só isso.
— Achou o que engraçado?
Deixe para lá, Sela...
— O fato de que estou recebendo conselhos sobre relacionamentos de uma menina de quinze anos. Que admite abertamente que o filho não é do marido.
Um silêncio considerável se seguiu.
— É diferente — disse Maria, afinal. — É filho de Deus.
Sela sorriu novamente.
— Achei que todos nós fôssemos filhos de Deus.
E mais um silêncio considerável se seguiu, além de uma pontinha de arrependimento por parte de Sela. Sabia que tinha magoado a menina.
— Você acha que eu sou uma piada — disse Maria.
Sela revirou os olhos. Lá vamos nós. Esse era exatamente o tipo de conversa que ela não estava com vontade de ter. Não agora. Já não eram mais duas meninas conversando sobre meninos. Apenas ignore.
— Não acho que você seja uma piada. Eu só... — Como explicar?
— Você só não acredita em mim — disse Maria.
Olhe para esse rosto... esse rosto sério... uma menina de quinze anos de idade que acha que sabe tudo.
— Não — disse Sela. — Acho que não.
Maria virou-se e fitou a silhueta cada vez mais escurecida de seu marido, que dormia. Seu marido exausto, machucado por protegê-la durante a tempestade. Pobre José, pensou ela. Pobre e nobre José.
— Entendo — disse Maria. — Às vezes eu me pergunto por quê, de todas as meninas no mundo todo, por que Ele me escolheu? E eu não devo amar meu bebê como uma mãe deve amar seu filho? Não devo acalentá-lo quando ele chora? Confortá-lo quando está com medo? Repreendê-lo quando se comporta mal? Ou será que eu deveria venerá-lo, mesmo agora?
— Dá para entender como isso pode ser complicado.
— Não pedi esse fardo. Não implorei aos céus ou a Deus por honra alguma. Mas esse é o caminho que Deus escolheu para mim, e eu tenho que seguir em frente. — Ela virou-se para Sela. — Posso caminhar sozinha — disse Maria —, ou posso ir de mãos dadas com os que amo. De qualquer maneira, o caminho é o mesmo.
Sela olhou para Maria com atenção e sorriu. Talvez essa menina de quinze anos soubesse mais do que deixava transparecer. Maria virou-se e olhou para o deserto, para a silhueta indefinida de seu protetor de ombros largos.
— Ele também não acredita em mim — disse, fitando Baltasar.
— Sim, bem, não o leve a mal. Ele não acredita em muita coisa.
— Ele é um homem estranho. Luta para proteger meu filho, mas nem sequer olha para ele, nem sequer o segura. E eu me pergunto como um homem pode sentir tanta raiva... ser tão cruel, tão violento. E como esse mesmo homem pode arriscar a vida por uma criança que mal conhece.
Agora foi a vez de Sela ficar em silêncio por um tempo, pensando. Talvez fosse por ter insultado Maria, ou pela necessidade de mostrar a uma menina que achava que sabia tudo o quão pouco ela realmente sabia. Talvez fosse para organizar os pensamentos em sua própria cabeça, para se lembrar de como tudo tinha começado. Fosse qual fosse o motivo, Sela decidiu ali mesmo contar a Maria sobre o dia em que Baltasar morreu.
— Estávamos ainda em Antioquia — disse ela.