Herodes nunca esperara viver para ver tal coisa. Uma legião romana destruída. Lambendo as feridas no deserto da Judeia. E não pelas mãos dos gauleses ou dos visigodos, mas por causa de insetos. Era impossível, claro. No entanto, se você acreditasse nos boatos, era exatamente o que tinha acontecido.
E por que não acreditar neles? Quem iria mentir sobre uma coisa dessas? Quem admitiria ser derrotado por um enxame de insetos?
Herodes espiou pelas cortinas de sua liteira, que seus escravos levavam de um lado para o outro nos ombros. Havia viajado um dia inteiro e metade de uma noite, tentando alcançar os romanos que soltara como cães em seu próprio reino. Os romanos, que acabaram por se provar tão eficazes quanto suas próprias tropas. Ele percebeu que havia sido um erro envolver Roma. Sim, havia o benefício de lisonjear Augusto César, de dar a Roma o crédito pela vitória, mas Herodes não tinha considerado a possibilidade de eles falharem. Se isso acontecesse, a culpa recairia em seus ombros.
As fogueiras do acampamento queimavam dos dois lados, as chamas filtradas pelas cortinas da liteira. Acampamentos romanos eram em geral cheios de energia, música e conversas, repletos da camaradagem de soldados descansados e embriagados com vinho, mas esse campo parecia um cemitério. Os homens estavam sentados em silêncio ao redor das chamas, assustados. Claramente começavam a perceber o que Herodes já tinha entendido: Estamos lidando com mais do que um ladrão e um bebê aqui. Estavam chegando à conclusão de que o Deus dos hebreus tinha tomado partido. Estava zombando deles. E, mesmo que fosse só o Deus dos hebreus, ser inimigo de qualquer divindade era, no mínimo, uma desvantagem tática.
Herodes, no entanto, estava habituado a esse sentimento. O Deus dos hebreus vinha zombando dele havia anos. Humilhando-o com cada gota de sangue que escorria de suas feridas abertas. Com a dolorosa secreção amarelada que escoava de partes que ele preferia que permanecessem saudáveis. E essa humilhação estava ficando pior com o tempo, conforme seu corpo enfraquecia. Herodes sabia disso, embora preferisse afastar esses pensamentos. Você já viveu todo esse tempo, e isso ainda não o matou. Nada o matará. Às vezes ele se perguntava se esse Deus era de fato capaz.
Pode um homem ser maior do que um deus?
A liteira de Herodes foi colocada no chão com cuidado e seus artesãos abriram as cortinas. Eles ajudaram seu rei frágil a ficar de pé, ajeitaram com gentileza as roupas amarrotadas da viagem, e então o levaram para uma tenda comum no centro do acampamento, cuja entrada era guardada por dois soldados romanos de armadura completa e ladeada por tochas acesas em postes altos. E, embora Herodes não pudesse vê-los, uma dupla de homens feridos em especial fazia um esforço tremendo para não chamar atenção enquanto ele se aproximava.
Gaspar e Belchior deram uma olhada ao redor da barraca em que Pilatos entrara, os dois cuidando dos minúsculos machucados causados pelos gafanhotos.
A tenda de Pilatos era bem simples. Mais espartana do que romana, na opinião de Herodes: algumas poucas cadeiras para receber oficiais, uma cama que parecia nunca ter sido usada e um capacete polido e um peitoral arrumados em cima de uma penteadeira, ao lado de uma espada. As lamparinas a óleo penduradas lançavam sombras dançantes pelo interior da barraca, mas não havia nenhum dos confortos habituais que Herodes exigia durante suas viagens: nenhum tapete ou almofada, nem sofás para se deitar. Mais importante, nenhuma jovem com quem se deitar.
Isso não era jeito de se ir para a guerra.
Pilatos estava de pé em suas vestes formais roxas, as costuras adornadas com padrões de folhagem cerzidos com fios de ouro. Ele saudou o rei fantoche da Judeia com uma reverência exagerada, tomando cuidado para não fixar os olhos nele por muito tempo. Tinha ouvido relatos a respeito de sua aparência doentia, mas, quando realmente o viu — com a carne apodrecendo e os dentes escurecidos, os olhos amarelados e as feridas —, Pilatos ficou discretamente chocado. Rompendo com o protocolo, ele decidiu não beijar a mão estendida de Herodes e, em vez disso, abaixou-se e a tocou com a testa: uma alternativa raramente utilizada, mas aceitável.
— Vim aqui para ajudar vocês — disse Herodes.
— É uma honra — disse Pilatos, erguendo-se. — E posso perguntar como Vossa Alteza veio nos ajudar?
— Na única coisa para a qual você foi trazido até aqui. Capturar um ladrãozinho e uma criança.
— Se me permite — disse Pilatos —, não há nada de “inho” nele.
Herodes abriu um sorriso que mostrou um pouco dos dentes escurecidos.
— Não — disse ele. — Suponho que não.
Pilatos fez sinal para que o rei se sentasse, e ele o fez. A cadeira de madeira rangeu com seu peso, e, por uma fração de segundo, ele pensou que iria se quebrar e jogá-lo no chão. Seus braços se abriram por impulso, e ele sentiu a onda de adrenalina que acompanha uma quase queda, seguida imediatamente pelo alívio e a esperança fervorosa de que Pilatos não tivesse percebido essa breve demonstração de fraqueza.
— Você não acha estranho, Vossa Alteza? — perguntou Pilatos, que tinha visto o pânico momentâneo do rei, mas não demonstrou.
— Acho o que estranho?
— Bem? O “Fantasma da Antioquia”, ou Baltasar, ou o que você preferir. Ele é conhecido por ser um assassino sem coração, como você diz, um homem que não dá valor algum à vida, que prefere trabalhar sozinho.
— E?
— E... você não acha estranho que um homem desses esteja com um casal de judeus e um bebê?
— Homens como ele só pensam em si mesmos. Só está viajando com eles porque existe alguma vantagem nisso, garanto. Mas não estou preocupado com o Fantasma da Antioquia, comandante. Estou preocupado com o fato de que foram incapazes de pegá-lo.
— Com todo o respeito, Vossa Alteza, estamos lutado com forças além de nosso controle.
— Com todo o respeito, seus homens foram vencidos por uma criatura que eu poderia esmagar entre meus dedos.
Pilatos era político demais para dizer as palavras que tinha na ponta da língua. Profissional demais para dar a Herodes o menor indício de uma expressão reveladora. Herodes ficou de pé, determinado a fazer valer seu argumento, enquanto encarava o jovem oficial do alto.
— Em trinta anos de reinado sobre os judeus, passei a acreditar em uma verdade muito simples — disse Herodes. — Que o tempo deles nesta terra está quase acabando. Tudo o que eles têm são histórias antigas. Velhas tradições. Contos sobre reis e líderes antigos, uma magia velha e um messias que fica só na promessa de chegar, mas nunca vem. Tudo em torno deles é velho. Está tudo no passado. Estou interessado em novas tradições. Novos impérios. Eu construo coisas novas, e eles reclamam. Estabeleço novas leis, e eles reclamam. Mas não dou ouvidos, porque eu sou o futuro. E eu certamente não os temo, ou temo o deus deles. Porque o tempo de Moisés e Davi virou poeira. O mundo pertence a César agora. Aos homens. E estou aqui para me certificar de que vai continuar assim.
— Mas, no entanto, Vossa Alteza, meus homens estão com medo. Estão com medo da ira desse poder. Desse deus.
— Se eu fosse eles, teria mais medo da ira de Augusto.
Visão. Essa era a qualidade mais importante de um líder. Era por isso que Herodes tinha reinado por tanto tempo e com tanto sucesso. Ele já havia trazido aquele jovem oficial até ali. O “Pilatos”. Ele era um líder, com certeza, agressivo e completo, cauteloso o suficiente para evitar beijar sua mão doente, mas inteligente o bastante para encontrar uma alternativa adequada em uma fração de segundo. Por outro lado, faltava-lhe imaginação. Faltava-lhe visão. E isso o impediria de alcançar o sucesso que sua esperteza lhe fizera aspirar. Como sempre, caberia a Herodes garantir que as coisas seguissem tranquilamente dali para a frente.
— Eles estão indo para o sul, não é? — perguntou Herodes.
— Sim. Para o Egito.
— E o caminho mais rápido até o Egito é pelo vale de Kadesh... — Visão, rapaz. Eu vou lhe mostrar o que isso significa. — Soube que você tem um xamã viajando com a sua comitiva — disse Herodes. — Uma espécie de... vidente.
— O feiticeiro.
— Eu gostaria muito de falar com ele.