Uma jovem deixou a sala do trono de Herodes aos prantos e encharcada de sangue. Parte dele pertencia a ela. Mas não a maior parte. A menina abriu caminho por entre os soldados romanos e da Judeia que lotavam os corredores.
— O rei! — gritou ela. — O rei ficou louco!
Os soldados haviam chegado momentos antes, atraídos por sons de luta. Imaginavam encontrar o Fantasma da Antioquia duelando ao lado de seus companheiros, tentando chegar até Herodes. Mas ficaram chocados ao ver que era o próprio Herodes quem estava empunhando uma espada, e usando-a contra seus cortesãos, conselheiros e sacerdotes. Tudo o que os soldados podiam fazer era ficar ali e observar enquanto ele os cortava em pedaços, gritando o tempo todo. Nenhum deles ousava desafiar a vontade de um rei, louco ou não.
Era um pesadelo. Uma cena terrível que fazia até mesmo os soldados mais durões desviarem o olhar para não passarem mal. A sala do trono estava cheia de vítimas decapitadas e membros amputados. Pedaços de cerâmica quebrada e estilhaços de móveis. E no meio de tudo isso, o próprio Herodes, ajoelhado sobre um dos corpos, uma espada ao seu lado... o rosto quase completamente obscurecido pelo sangue.
Minutos antes de essa loucura começar, Herodes estava impaciente, sentado em seu trono, aguardando notícias da fuga. O feiticeiro meditava em silêncio ao lado dele. Procurando pelos fugitivos, era o que Herodes esperava. Caçando-os com sua mente.
Instantes após os primeiros gritos ecoarem pelo palácio, Pôncio Pilatos apareceu com seus tenentes, pronto para dar seu relato ao rei. Quase uma hora se passaria até os romanos perceberem que um dos menores navios da frota estava faltando.
— Vossa Alteza, parece que o Fantasma e os outros fugitivos conseguiram escapar do palácio — disse Pilatos.
Herodes involuntariamente fechou os punhos. O Deus dos hebreus...
— No momento — continuou Pilatos —, não temos nenhuma pista de para onde eles foram, mas alguns de meus homens estão vasculhando o terreno para o caso de eles terem se escondido nas proximidades.
— ALGUNS de seus homens? Mande TODOS eles, seu idiota! Mande todos para o deserto! Para as montanhas! Espalhe-os por toda a costa!
Pilatos hesitou e trocou um olhar com alguns oficiais.
— Vossa Alteza — disse ele —, devido a morte do almirante, eu... decidi levar meus homens de volta a Roma.
Herodes levou um tempo para registrar a informação.
— O que você disse?
— O imperador já sacrificou homens demais com esta loucura. Não vou arriscar perder mais ninguém ou colocar o feiticeiro dele em perigo. Não até que eu seja capaz de lhe oferecer um relatório completo.
Herodes levantou-se do trono, sua raiva chegando ao máximo.
— O feiticeiro “dele”? — O rei desceu os degraus lentamente, um sorriso se abrindo em seus lábios. — Pois pode dizer a Augusto que o feiticeiro dele não vai voltar para Roma.
Pilatos o encarou. O que está acontecendo?
— Pode dizer a ele — continuou Herodes — que o poder do feiticeiro pertence a Judeia agora. Como você pode perceber, ele já o utilizou para restaurar minha saúde. Ou você acha que eu me curei milagrosamente sozinho?
Agora era o feiticeiro que se levantava, saindo de seu transe e assimilando o que acabara de se tornar uma situação muito delicada.
Pilatos estava confuso. Tanto quanto os cortesãos, os conselheiros e os sacerdotes de Herodes. Todos eles trocaram olhares entre si pelas costas do rei.
Isso é algum tipo de brincadeira?
— Diga a Augusto — continuou Herodes — que eu não sou mais o fantoche dele.
— Você está louco? — perguntou Pilatos. — Augusto é o dono do mundo! Quem você acha que é além de um doente e ridículo rei?
— INSOLÊNCIA! Eu deveria mandar executar você agora mesmo!
A mera sugestão fez os tenentes de Pilatos desembainharem suas espadas, e os guardas de Herodes fizeram o mesmo. Pilatos ergueu a mão — acalmem-se...
— Você tem alguma ideia do que ele vai fazer com você? — perguntou Pilatos.
— Pois que tente o que quiser! — disse Herodes, com uma risada. — O feiticeiro jurou lealdade a mim! Seus poderes são os meus poderes!
Pilatos olhou para trás de Herodes e cravou seus olhos nos do feiticeiro. Queria saber se aquilo era verdade.
O sacerdote, por sua vez, sabia que precisava tomar uma decisão.
Sim, Augusto não gostava dele. Sim, ele queria agir por conta própria, usar seus poderes para reconstruir uma fé perdida. Mas também era o último de sua linhagem, e isso tornava a autopreservação algo ainda mais importante. Herodes parecia ser o catalisador perfeito para sua transformação — um homem poderoso que podia ser controlado, usado e depois jogado fora. Mas obviamente ele estava saindo dos eixos. Declarando guerra contra o império em um piscar de olhos. Aquele não era o tipo de pessoa que você quer ter ao seu lado. Não era necessário saber ler o futuro nas folhas de chá para ver como aquilo acabaria. Preferia viver para lutar outro dia.
O feiticeiro assentiu, apontando algo para Pilatos. Assim que viu o que era, o oficial entendeu.
— Vá em frente — disse ele a Herodes, indicando o espelho de corpo inteiro. — Olhe para si mesmo. Olhe o que o feiticeiro fez com você.
Herodes riu e virou-se para ver se o feiticeiro estava se divertindo tanto quanto ele. Mas em vez do sorriso discreto que esperava encontrar, o que ele viu foi um rosto sério, e uma onda de pavor começou a se insinuar em seu estômago.
— Muito bem — disse, voltando-se para Pilatos.
E assim Herodes aproximou-se do espelho, pronto para admirar as bochechas cheias e a pele lisa com que fora presenteado durante esses dois dias maravilhosos. Mas, desta vez, quando se olhou...
— Não... — sussurrou.
A ilusão se fora. A palidez doentia e os olhos amarelados haviam retornado. As bochechas encovadas e as lesões secretando pus fétido.
— NÃO! Não pode ser!
— Você não é um rei — disse Pilatos, fitando-o por sobre o ombro. — Você não é nem mesmo um homem. Você não é nada.
Em retrospecto, os que sobreviveram concordariam que aquele foi o momento em que a mente de Herodes o abandonara para sempre. O momento em que ele percebera que tudo aquilo em que acreditava era uma mentira. Que sua visão tinha afinal lhe pregado uma peça. Ele já enlouquecera antes, mas no fim as nuvens de loucura sempre se dissipavam. Desta vez, no entanto, não haveria volta.
Herodes gritou e tomou uma espada da mão de um de seus guardas. Os homens de Pilatos puxaram seu comandante para trás, convencidos de que Herodes pretendia atacá-lo. Mas Herodes não estava interessado em Pilatos. Ele atravessou a sala do trono, desafiando a fraqueza de seu corpo, empunhando a espada no ar e gritando sem parar:
— TRAIDOR!
Ele subiu correndo os degraus até o trono e, em um único golpe, decepou a cabeça do feiticeiro. Ela caiu no chão de pedra, seguida pelo corpo. O sangue jorrou do pescoço como se fosse uma cachoeira — e, com ele, foi-se embora o último homem a ter domínio sobre as antigas artes das trevas.
Os gritos preencheram a sala, Herodes continuou brandindo a espada na direção de qualquer pessoa que cruzasse seu caminho, clamando:
— MORRAM! Morram todos!
Pilatos fitou o feiticeiro sem cabeça por mais um momento, depois se virou e saiu, seguido por seus tenentes. Não havia mais nada a fazer ali. Se tivesse autoridade para tal, teria matado Herodes ele mesmo. A única coisa a fazer era apressar sua volta a Roma e comunicar ao imperador o que tinha acontecido. Implorar o seu perdão e deixar que a ira de um deus vivo na terra caísse sobre o rei fantoche da Judeia.
— MORRAM! — gritou Herodes enquanto brandia a espada para cortesãos e conselheiros indistintamente. — Morram! — gritou enquanto decepava as cabeças e os membros de sacerdotes e sacerdotisas que não se atreviam a revidar. — Morram todos!
E assim continuou, até que o último de seus súditos tivesse morrido ou fugido, e Herodes desabou em uma pilha perto de onde jazia o corpo sem cabeça do feiticeiro, seu peito subindo e descendo depressa, os pulmões cansados, os músculos enfraquecidos queimando pelo esforço.
O Deus dos hebreus o tinha feito de bobo. Herodes voltou os olhos para o teto e gritou o mais alto que pôde com sua voz grave:
— Esta é a minha recompensa por defender os seus judeus? Por construir grandes cidades para eles? É assim que você me agradece?
O feiticeiro morrera. E, com ele, a promessa de vida eterna, a chance de construir um império. E a esperança. Pior de tudo, a esperança — o vinho dos fracos.
Estava tudo acabado. Em um intervalo de poucos minutos, estava tudo acabado.
Ali estava Herodes, o Grande, de joelhos no chão de pedra ao lado do corpo decapitado do feiticeiro... juntando as mãos em concha para reter o sangue que ainda escorria de seu pescoço... bebendo-o aos poucos.
Talvez... talvez se bebesse bastante... talvez pudesse ficar sadio de novo.
Talvez pudesse viver para sempre.
José estava na proa de uma trirreme romana de trinta pés, segurando o bebê adormecido, enquanto Maria vasculhava a parca despensa do navio em busca de comida. Ele olhou para a pequena criatura dormindo pacificamente em seus braços — inteiro, amado, em segurança. Menos de duas semanas de vida e já sobrevivera a mais perigos do que grande parte dos homens jamais conheceria em suas vidas.
A tempestade havia se dissipado, deixando para trás um mar liso e calmo e um céu de nuvens avermelhadas esparsas e reluzentes. O sol havia mergulhado nas águas a oeste e ia deslizando lentamente para o reino de Netuno, onde passaria a noite. Era um espetáculo fascinante, além de pacífico e insuportavelmente triste. Pois, enquanto observava o menino dormir, José sabia que um dia teria que deixá-lo.
E será mais cedo do que seu coração será capaz de suportar, José.
Ele se levantaria e partiria para o mundo, porque é ao mundo que ele pertence. Seu lindo menino adormecido.
Tudo bem se eu chamá-lo de meu filho, não é? Com certeza Deus irá me perdoar por isso, pois não posso suportar pensar nele como outra coisa.
José esperava ser capaz de ensinar a ele algo sobre o que é ser um homem. Ensinar-lhe a Torá e como pegar um pedaço de madeira e, usando as mãos e a cabeça, transformá-lo em algo útil. Mas teriam tempo para tudo isso. Agora não havia nada exceto a paz abençoada. O mar não se abrira para eles como fizera para seus ancestrais, mas os libertara do mesmo jeito.
Ele não era o único a admirar o céu noturno. Baltasar estava com uma das mãos no timão, a outra agarrada à de Sela. Ela descansava a cabeça de leve em seu ombro, ambos reverenciando em silêncio o poder e a beleza da natureza. Reverenciando o momento e os milagres que tinham sido necessários para que chegassem até ali.
A mente de Baltasar começara a repassar tudo o que tinha acontecido nos últimos dias. Revivendo as imagens cruas de sangue e traição, de cadáveres revividos e reis moribundos. Mas ele parou assim que se lembrou de um momento em particular, algo que o velho tinha dito em seu sonho quando ele perguntou por quanto tempo teria que ficar com o menino:
— Até o momento em que o deixar partir.
Engraçado — na hora, Baltasar achou que o velho estava falando do bebê de José e Maria. Mas agora ele sabia... estava falando de Abdi. E, quando o peso desse entendimento o acertou em cheio, as lágrimas voltaram aos olhos de Baltasar, fazendo com que Sela perguntasse:
— Baltasar? Você está bem?
Ele se virou para ela e sorriu, admirando sua beleza, que nem a sujeira e o sangue coagulado eram capazes de diminuir, e respondeu com sinceridade:
— Estou.
Diante deles, não havia nada além do mar liso e calmo, refletindo o paraíso inteiro em sua superfície cintilante. Baltasar não sabia quando iria ver terra novamente ou se aquela terra seria o Egito, a Judeia ou mesmo a própria Roma. Nada mais poderia surpreendê-lo, coisa alguma poderia desencorajar a sua fé de que não importava as tempestades que encontrariam pela frente, Deus, ou do que quer que você quisesse chamá-lo, estaria lá por eles.