CAPÍTULO
Vinte e Quatro
CINDER SE AGACHOU APOIADA NO MURO QUE CONTORNAVA O palácio, o frio da pedra se infiltrando pela sua camiseta. A multidão tinha ido embora, e a única recordação que restara deles eram os cartazes pisoteados. Mesmo os guardas haviam abandonado o jardim, embora o intrincado portão de ferro permanecesse trancado. Dois qilins de pedra estavam empoleirados acima da cabeça de Cinder, ocasionalmente emanando uma vibração magnética que zumbia nos seus ouvidos.
Sua mão finalmente havia parado de tremer. Os alertas em seu visor haviam desaparecido. Mas a confusão permaneceu, persistente como nunca.
Ela era lunar. Tudo bem.
Era um tipo raro de lunar, uma cascuda, que não podia manipular os pensamentos e emoções dos outros, e era, ela mesma, imune à ludibriação lunar.
Tudo bem.
Mas então por que o encanto de Levana a afetara como aos demais?
Ou o dr. Erland estava errado, ou estava mentindo. Talvez ela não fosse lunar, e ele estivesse enganado. Talvez a sua imunidade se devesse a alguma outra coisa.
Ela liberou um gemido frustrado. Nunca a curiosidade de saber seu passado, sua história, fora tão intensa. Precisava saber a verdade.
O zumbido dos portões nos trilhos disfarçados sob o piso a sobressaltou. Cinder olhou para cima e viu um androide branco imaculado vindo em sua direção pelo pavimento.
– Linh Cinder? – Ele ergueu um escâner.
Piscando, ela ficou de pé, escorando-se na parede para se apoiar.
– Sim? – respondeu, estendendo o pulso.
O escâner bipou e, sem ter parado completamente em momento algum, o androide virou o torso em 180 graus e começou a voltar em estrépito para o palácio.
– Siga-me.
– Espere, o quê? – Seu olhar moveu-se com temor para cima, em direção à varanda onde a rainha lunar estivera.
– Vossa Alteza Imperial solicitou vê-la.
Verificando suas luvas, Cinder lançou um olhar na direção da estrada que a levaria embora do palácio, de volta para a segurança de ser uma garota invisível em uma cidade muito grande. Soltando lentamente o ar, ela se virou e seguiu o androide.
A entrada do palácio era intrincada, com portas em dois andares douradas e quase cegantes com o sol que refletia seu brilho quando estavam abertas. O saguão adiante estava agradavelmente fresco e exibia muitas esculturas grandes de jade, flores exóticas, as vozes e passos de dezenas de diplomatas apressados e empregados do governo, combinadas ao calmante murmúrio da água – mas Cinder mal notou. Estava tomada pelo pânico com a possibilidade de se descobrir cara a cara com a rainha Levana, até que em vez disso ficou cara a cara com o príncipe Kai. Ele estava esperando apoiado em um pilar entalhado, com os braços cruzados.
Ele se endireitou quando a viu e quase sorriu, mas não um de seus brilhantes e despreocupados sorrisos. Na verdade, ele parecia exausto.
Cinder fez uma reverência com a cabeça.
– Vossa Alteza.
– Linh-mèi. Nainsi me disse que você estava esperando.
– Eles não estavam deixando as pessoas entrarem no palácio. Eu só queria me certificar de que ela tinha chegado bem até você. – Ela juntou as mãos atrás de si. – Espero que as questões de segurança nacional sejam resolvidas logo. – Cinder tentou manter a suavidade na voz, mas a expressão de Kai pareceu hesitante.
Ele deixou o olhar cair sobre o androide.
– Isso é tudo – disse ele, e esperou até que o androide desaparecesse em uma alcova na entrada antes de continuar. – Peço desculpas por tomar seu tempo, mas queria agradecer-lhe pessoalmente por consertar Nainsi.
Ela encolheu os ombros.
– Foi uma honra. Espero… espero que você encontre o que está procurando.
Kai semicerrou os olhos, desconfiado, e ele deu uma olhada por sobre o ombro enquanto duas mulheres bem-vestidas passavam, uma falando animadamente, a outra assentindo, nenhuma das duas prestando qualquer atenção em Kai ou em Cinder. Quando elas passaram, Kai soltou o ar e se virou de novo para ela.
– Aconteceu uma coisa. Preciso ir falar com o dr. Erland.
Cinder assentiu em compreensão, talvez de maneira muito forçada.
– É claro – respondeu, recuando na direção das portas maciças. – Agora que Nainsi está de volta, eu vou só…
– Você gostaria de caminhar comigo?
Ela parou no meio de um passo.
– Desculpe?
– Você pode me dizer o que descobriu. O que havia de errado com ela.
Ela torceu as mãos, incerta se o formigamento em sua pele era deleite ou algo próximo a terror. A consciência da presença da rainha a acompanhava, era inevitável. Ainda assim, ela se viu lutando contra um sorrisinho estúpido.
– Certamente. É claro.
Kai pareceu aliviado ao inclinar a cabeça na direção de um corredor amplo.
– Então… o que havia de errado com ela? – perguntou ele enquanto caminhavam pelo saguão majestoso.
– Um chip – respondeu Cinder. – Um chip de comunicação direta interrompeu a conexão de força, acho. Bastou removê-lo para que ela despertasse.
– Chip de comunicação direta?
Cinder examinou as pessoas passando apressadas ao redor deles, e nenhuma parecia interessada no príncipe real. Porém, ela baixou a voz ao responder.
– Sim, o D-COMM. Você não o instalou?
Ele sacudiu a cabeça.
– Não. Nós usamos D-COMMs para conferências internacionais, mas, além disso, não acho que já tenha visto outro. Por que alguém botaria um em um androide?
Cinder franziu os lábios, pensando nas coisas que Nainsi dissera ao despertar. Possivelmente ela relatava a mesma informação quando ficou inconsciente, talvez pelo canal de comunicação direta.
Mas quem recebera as informações?
– Cinder?
Ela puxou a bainha da luva. Queria contar a ele que sabia sobre sua pesquisa, que provavelmente alguém mais sabia, mas não podia dizer nada ali nos corredores cheios de gente do palácio.
– Alguém deve ter tido acesso a ela, pouco antes de ela apresentar o defeito. Alguém que queria instalar o chip.
– Por que alguém iria querer instalar um chip defeituoso nela, para começar?
– Não acho que ele estivesse totalmente defeituoso. Parece que alguma informação foi transmitida pelo canal antes que Nainsi entrasse em colapso.
– O quê… – hesitou Kai. Cinder notou o nervosismo em seus olhos, sua postura tensa. Ele esticou a cabeça para mais perto dela, mal diminuindo o passo. – Que tipo de informação pode ser enviada por comunicação direta?
– Qualquer coisa que possa ser enviada pela rede.
– Mas se alguém a estava acessando remotamente, dessa maneira, não poderia… quero dizer, ela teria que autorizar o acesso a qualquer informação que eles tenham recebido, certo?
Cinder abriu a boca, parou, fechou-a novamente.
– Não sei. Não estou certa sobre como a comunicação direta funciona em um androide, especialmente um que não tenha sido equipado para isso. Mas há uma chance de que, quem quer que tenha instalado o chip nela, estivesse tentando conseguir informações. Possivelmente… informações específicas.
O olhar de Kai estava distante quando cruzaram uma ponte envidraçada para a ala de pesquisa.
– Então como eu localizo quem instalou o chip nela, e o que eles conseguiram acessar?
Cinder engoliu em seco.
– Tentei iniciar a ligação, mas parece ter sido desabilitada. Continuarei tentando, mas agora não tenho como saber quem estava no outro lado. Nem o que descobriu…
Percebendo o tom na voz dela, Kai parou de andar e se virou para olhá-la, os olhos queimando.
Cinder baixou a voz, falando de uma vez só.
– Eu sei o que você esteve pesquisando. Ouvi algumas das informações que Nainsi descobriu.
– Eu nem mesmo sei o que ela descobriu ainda.
Ela assentiu.
– São… interessantes.
O olhar de Kai se iluminou e ele se aproximou mais dela, inclinando o pescoço.
– Ela está viva, não está? Nainsi descobriu onde posso encontrá-la?
Cinder sacudiu a cabeça, o medo se agarrando a ela por saber que Levana estava em algum lugar dentro daquelas mesmas paredes.
– Não podemos falar sobre isso aqui. E Nainsi saberá mais do que eu, de qualquer jeito.
Kai franziu o cenho e se afastou, mas ela podia ver que os seus pensamentos ainda estavam confusos enquanto se encaminhava para o elevador e dava instruções ao androide que o operava.
– Então – disse ele, cruzando os braços enquanto esperavam. – Você está me dizendo que Nainsi tem informações importantes, mas algum desconhecido talvez tenha essas informações também.
– Receio que sim – disse Cinder. – Também, o próprio chip era incomum. Não era de silicone nem de carbono. Nunca vi nenhum chip como aquele antes.
Kai a encarou, as sobrancelhas erguidas.
– Como assim?
Cinder ergueu os dedos como se estivesse segurando o chip entre eles, visualizando-o.
– No tamanho e na forma, era como qualquer outro chip normal. Mas era brilhante. Como… uma pequena pedra preciosa. Como um brilho perolado.
A cor se esvaiu do rosto de Kai. Um segundo depois, ele fechou os olhos com uma careta.
– É lunar.
– O quê? Você tem certeza?
– As naves deles são feitas do mesmo material. Não sei bem o que é, mas… – Ele praguejou, apertando o polegar na têmpora. – Deve ter sido Sybil ou o guarda dela. Eles chegaram dias antes de Nainsi dar defeito.
– Sybil?
– A taumaturga de Levana. A subordinada que faz todo o trabalho pesado para ela.
Cinder sentiu como se um grampo sufocasse seus pulmões. Se a informação tinha chegado a Sybil, era quase certo que a rainha já soubesse de tudo.
– Elevador B para Vossa Alteza Imperial – disse o androide enquanto as portas do segundo elevador se abriam. Cinder seguiu Kai para dentro dele, incapaz de resistir a olhar para cima, para a câmera no teto. Se lunares tinham conseguido se infiltrar em um androide real, podiam estar em qualquer outra coisa no palácio.
Ela prendeu uma mecha perdida do cabelo atrás da orelha, sua paranoia forçando-a a agir naturalmente quando as portas se fecharam.
– Deduzo disso tudo que as coisas não estão indo muito bem com a rainha?
Kai fez uma cara feia, como se aquele fosse o assunto mais doloroso do mundo, e se deixou apoiar na parede. O coração de Cinder acelerou, observando enquanto seu comportamento de realeza o abandonava. Ela deixou o olhar cair nas pontas das botas.
– Não acho que seja possível odiar tanto alguém como a odeio. Ela é diabólica.
Cinder vacilou.
– Você acha que é seguro… Quer dizer, se ela pôs esse chip no seu androide…
Compreensão surgiu no rosto de Kai. Ele olhou para cima, para a câmera, e então deu de ombros.
– Eu não me importo. Ela sabe que a odeio. Acredite, ela não está de fato tentando mudar isso.
Cinder umedeceu os lábios.
– Eu vi o que ela fez com os manifestantes.
Kai assentiu.
– Eu não deveria ter deixado que ela aparecesse para eles. Quando virem nos netscreens a rapidez com que ela os controlou, a cidade ficará caótica. – Ele cruzou os braços, erguendo os ombros até as orelhas. – Além disso, agora ela está convencida de que estamos intencionalmente abrigando fugitivos lunares.
O coração dela deu um pulo.
– Sério?
– Eu sei, é absurdo. A última coisa que quero é mais lunares famintos por poder circulando livremente pelo meu país. Por que eu…? Argh. É tão frustrante.
Cinder esfregou os braços, subitamente nervosa. Ela era o motivo pelo qual Levana acreditava que Kai estivesse abrigando lunares. Não pensara que ter sido notada pela rainha poria Kai em risco também.
Quando Kai ficou em silêncio, ela arriscou olhar para ele. Ele estava observando atentamente as mãos dela. Cinder as trouxe para junto do peito, checando as luvas, mas elas estavam no lugar certo.
– Você as tira em algum momento? – perguntou ele.
– Não.
Kai abaixou a cabeça, olhando-a como se conseguisse enxergar através da placa de metal na cabeça dela. A intensidade do seu olhar não enfraqueceu.
– Acho que você deveria ir ao baile comigo.
Ela apertou os dedos. A expressão dele era muito genuína, muito segura. Os nervos dela formigaram.
– Pelas estrelas – murmurou ela. – Você já não me perguntou isso?
– Tenho esperança de receber uma resposta mais favorável dessa vez. E parece que fico mais desesperado a cada minuto.
– Que encantador.
Os lábios de Kai se contraíram.
– Por favor!
– Por quê?
– Por que não?
– Quero dizer, por que eu?
Kai enganchou os polegares nos bolsos.
– Porque, se os freios do meu aerodeslizador de fuga quebrarem, terei alguém à mão para consertá-los?
Ela revirou os olhos e percebeu-se incapaz de olhar para ele de novo, encarando, em vez disso, o botão vermelho de emergência ao lado das portas.
– Estou falando sério. Não posso ir sozinho. E realmente não posso ir com Levana.
– Bem, deve haver aproximadamente umas duzentas mil garotas solteiras nessa cidade que fariam qualquer coisa por esse privilégio.
Um silêncio se instalou entre eles. Ele não a estava tocando, mas ela podia sentir sua presença, quente e esmagadora. Sentia a temperatura subindo no elevador, apesar de seu medidor de temperatura garantir que nada havia mudado.
– Cinder.
Ela não podia evitar. Olhou para ele. As defesas dela se enfraqueceram um pouco ao encontrarem os olhos castanhos de Kai arregalados. A confiança dele fora substituída por preocupação. Incerteza.
– Duzentas mil garotas solteiras – disse ele. – Por que não você?
Ciborgue. Lunar. Mecânica. Ela era a última coisa que ele queria.
Ela abriu os lábios e o elevador parou.
– Sinto muito, mas acredite: você não quer ir comigo.
As portas se abriram e a tensão sumiu. Ela se apressou para fora do elevador, a cabeça baixa, tentando não olhar para o pequeno grupo de pessoas esperando por um elevador.
– Venha ao baile comigo.
Ela congelou. Todos no saguão congelaram.
Cinder se virou. Kai ainda estava no elevador B, uma das mãos mantendo a porta aberta.
Estava emocionalmente esgotada, e todas as sensações da última hora convergiam para um único e incômodo sentimento – exasperação. O saguão estava repleto de médicos, enfermeiras, androides, oficiais, técnicos, e todos caíram em um silêncio constrangedor e olharam para o príncipe e para a garota que usava calça cargo larga, com quem ele estava flertando.
Flertando.
Endireitando os ombros, ela voltou para o elevador e o puxou para dentro, sem sequer se importar de fazer isso com a mão de metal.
– Segure o elevador – disse ele ao androide enquanto as portas os fechavam lá dentro. Ele sorriu. – Isso prendeu sua atenção.
– Escute – disse ela. – Sinto muito. Realmente sinto. Mas não posso ir ao baile com você. Você tem que acreditar em mim dessa vez.
Ele olhou para a mão enluvada espalmada no peito dele. Cinder se afastou, cruzando os braços.
– Por quê? Por que você não quer ir comigo?
Ela bufou.
– Não é que eu não queira ir ao baile com você, é que eu não vou de jeito nenhum.
– Então você quer ir comigo.
Cinder contraiu os ombros.
– Não importa. Porque não posso.
– Mas eu preciso de você.
– Precisa de mim?
– Preciso. Você não vê? Se eu estiver passando todo meu tempo com você, então a rainha Levana não poderá me envolver em nenhuma conversa ou… – Ele encolheu os ombros. – Dança.
Cinder cambaleou para trás, os olhos perdendo o foco. Rainha Levana. É claro que isso se tratava da rainha Levana. O que Peony dissera a ela, muito tempo atrás? Rumores de uma aliança forjada com um casamento?
– Não que eu tenha nada contra dançar. Eu posso dançar. Se você quiser dançar.
Ela semicerrou os olhos para ele.
– O quê?
– Ou não, se você não quiser. Ou se você não souber. O que não é nada do que se envergonhar.
Ela começou a esfregar a testa, a dor de cabeça aumentando, mas parou quando percebeu que as luvas estavam imundas.
– Eu realmente, realmente não posso ir – disse ela. – Olha só… – Eu não tenho vestido. Adri não vai permitir. Porque a rainha Levana me mataria. – É minha irmã.
– Sua irmã?
Ela engoliu em seco e direcionou o olhar para o chão de madeira escura polida. Até os elevadores eram requintados no palácio.
– É. Minha irmã mais nova. Ela está doente, com letumose. E não seria o mesmo sem ela, e não posso ir, não vou. Sinto muito. – Cinder ficou surpresa ao perceber que as palavras soavam sinceras, mesmo para seus ouvidos. Ela se perguntou se seu detector de mentiras teria apitado se pudesse vê-la.
Kai deslizou de encontro à parede, o cabelo roçando os olhos.
– Não, me desculpe. Eu não sabia.
– Você não tinha como saber. – Cinder esfregou as palmas das mãos dos lados do corpo. Sua pele estava esquentando nas luvas. – Na verdade, há algo… que eu gostaria de falar para você. Se estiver tudo bem.
Ele inclinou a cabeça, curioso.
– Só acho que ela gostaria de saber que você conhece alguns detalhes sobre ela. Hum… o nome dela é Peony. Ela tem quatorze anos e é loucamente apaixonada por você.
As sobrancelhas dele se levantaram.
– Eu só pensei que, se por algum milagre inexplicável, ela sobrevivesse, será que você poderia convidá-la para dançar? No baile? – A voz de Cinder arranhou a garganta quando disse isso; ela sabia que milagres inexplicáveis não aconteciam. Mas tinha que perguntar.
O olhar de Kai queimou dentro dela, e ele assentiu lenta e determinadamente.
– Seria um prazer.
Ela baixou a cabeça.
– Farei chegar aos ouvidos dela que você está ansioso por isso. – Do canto do olho, Cinder viu Kai deslizar a mão para dentro do bolso e a fechar em um punho.
– As pessoas provavelmente estão ficando desconfiadas lá fora – disse Cinder. – Os rumores vão se espalhar como fogo. – Ela fez a declaração com um risinho desajeitado, mas Kai não entendeu a piada. Quando ela se atreveu a olhá-lo de novo; ele estava encarando distraidamente a parede de painéis atrás dela, os ombros pesados.
– Você está bem?
Ele começou a assentir, mas parou.
– Levana acha que pode me manipular como a um fantoche. – Ele franziu a testa. – E acabou de me ocorrer que ela pode estar certa.
Cinder mexeu inquietamente nas luvas. Como era fácil esquecer com quem estava conversando e todas as coisas que deviam estar passando pela mente dele, muito mais importantes do que ela. Mais importantes até mesmo do que Peony.
– Eu sinto como se fosse arruinar tudo – disse ele.
– Você não vai. – Ela quis tocá-lo, mas se conteve, torcendo as mãos. – Você será um desses imperadores a quem todos amam e admiram.
– É. Claro.
– Estou falando sério. Veja o quanto você se preocupa, o quanto está tentando, e nem mesmo é imperador ainda. Além do mais – acrescentou ela, cruzando os braços, enterrando as mãos neles –, não é como se você estivesse sozinho. Você tem conselheiros e representantes das províncias e secretários e tesoureiros e… quero dizer, de verdade, quanto estrago é possível um homem causar sozinho?
Kai deu um meio sorriso.
– Você não está realmente fazendo com que eu me sinta melhor, mas eu aprecio o esforço. – Ele ergueu os olhos para o teto. – Eu não devia estar dizendo isso tudo, de qualquer forma. Não é um problema com que você deva se preocupar. É só que… é fácil falar com você.
Ela arrastou os pés.
– Também é problema meu. Todos temos que viver aqui.
– Você poderia se mudar para a Europa.
– Sabe, eu de fato tenho pensado nisso ultimamente.
Kai riu de novo, o ardor voltando ao som.
– Se isso não é um voto de confiança, eu não sei o que é.
Ela curvou a cabeça.
– Olha, eu sei que você é da realeza e tal, mas as pessoas devem estar ficando impacientes esperando este… – Sentiu dificuldade para respirar quando Kai se inclinou para a frente, tão perto que ela teve certeza, por um segundo, de que ele tinha a intenção de beijá-la. Ela congelou, uma onda de pânico atacando-a, mal conseguindo levantar a vista.
Em vez de beijá-la, ele sussurrou:
– Imagine se houvesse uma cura, mas encontrá-la lhe custasse tudo. Arruinaria completamente sua vida. O que você faria?
O ar quente a envolveu. Tão próxima, ela podia sentir um suave aroma de sabonete vindo dele.
Os olhos de Kai se demoraram nos dela, aguardando, com um traço de desespero.
Cinder umedeceu os lábios.
– Arruinar a minha vida para salvar um milhão de outras? Não é bem uma escolha.
Os lábios dele se abriram – ela não teve opção a não ser a de olhá-los e em seguida olhar de novo para os olhos dele. Quase podia contar os cílios negros. Mas uma tristeza surgiu no olhar de Kai.
– Você está certa. Não há escolha, de fato.
O corpo de Cinder ansiava por acabar com a distância entre eles ao mesmo tempo que queria afastá-lo. A expectativa que trouxe calor aos seus lábios tornou impossível fazer qualquer uma das duas coisas.
– Vossa Alteza?
Ela ergueu o rosto na direção dele, o mais sutil dos movimentos. Ouviu a respiração oscilante dele e, dessa vez, eram os olhos de Kai que recaíam sobre os lábios dela.
– Sinto muito – disse ele. – Tenho certeza de que isto é horrivelmente inapropriado, mas… parece que minha vida está prestes a ser arruinada.
As sobrancelhas dela se juntaram, questionando, mas ele não elaborou nenhuma outra frase. Os dedos de Kai, leves como um sopro de ar, acariciaram o cotovelo dela. Ele esticou o pescoço. Cinder não se movia, mal conseguindo umedecer os lábios enquanto seus olhos se fechavam.
Dor explodiu em sua cabeça e percorreu sua espinha.
Cinder engasgou e se dobrou, abraçando a barriga. O mundo se moveu de maneira brusca. Ácido queimava sua garganta. Kai gritou e a aparou quando ela cambaleou para a frente, pousando-a com cuidado no chão do elevador.
Cinder se apoiou nos ombros nele, tonta.
A dor se foi tão rápido quanto começara.
Cinder continuou deitada, arfando, amparada pelo braço de Kai. A voz dele começou a penetrar pelos tímpanos dela – seu nome, repetido inúmeras vezes. Palavras abafadas. Você está bem? O que aconteceu? O que foi que eu fiz?
Ela estava quente, as mãos enluvadas suavam, seu rosto queimava. Como antes, quando o dr. Erland a tocara. O que estava acontecendo com ela?
Ela umedeceu os lábios. Sua língua parecia inchada.
– Estou bem – respondeu ela, perguntando-se se isso era verdade. – Já passou. Estou bem. – Ela esfregou os olhos fechados e esperou, com medo de que o mais leve dos movimentos trouxesse a dor de volta.
Kai pressionou os dedos contra a testa e os cabelos dela.
– Tem certeza? Consegue se mexer?
Ela tentou assentir e se forçou a olhá-lo.
Kai engasgou e se afastou, com a mão a centímetros da testa de Cinder. O medo deu um nó em suas vísceras. O visor de retina dela estava visível?
– O quê? – perguntou ela, afundando o rosto atrás da mão, correndo dedos nervosos pela pele, pelos cabelos. – O que foi?
– N-nada.
Quando se atreveu a buscar o olhar de Kai, ele estava piscando rapidamente, a confusão dominando seu olhar.
– Vossa Alteza?
– Não, isso não foi nada. – Os lábios dele se curvaram para cima, em um sorriso nada convincente. – Eu estava vendo coisas.
– O quê?
Ele balançou a cabeça.
– Não foi nada. Aqui. – Ele se levantou e a pôs de pé ao seu lado. – Talvez devêssemos ver se o doutor pode encaixar você na agenda lotada dele.