<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml" xmlns:xsi="http://www.w3.org/2001/XMLSchema-instance" xmlns:ops="http://www.idpf.org/2007/ops"> <head> <title>SciELO Books</title> <link rel="stylesheet" type="text/css" href="css/scielobooks.css"/> <meta http-equiv="Content-Type" content="application/xhtml+xml; charset=utf-8"/> </head> <body> <div class="chapter"> <div class="title"> <p>Parte I</p> <p>Idéias e controvérsias</p> </div> <div class="section"> <div class="right"> <p><i>Todo médico, seja ou não clínico, seja ou não funcionário </i></p> <p><i> público, deve colaborar, da melhor maneira possível, no </i></p> <p><i> que se refere à manutenção da saúde pública, e ser um </i></p> <p><i> propagandista sincero de todas as medidas de higiene </i></p> <p><i> individual e coletiva que visem o bem comum.</i></p> <p>Código de Deontologia Médica (1931)</p> <p> </p> <p>Nenhuma outra patologia incitou tanto os </p> <p> estudiosos – médicos, juristas, administradores </p> <p> públicos, religiosos, escritores de ficção e </p> <p> pesquisadores em geral – quanto a tuberculose. </p> <p> Enfermidade mortal que só no século XX foi </p> <p> responsabilizada por cerca de um bilhão de </p> <p> mortes, a tísica favoreceu, na linha histórica, a </p> <p> elaboração de um campo conceitual próprio que, </p> <p> estendido aos seus tributários, promoveu </p> <p> sucessivos conflitos de perspectivas e</p> <p> interesses, resultando no mosaico de</p> <p> interpretações sobre a doença e o doente.</p> </div> <div class="title"> <p><a id="sc01"></a>1</p> <p>A medicina e o fato tuberculoso</p> </div> <p>A tuberculose é uma doença infecto-contagiosa que, de regra, assume evolução crônica e tem como agente etiológico a <i>Mycobacterium tuberculosis</i>. Acredita-se que este micróbio – também conhecido como bacilo de Koch – seja anterior ao próprio Homem, sucedendo formas ainda mais elementares de vida microscópica. O encontro entre o germe da tuberculose e a espécie humana levou o agente infeccioso a desenvolver estratégias de adaptação ao novo hospedeiro: além da perda da capacidade de multiplicação no meio exterior, o bacilo inicialmente sofreu um significativo aumento de virulência para, na continuidade, restringir sua capacidade destrutiva, tornando-se um comensal aceitável para os indivíduos e para os agrupamentos humanos.</p> <p>Nessas condições, o micróbio da tísica encontrou nos pulmões do ser humano um microecossistema favorável à sua sobrevivência, ganhando possibilidade de reprodução em um ambiente ao mesmo tempo quente e úmido, arejado e sombrio. Com a proliferação bacilar em forma de colônias, parte das sementes usualmente migram para outras regiões do aparelho respiratório, podendo se disseminar por todo o organismo contaminado por meio das vias broncogênica, linfática e hematogênica. Outra parcela dos germes é expulsa pelas vias aéreas, poluindo o meio ambiente.</p> <p>No prazo de 24 horas um indivíduo infectado pode expelir até 3,5 milhões de bacilos da tuberculose, muitos deles presentes em gotículas microscópicas que são eliminadas através da tosse, do espirro ou no processo da fala. Estas minúsculas partículas podem flutuar por um período de até 8 horas, depositando-se em roupas, lenços, livros, móveis e na poeira. Eventualmente, as menores gotículas podem ser aspiradas por outros indivíduos, sendo que se não forem retidas pelas mucosas do nariz e da garganta, o material pode atingir os bronquíolos respiratórios e os alvéolos, tornando-se substância infectante. Outra via comum de contágio em décadas passadas constituía-se na ingestão de leite e de carne bovina comprometidas pela <i>Mycobacterium bovis</i>, bacilo similar ao <i>M. tuberculosis</i> e que também pode causar a tísica.</p> <p>Instalando-se no organismo humano sadio, o bacilo de Koch permanece inativo por cerca de três dias. A partir deste momento inicia-se o ciclo de reprodução que se renova a cada 18 horas, média bem superior à de outras variedades microbianas. Também neste período é ativado o processo de defesa orgânica, primeiramente como resposta imunitária inespecífica e logo depois por meio de reações imunológicas específicas, mediante a ampliação da capacidade de fagocitose das células mobilizadas contra o elemento invasor.</p> <p>Neste encaminhamento, o foco primário da infecção geralmente produz uma lesão inflamatória inicial, localizada na região subpleural. Entre a terceira e a oitava semanas, os bacilos já formaram colônia capaz de produzir reação inflamatória elementar, evidenciando a existência de um processo destrutivo dos tecidos pulmonares. A resposta orgânica permite que as células histiocitárias e linfócitas recubram a lesão, possibilitando a constituição de um nódulo ou tubérculo específico. Os bacilos, entretanto, se propagam por intermédio da via linfática para os gânglios adjacentes, dando conformidade ao chamado ‘complexo primário’.</p> <p>Estabelecida a primoinfecção, a continuidade da doença permanece incerta, podendo evoluir para uma tuberculose crônica ou, mais raramente, para a tísica progressiva aguda. A infecção, contudo, pode permanecer estacionária, abrindo chances para que os bacilos latentes reiniciem sua ação destrutiva anos após o evento inicial. A espécie humana, entretanto, apresenta significativa resistência contra esta agressão, sendo que o desenlace mais freqüente constitui-se na regressão do processo patológico e a cura espontânea, com a conseqüente recuperação, cicatrização ou calcificação do tecido danificado pelo agente etiológico da chamada Peste Branca.</p> <p>Os fatores que determinam o curso assumido pela infecção ainda não são suficientemente conhecidos. A linha de entendimento que busca situar as condições materiais de vida como explicadoras do prosseguimento (ou da interrupção) do processo tísico parece não responder sozinha ao enigma, sendo que cada vez mais apontam-se para as respostas relacionadas com a carga genética como fator de proteção individual.</p> <p>O quadro clínico apresentado pela tuberculose é extremamente complexo, advogando-se que esta patologia é ‘a mais caprichosa de todas as doenças’, dado a multiplicidade de sintomas que podem confundir o diagnóstico médico. Na fase inicial, a infecção apresenta-se quase sempre silenciosa, ou com manifestações discretíssimas, difíceis de serem detectadas pelo Raio X.</p> <p>A evolução do processo mórbido geralmente tende a produzir febre que, à tarde, pode chegar a 39 graus centígrados, acompanhada de suores, emagrecimento contínuo e acentuado, dores torácicas, tosse, expectoração crescente, cansaço e dificuldade de respiração. Por fim, a hemoptise evidencia o estado enfermiço, principalmente quando associada aos demais sintomas. O diagnóstico definitivo encontra apoio na radiografia pulmonar, na tomografia, na análise laboratorial do esputo e na prova tuberculínica.</p> </div> <div class="section"> <div class="title"> <p>O enigma da enfermidade</p> </div> <p>As definições atuais que permitem a compreensão clínica-epidemiológica da tísica são fruto de uma história marcada pela paixão e pela necessidade. Paixão porque a persistência do enigma patológico se impôs como desafio que exigia respostas clareadoras e, em conseqüência, o pretérito da medicina está repleto de interpretações sobre os mecanismos da doença do peito e as possíveis decisões terapêuticas. A necessidade de soluções eficientes para conter a disseminação da moléstia deve-se ao fato de a tísica se constituir em uma das maiores ceifadoras de populações, pois, apesar da resistência humana ao bacilo, o ‘mal consuntivo’ mantém-se em estado endêmico através de gerações, comprometendo assim sucessivas sociedades.</p> <p>A comunidade médica, chamando a si a tarefa de decifrar o mistério, invariavelmente encontrou nos debates sobre a doença do peito motivos suficientes para discórdia, resultando em impasses que favoreceram a quebra da regra incentivadora da harmonia entre os discípulos de Hipócrates. A série de respostas oferecidas ao desafio da moléstia pulmonar colocou em confronto variadas linhas explicativas, aproximando magia e religião, medicina oficial e tradições populares que, no final, anunciavam menos a positividade do saber que a complexidade da doença que insiste em ocultar alguns de seus mecanismos de funcionamento.</p> <p>Infecção tão antiga quanto a humanidade, é provável que os primeiros humanídeos já padecessem com a tísica, mesmo que a existência de pequenos grupos isolados inibisse a difusão maciça da moléstia. Com a ocorrência da Revolução do Neolítico, os agrupamentos humanos cresceram em número e a domesticação de algumas espécies animais ampliou as possibilidades de contágio.</p> <p>Apesar da precariedade de informações acerca da tuberculose no período anterior ao momento hipocrático, sabe-se que a doença esteve presente entre os egípcios, encontrando-se indícios do Mal de Pott em partes de corpos mumificados e com data aproximada de 6.000 anos. Aventa-se mesmo a hipótese de que, no último milênio antes de Cristo, teria existido uma espécie de sanatório na região do delta do rio Nilo. Esta suposição, anotada em diversos relatórios arqueológicos, encontra apoio na identificação de restos de múmias infectadas, concentrados espacialmente nos terrenos escavados (Dubos, 1952).</p> <p>A disseminação da moléstia fez com que, tanto no Egito quanto na Índia, surgissem registros que cobravam prudência redobrada aos ‘médicos’ no tratamento das vítimas da Peste Branca. Para não afetar a reputação da linhagem de curandeiros, aconselhava-se que os responsáveis pela assistência aos doentes atendessem apenas os infectados que se encontrassem nas fases iniciais da enfermidade, advertindo-se que os pectários em estágio avançado deveriam ser evitados, já que a morte do paciente era considerada como desenlace certo.</p> <p>Apesar do empenho de vários povos da Antigüidade Oriental em ampliar o conhecimento sobre a tísica, coube aos gregos a descrição mais apurada da doença do peito, sendo que os textos atribuídos a Hipócrates constituem-se no melhor repertório de informações sobre o assunto. Fruto de uma ‘escola médica’ que buscava antes de mais nada registrar as observações sobre os fenômenos da natureza, os escritos ligados ao nome do Mestre de Cós foram os que com maior minuciosidade entenderam a patologia dos pulmões, afastando-a do domínio exclusivo dos princípios religiosos e definindo-a como ‘a mais difícil de curar e a mais fatal’ das doenças conhecidas no período.</p> <p>Os termos ‘consunção’ e ‘tísica’ – importados da Índia, significam emagrecimento ou depauperação do corpo –, além da categoria ‘fimata’, foram compreendidos pela academia hipocrática como sinônimos de ulceração ou supuração dos pulmões. A doença era explicada como conseqüência de três outras patologias orgânicas: a pleurite purulenta, a hemoptise e, por fim, a pneumonia, quando esta tomava um curso diferente do habitual.</p> <p>Apesar dos gregos confundirem a tuberculose com outras expressões patológicas que afetavam o aparelho respiratório, as anotações hipocráticas estabeleceram os fundamentos do raciocínio clínico sobre a tísica. Estes princípios persistiram, quase inalterados, até o advento dos tempos modernos, confirmando o grau de sofisticação alcançado pela medicina da Antigüidade.</p> <p>No Capítulo XI do Livro Primeiro atribuído a Hipócrates, observa-se, por exemplo, um instante significativo da descrição grega sobre a doença pulmonar. Neste texto, as causas apontadas para a ocorrência da tísica consistem sobretudo quando, na ocorrência da pneumonia, o doente não elimina catarro que, permanecendo no pulmão, torna-se matéria pútrida e deletéria, sufocando o paciente e comprometendo o funcionamento de todo o organismo (1911:198).</p> <p>Na seqüência de seus escritos, o esculápio buscou agregar novos elementos às suas observações, sem no entanto transformar o esquema inicial proposto. No Capítulo XII do mesmo Livro, Hipócrates acrescentou que o muco produzido pelo enfermo pode eventualmente descer do nariz e da laringe, atingir os pulmões e também impregnar outras regiões do tórax, inclusive o estômago. A tosse que se inicia fraca, paulatinamente ganharia intensidade, acompanhada de febre prolongada e a parcela eliminada do catarro mostrar-se-ia densa e pútrida. O apetite desapareceria e o doente viria a morrer em conseqüência do pulmão ter se tornado inteiramente deteriorado ou ainda devido aos distúrbios digestivos que, acreditava-se, era marca definidora da tuberculose terminal.</p> <p>O processo mórbido comandado pela tísica poderia levar inclusive à ruptura de uma veia, anunciada pelo aparecimento de laivos sangüíneos no esputo. Tanto quanto o catarro, parte do sangue alojar-se-ia nos pulmões, contribuindo para a putrefação do mesmo. Nesta situação, Hipócrates advertiu que o doente deveria buscar socorro médico e permanecer de cama por longos períodos. Caso não o fizesse, a quantidade de sangue perdido comprometeria a vida do enfermo que tornar-se-ia emaciado e a sua cabeça “diminuiria de tamanho” (1911:198), chegando a óbito em decorrência da debilidade orgânica causada pela escassez de sangue no organismo.</p> <p>A partir dessas constatações, os médicos gregos estabeleceram como sintomatologia básica da consunção a existência de sons anormais produzidos no peito, dor torácica intensa, tosse freqüente, escarro grosso e purulento, respiração trabalhosa, rouquidão da voz, rubor facial e ‘empelotamento da língua’. Acrescentaram ainda que o inchamento dos pés e joelhos, a profusão de suores, as unhas curvas e a diarréia intensa constituíam-se em sinais indicativos da proximidade da morte para o doente do peito.</p> <p>A medicina romana pouco acrescentou às propostas gregas. Ao contrário, acredita-se que, tentando simplificar o entendimento sobre a patologia, os latinos distorceram os ensinamentos hipocráticos. Nesta situação destacou-se o esculápio Galeno que, buscando explicações para a tísica, concluiu que a ‘úlcera pulmonar’ era produzida por meios mecânicos ou traumáticos que resultavam na laceração do tecido dos pulmões. O ferimento dava origem a uma inflamação que, se não curada em poucos dias, configurava-se como uma tísica.</p> <p>A multiplicidade das discussões sobre a etiologia da tuberculose na parte final da Antigüidade pareava com a variedade de propostas terapêuticas existentes. Nos escritos de Plínio, o Jovem, foram arrolados os principais remédios empregados pelos greco-romanos contra a tísica, sabendo-se que para a cura da tosse era recomendada a ingestão de pulmão de lobo cozido em vinho, acompanhado de uma bebida composta de bile de urso, saliva de cavalo e mel.</p> <p>Para os enfermos que produziam escarro sangüíneo, indicava-se carne de lebre e de caracol e a combinação de pó de chifre de cervo e um pouco de terra da ilha de Samos diluídos em vinho de murta. O leite, especialmente o de origem bovina, complementava qualquer prescrição medicamentosa, estando presente em todas recomendações clínicas, desde as primeiras observações registradas sobre a mortal enfermidade (Castiglioni, 1933).</p> <p>Oferecendo complemento a estas terapêuticas, os médicos gregos e romanos prescreviam ainda a aplicação de bálsamos elaborados com substâncias extraídas do pinho e da mirra e também chás de vegetais considerados específicos para os doentes do peito, como licorice, violeta, hissopo e pulmonária. Além disso, alguns derivados minerais ganharam créditos curativos, destacando-se, entre outros, o arsênico e o enxofre, aconselhando-se também a recorrência a eméticos e purgativos e a prática continuada de sangrias.</p> <p>Ainda no tempo de Plínio, o tratamento dos pectários encontrava como regra geral o apelo à climatoterapia. Na Roma Imperial, por exemplo, era comum o envio dos tuberculosos para regiões caracterizadas pelo clima quente e seco, especialmente a Sicília e o Egito, medida que era geralmente combinada com viagens marítimas que demandavam longo período de tempo. Atendendo a estes princípios, Cícero partiu gravemente enfermo de Roma, permanecendo dois anos em excursão que o levou até o continente asiático. De regresso à capital do Império, o orador e político apresentou-se curado, fazendo alarde das qualidades terapêuticas das peregrinações para o Oriente.</p> <p>No período medieval, as idéias e o receituário greco-latinos ganharam a dimensão de verdades sacramentadas, cabendo especialmente aos árabes as contribuições acerca da descrição do aparelho respiratório, inclusive sobre a circulação sangüínea nos ‘vasos pulmonares’. Além disso, os muçulmanos trouxeram para a Europa os conhecimentos médicos produzidos na Índia, na Síria e na Pérsia, oferecendo descrições detalhadas sobre a tuberculose intestinal, fato que, como vários outros ensinamentos, passou despercebido pela maior parte dos esculápios cristãos.</p> <p>Paralelamente à tradição hipocrática, as concepções religiosas cristãs ganharam peso, ensinando que as moléstias eram produto da vontade divina, fato que permitiu que as enfermidades, inclusive a tísica, fossem objetos de curas milagrosas. O ‘mal das escrófulas’ – mais tarde identificado como adenite tuberculosa – contou durante séculos com o simples toque das mãos reais como principal forma de cura, ganhando popularidade na França e na Inglaterra. A persistência da tradição desde o tempo do rei Clóvis até o século XVIII chamou a atenção dos historiadores, sendo que Marc Bloch (1983) foi o pioneiro em reconhecer o caráter simbólico imputado à enfermidade e aos ‘reis taumaturgos’.</p> <p>No contexto da Baixa Idade Média, a Escola de Salerno tornou-se responsável pela renovação do ensino e da prática médica européia, sendo que o ecletismo das idéias assumidas por esta Escola trouxe limitadas novidades sobre o problema representado pela tísica. Mesmo assim, coube aos salernitanos adotarem alguns ensinamentos das clínicas muçulmana e judaica, que até então tinham sido rejeitados pelos europeus, tais como a dieta centrada no leite humano e alguns itens da flora oriental, inclusive narcóticos para aliviar os padecimentos dos fimatosos mais graves. Em um texto produzido em Salerno e datado dos últimos séculos medievais, pouco foi discutido sobre a doença consuntiva, repetindo-se praticamente as prescrições legadas da Antigüidade Clássica, intercalando-as com as propostas terapêuticas assumidas pelos judeus e pelos árabes (Regola, 1975).</p> <p>Um dos motivos possíveis para a explicação do escasso interesse pela tuberculose demonstrado durante a Idade Média deve-se ao fato de ter ocorrido, naquela época, um retrocesso quantitativo de casos de consunção, conseqüente ao declínio da vida urbana na Europa. Entretanto, a partir do século XV, a tísica novamente se mostrou alarmante, disseminando-se entre os povos europeus. A interpretação segundo a qual o fenômeno deveu-se exclusivamente ao ‘renascimento’ das cidades parece não convencer os estudiosos, que preferem conjugar o incremento do número dos pectários com a diminuição da comunidade de hansenianos no contexto europeu.</p> <p>O fato da tuberculose e da lepra terem como agentes etiológicos micróbios que pertencem ao mesmo gênero biológico permite a suposição de que ambas as micobactérias estabeleceram uma relação antagonística pela competição imunológica. Em outras palavras, advoga-se que a infecção tuberculosa inibe a ocorrência da hanseníase, fenômeno que explicaria a alteração do perfil epidemiológico europeu, ocorrida nos momentos derradeiros da Idade Média, quando coincidiu o aumento de casos de tísica com o decréscimo da colônia dos leprosos (Grmek, 1983).</p> <p>Contra tal hipótese, alguns elementos foram reunidos, incluindo referências medievais sobre indivíduos portadores de ambas as moléstias e também a existência de uma forma intermediária das patologias, denominada lepra tuberculóide, e restrita à epiderme humana. Alguns pesquisadores acrescentam ainda que a involução do número de lazarentos foi um fenômeno restrito geograficamente, assinalado apenas em algumas regiões européias e que portanto torna-se arriscado generalizá-lo para todo o continente (Sournia, 1986).</p> <p>De qualquer forma, a partir dos séculos XV e XVI, a tísica começou a ganhar uma dimensão inquietante no cenário europeu, mais pelo número de óbitos que causava periodicamente do que pela constância e generalização das reações sociais de exclusão dos infectados, pois naquela época a doença era de escasso conhecimento popular, sendo que a morte lenta dos pectários dissimulava o império da doença.</p> <p>Em conseqüência, o período moderno foi pautado pelas tentativas médicas de expandir o conhecimento sobre a patologia pulmonar. Dentre as propostas articuladas naquele momento, destacam-se os posicionamentos do médico e humanista italiano Girolamo Fracastoro que, no ano de 1546, opôs-se ao princípio hipocrático que ensinava que “um tísico nasce de outro tísico”. Na seqüência, deve-se a Fracastoro a menção – herdada da medicina árabe – de que a tuberculose era transmitida por “micropartículas” veiculadas pelas correntes aéreas e que se depositavam em roupas e outros objetos (Castiglioni, 1947:548, v.1).</p> <p>Foi no século XVII e sobretudo na centúria seguinte que anatomistas e fisiologistas conquistaram melhor entendimento sobre a tísica. A aplicação dos princípios cartesianos no campo do saber, que mais tarde seria definido como área de competência da biologia, permitiu que o complexo corpóreo humano fosse concebido como um conjunto articulado de mecanismos. A concepção do homem-máquina, por sua vez, estimulou as aventuras laboratoriais, incentivando o afloramento de perspectivas inovadoras sobre a doença que corroía o peito dos consuntivos.</p> <p>A importância do cálculo matemático, refletindo os princípios fundamentadores da física clássica, orientou a comunidade médica para a atuação experimental. Entre Descartes e Bayle, os pulmões normais e os afetados foram meticulosamente indagados, medidos, pesados, avaliados pela cor, pelo cheiro e pela consistência. Nesta cirurgia, a história das ciências médicas registra os nomes de uma legião de estudiosos que estabeleceram as bases da fisiologia respiratória e identificaram os tubérculos e as cavernas pulmonares.</p> <p>Paulatinamente, nos últimos dois séculos da história moderna, o saber clínico sobre a tísica foi sendo reelaborado. Ainda no tempo de Descartes, o francês Franciscus Sylvius descreveu pela primeira vez a existência de pequenas granulações nos pulmões contaminados que, segundo esse médico, quando ganhavam aspecto purulento, faziam surgir cavidades que, pela dimensão e tamanho, anunciavam a gravidade da moléstia. Entretanto, Sylvius manteve-se parcialmente fiel aos ensinamentos hipocráticos, concluindo que os tubérculos nada mais eram que úlceras pulmonares, conseqüentes ao derramamento de substância sangüínea no órgão afetado (Bariéty, 1963).</p> <p>Poucos anos depois, em 1689, coube ao britânico Robert Morton estender as conclusões de Sylvius, reiterando que a presença dos tubérculos necessariamente precediam a ulceração pulmonar. A nova ordem perceptiva da moléstia exigiu que seus propugnadores rebatizassem a patologia que desde os finais do século XVII passou a ser oficialmente indicada nos alfarrábios médicos por meio da palavra ‘consunção’, caindo no esquecimento o legado helênico de denominar o definhamento respiratório pela designação de ‘fimatose’.</p> <p>A ampliação do conhecimento sobre a Peste Branca, no entanto, não foi acompanhada pelo estabelecimento de propostas terapêuticas eficientes. A medicina da modernidade clássica dirigiu seus esforços especialmente para a organização de um vasto quadro de signos diagnósticos e prognósticos que, se atestavam a precisão das observações realizadas, também promoviam uma comprometedora confusão entre os sintomas e as causas da doença. O catarro e a hemoptise ainda eram apresentados como as principais causas da moléstia do peito, assim como o ‘estado moral’ dos pectários era interpretado como motivo concorrente para o enfermamento.</p> <p>Ao terminar o ‘Século das Luzes’, os médicos ainda faziam largo uso da farmácia da Antigüidade, reproduzindo sistematicamente as estratégias terapêuticas aconselhadas por Hipócrates, Areteus e Galeno, acentuando também a importância do emprego do leite humano como elemento fundamental para a cura dos consuntivos. Não eram poucos, pois, os médicos que aconselhavam os tísicos mais abastados a se fazerem acompanhar a todo instante por uma nutriz, para sempre que possível consumir a imprescindível substância humana. As poucas novidades que eram apresentadas como salvadoras dos pectários apareciam recobertas de segredos, sendo exemplar a atuação do médico e revolucionário Jean-Paul Marat que, produzindo e receitando sua ‘água antipielmônica’, granjeou fortuna e prestígio popular.</p> <p>A ausência de drogas curativas impôs à medicina daquela época a climatoterapia como o principal recurso de tratamento dos enfermos. Não mais os climas secos eram aconselhados aos pectários, mas sim os ares amenos do campo, onde juntamente com o repouso e alimentação rica em carboidratos, também eram prescritas longas cavalgadas. A chancela clínica ao princípio da equitação como estratégia dinamizadora do aparelho respiratório difundiu-se pela Europa, exigindo que os fimatosos, em qualquer estágio da doença, preenchessem várias horas do dia com exercícios eqüestres e, se impossibilitados para esta tarefa, ficassem confinados em cadeiras de balanço.</p> <p>Nas últimas décadas do século XVIII, a reorganização médica que se iniciava promoveu a constituição do saber clínico que permitiu a afirmação de um ‘olhar’ inovador sobre a doença e os doentes, favorecendo com isto o florescimento de novas percepções sobre a tuberculose. O nascente projeto clínico, nas palavras de Michel Foucault (1977), orientou-se pela “espacialização” da enfermidade. A pergunta “o que você sente?” dirigida ao paciente, foi substituída por “onde dói?”, firmando o posicionamento que buscava surpreender a patologia no corpo enfermo e tratá-la segundo um quadro nosológico que se guiava pelas possíveis características da moléstia, prevendo a evolução do caso e instruindo o clínico sobre as opções terapêuticas disponíveis.</p> <p>A intenção de estabelecer o ‘lugar natural’ da tuberculose no conjunto das patologias exigiu da comunidade hipocrática um redobrado esforço na tarefa de qualificação dos sinais e dos sintomas mórbidos. As enfermarias hospitalares transformaram-se no espaço onde o olhar médico deveria dominar absoluto, estendendo-se também para a sala de autópsia. A clínica fundamentada na anatomia e na patologia assumiu o papel de promotora da medicina moderna que, mais do que nunca, buscou conhecer os mecanismos específicos do mal do peito.</p> <p>O hospital despontou no início do século XIX como o local propício para o desvelamento da naturalidade da doença. A sensibilidade clínica, guiada pela lógica iluminista, impunha a regularidade das observações que se definiam como experiência coletiva. Os segredos do corpo enfermo protegido pela opacidade dos órgãos internos ditava a necessidade de uma conduta médica diferenciada.</p> <p>O código perceptivo da clínica tinha como nova regra o acúmulo e a sobreposição dos olhares. Gaspar Bayle e Théophile Laennec não só observaram minuciosamente milhares de tísicos acamados, mas também fizeram-se acompanhar nas enfermarias por grupos de estudantes, para que cada um deles examinasse os adoentados e, após a discussão do caso clínico, aflorasse do conjunto de anotações, diagnóstico e prognóstico únicos e coerentes ( Laín Entralgo, 1954).</p> <p>O abandono do esquema que ensinava que a coincidência dos sintomas definia a identidade da patologia permitiu que Bayle reconhecesse a singularidade biológica da consunção, diferenciando-a de outras entidades mórbidas anunciadas pelo estado febril. Apoiado no método anatomopatológico, coube a este clínico destacar a “natureza essencial” da tuberculose, definindo-a como “toda lesão pulmonar produzida por uma ulceração que, em geral, leva à morte” (Entralgo, 1954:430-431), descrevendo os sintomas clínicos e a aparência pulmonar em cada estágio do alastramento da enfermidade.</p> <p>Laennec, por sua vez, rejeitou o ensinamento de Bayle sobre a existência de seis espécies de tísica, defendendo a unicidade da doença e esta como resultado de uma inflamação crônica que conduzia à lenta supuração dos tecidos pulmonares.</p> <p>Tanto Bayle quanto Laennec foram contestados por uma considerável parcela da comunidade médica européia, especialmente por François Broussais e seus discípulos, que julgavam a tísica como conseqüência da irritação dos tecidos, causada por gastroenterite.</p> <p>Neste mesmo período, Laennec chamava a atenção de seus pares por ter sido o primeiro facultativo a utilizar o estetoscópio no cotidiano da clínica. A ampliação dos sons produzidos pelo trabalho pulmonar permitiu que fosse dado um passo à frente no entendimento do processo tuberculoso. O reconhecimento da ‘música do corpo enfermo’ consentiu que novas luzes fossem lançadas sobre a opacidade do órgão comprometido, anunciando com maior antecedência os efeitos da moléstia sobre o aparelho respiratório (Guillaume, 1986).</p> <p>A indisfarçável contrariedade que despertaram as idéias de Laennec e também o uso do ‘indecoroso brinquedo’ para ouvir o corpo ganhou maior intensidade ainda pelo fato de Laennec ampliar o coro das vozes que afirmavam ser a consunção um ‘mal incurável’ e portanto destituído de qualquer solução medicamentosa.</p> <p>O niilismo terapêutico era revelado em um momento no qual a Peste Branca abatia assustadoramente a sociedade européia e quando também se esboçava a organização de uma lucrativa indústria de remédios que tinha na exploração da tuberculose uma formidável fonte de enriquecimento.</p> <p>Contra Laennec – que se contaminara com o bacilo da tísica possivelmente durante a dissecação de cadáveres infectados – conjugaram-se os aliados de Broussais que denunciaram o aperfeiçoador do estetoscópio como um ‘fimatoso mistificador’, já que, contrariando suas próprias recomendações clínicas, periodicamente recorria ao tratamento climático nas costas do norte da Inglaterra e, ao morrer, tinha em seu quarto um grande sortimento de plantas marinhas, cujas essências eram consideradas remédio apropriado dos tuberculosos.</p> <p>A controvérsia instaurada por Laennec e Broussais foi reafirmada pelos seus discípulos, incentivando os debates sobre a tísica, durante toda a primeira metade do século XIX. Afinal, questionava-se, a tuberculose era conseqüência da inflamação ou da irritação dos órgãos? Haveria remédios para o tratamento da doença? A enfermidade era hereditária ou dependia da disposição constitucional do indivíduo? Existiria o contágio tísico? Qual seria o agente infeccioso: os miasmas ou o indivíduo previamente contaminado?</p> <p>No período em que se consolidavam as premissas da medicina clínica, os anatomopatologistas buscavam soluções para estes e para muitos outros enigmas centrados na consunção. A recorrência ao microscópio sugeria algumas possíveis respostas. A patologia celular inaugurada por Robert Virchow lançava novos focos de celeuma, sustentando a teoria segundo a qual os tubérculos e a matéria caseosa encontrada nos pulmões afetados correspondiam a distintos elementos, fomentando ainda mais os confrontos acadêmicos.</p> <p>A grande dúvida que alimentava os temores coletivos do século passado residia no questionamento sobre o eventual caráter contagioso da consunção. Somente no ano de 1865, por meio das experiências realizadas por Jean Antoine Villemin foi possível constatar a condição virulenta e inoculável da moléstia que, como já se tinha noção, não só podia afetar os pulmões, mas outras regiões do corpo humano.</p> <p>Os experimentos controlados por Villemin consistiram na inoculação em diversas espécies de cobaias sadias de sangue, esputo e matéria caseosa extraídas de infectados, resultando no adoecimento de todos os animais utilizados no laboratório. A conclusão a que chegou Villemin foi que a tuberculose era uma doença contagiosa e dependente de um agente causal específico, uma forma de vida “infinitamente pequena”, como pouco antes havia pontificado o químico Louis Pasteur (Delarue, 1972:12).</p> <p>Os trabalhos assinados por Villemin e também os de Pasteur foram aceitos reticentemente pela comunidade clínica e pelos higienistas. Afinal, a doutrina miasmática e a concepção sobre a hereditariedade consuntiva contavam com a legalidade da tradição e, até o encerramento do século XIX, a idéia sobre a veiculação microbiana das enfermidades era confirmada por um grupo restrito de médicos. Para a maior parte dos estudiosos, o papel desempenhado pelos micróbios na ocorrência das enfermidades era apenas uma hipótese pouco convincente ou uma condição secundária no desencadeamento das patologias coletivas (Léonard, 1986).</p> <p>Em 1870, E.J. Woillez, médico especialista em moléstias pulmonares, preferiu anotar em seu Dictionnaire que a explicação básica para a ocorrência da moléstia do peito era a presença de tubérculos acinzentados nos pulmões, acrescentando que Villemin havia realizado pesquisas pouco conclusivas sobre o tema.</p> <p>Apesar das reações cautelosas, inúmeros pesquisadores – nos quais se incluía o próprio Pasteur – empenharam esforços no reconhecimento do micróbio responsável pela corrupção pulmonar, cabendo ao alemão Robert Koch o pioneirismo na identificação do germe da Peste Branca. Tendo ganho fama desde 1876, quando obteve a cultura pura do bacilo da antraz, Koch recebeu apoio do Estado germânico para desenvolver suas pesquisas, sendo que em março de 1882, o bacteriologista leu perante a Sociedade de Fisiologia de Berlim uma dissertação de sua autoria (1981) em que, obedecendo ao encaminhamento com base na doutrina positivista, comunicava ter descoberto o “agente causal” da tuberculose.</p> <p>Nesse texto, Koch declarou-se continuador das pesquisas de Villemin, informando que o isolamento do micróbio da consunção consistia numa tarefa urgente e humanitária, já que um sétimo dos óbitos registrados na Europa devia-se à infecção pulmonar, acrescentando ainda que não menos de um terço da comunidade dos trabalhadores adultos apresentava fortes indícios de contaminação pulmonar. Assim, graças a pequenos ajustes nas técnicas laboratoriais vigentes no período, Koch tornou-se o primeiro cientista a visualizar pelo microscópio o germe veiculador da tísica, descrito como um “pequeno bastonete” tingido pelo “belo azul” do corante empregado nos procedimentos da pesquisa.</p> <p>Identificado o micróbio, Koch procedeu ao exame de tecidos e catarro de indivíduos contaminados e também de algumas variedades animais que apresentavam infecção tuberculosa. A constatação da presença do germe em todos os seres tísicos permitiu ao médico realizar a cultura laboratorial do bacilo e a inoculação do material em centenas de cobaias, onde se incluíam desde hamsters e coelhos, até macacos, cães, gatos e galinhas.</p> <p>A comprovação experimental do caráter infecto-contagioso do bacilo permitiu ainda que o pesquisador alemão atestasse a unicidade das patologias que até aquele instante a medicina havia teimado em apresentar como moléstias diferenciadas. Oferecendo confirmação científica à hipótese sugerida por Laennec, Robert Koch asseverou que a tísica, a bronquite e a pneumonia caseosas, assim como as tuberculoses intestinal, ganglionar e miliar correspondiam a expressões de uma mesma infecção, alvoroçando ainda mais os centros de debates hipocráticos.</p> <p>Em coerência com estes princípios, o bacteriologista buscou aproximar a medicina laboratorial das práticas higienistas, sugerindo providências limitadoras da disseminação da doença consuntiva no contexto social.</p> <p>Segundo Koch, a tuberculose era uma patologia causada exclusivamente pelo bacilo que recebeu o seu nome e que atingia tanto os homens quanto os animais, sendo que o contágio era atestado como resultado da eliminação do micróbio do corpo enfermo, por meio do espirro e do catarro. A permanência da substância em gotículas que flutuam no ar ou o seu depósito em objetos e na poeira consistiam em perigo iminente, pois assim ampliavam-se as oportunidades de infecção dos sadios. Apesar do caráter contagioso da Peste Branca, Koch foi cauteloso em desqualificar a condição hereditária da enfermidade, sugerindo a necessidade de novos estudos sobre o fenômeno.</p> <p>A definição de um bacilo como agente responsável pela abrangência coletiva da moléstia pulmonar coagiu a Higiene Pública a analisar a consunção como moléstia que poderia ser controlada por intermédio do bloqueio das fontes produtoras do material contaminante. Com isto, desde o final do século XIX, ganharam maior consistência as regras sanitárias que cobravam a desinfecção dos objetos pessoais e do catarro dos enfermos, desdobrando-se na ostensiva vigilância das pessoas e dos animais fimatosos.</p> <p>A contínua reiteração dos postulados kochianos, entretanto, foi acolhida com incredulidade por uma significativa parcela da corporação dos esculápios, sendo comum as vozes clínicas que, até meados do século XX, negavam a exclusividade da veiculação microbiana da Peste Branca.</p> <p>Exemplar foi o relativo sucesso das idéias de Auguste Lumière (1931) que, escudado no prestígio angariado por ser irmão do inventor do cinema, elaborou uma longa série de textos onde afirmava que a tuberculose consistia em uma enfermidade fundamentalmente hereditária, sendo o contágio um acidente secundário e desprovido de significado estatístico.</p> <p>As pesquisas que se sucederam ampliaram ainda mais o conhecimento fisio-patológico sobre a moléstia que, desde o encerramento da centúria passada, ganhou a denominação oficial de tuberculose, convertendo-se na personagem central de uma área de especialização médica.</p> <p>O emprego do Raio X pela medicina inaugurou novos recursos para a averiguação clínica do corpo infectado, tornando-se corriqueiro seu uso pelos tisiologistas a partir da segunda década do século XX. A observação detalhada das alterações promovidas pela doença no organismo contaminado permitiu o desdobramento da semiologia da tísica. O interesse pela instrução dos médicos e dos leigos sobre os indícios corporais da presença mórbida possibilitou a organização de um vasto conjunto de sinais e sintomas que, mais do que colaborar na identificação dos infectados, reafirmava a sentença hipocrática sobre o ‘caráter caprichoso’ da tuberculose.</p> <p>O livro de autoria do professor Félix Coste (1915) constitui-se num exemplo revelador do empenho clínico em detectar a ação destrutiva da enfermidade: ao discorrer sobre mais de uma centena de sintomas patológicos, o médico tomou a precaução de indicar que todos eles poderiam ser relacionados com a infecção consuntiva.</p> <p>Paralelamente aos aprimoramentos do saber que questionava a Peste Branca, a comunidade especializada desdobrou esforços para a obtenção de uma droga eficiente na cura e na prevenção da tísica. A busca de um tratamento apropriado para a moléstia tornou-se a grande meta da medicina pastoriana. As tentativas medicamentosas resultaram na produção de um surpreendente número de remédios, soros e vacinas que eram anunciados com uma insistência nunca verificada até então, ocupando largos espaços das publicações especializadas e em revistas, almanaques e jornais populares. O próprio Dr. Koch, após ter identificado o agente etiológico do cólera, dedicou-se ao assunto. Em 1890, o cientista alemão noticiou em Berlim, durante uma sessão solene do Congresso Internacional de Tuberculose, o achado de uma droga que curaria todos os fimatosos, evitando, porém, de compartilhar com seus pares a fórmula da substância salvadora.</p> <p>A esperança da ciência ter decifrado o último grande enigma proposto pela tísica imediatamente ganhou manchetes na imprensa mundial. Repórteres e tuberculosos de todas as partes do mundo dirigiram-se para a capital da Alemanha, desejosos de informações e cura. O primeiro médico britânico a se encontrar com Koch para conhecer detalhes sobre a nova droga – batizada com o nome de tuberculina – foi Arthur Conan Doyle. O clínico e escritor não só buscava esclarecimentos para compor um artigo jornalístico, mas também foi averiguar o possível tratamento de sua esposa consuntiva. Pouco depois, Doyle publicou na londrina <i>Review of Reviews</i> um artigo entusiasmado, exaltando a figura do “domador da Peste Branca” e sua nova descoberta (Dubos, 1952:104).</p> <p>O fracasso terapêutico da substância produzida por Koch foi retumbante. Apesar do grande número de enfermos que receberam sucessivas aplicações da tuberculina, nenhum dos pacientes conseguiu a melhora desejada. Koch, que havia sido alçado à categoria de herói da modernidade médica e que chegou mesmo a ofuscar a figura de Pasteur, transformou-se em pouco tempo em vilão da história científica, pecha que nem mesmo o prêmio Nobel que lhe foi concedido em 1904 conseguiu minimizar.</p> <p>Dos últimos anos do século passado até a descoberta do primeiro quimioterápico específico e eficiente para o tratamento da tuberculose, tornaram-se ainda mais freqüentes as notícias do advento de drogas curativas da tísica. Muitas vezes o próprio meio acadêmico se encarregou de veicular sensacionalistas informações sobre o assunto.</p> <p>Cita-se como exemplo um livro publicado em 1899, de autoria do professor Albert Landerer, no qual era garantida a cicatrização das cavernas pulmonares mediante aplicações de ácido cinâmico, apresentando-se como prova da eficiência do medicamento uma relação detalhada de centenas de casos clínicos cujo desfecho era a cura total da consunção. Três anos depois, foi a vez do Dr. Friedmann anunciar a existência de uma vacina restauradora da saúde dos infectados, baseada em toxinas atenuadas e extraídas de tartarugas infectadas (Isaacson, 1929).</p> <p>As promessas de ‘curas assombrosas’ multiplicavam-se, sendo que, no contexto europeu, os clínicos espanhóis ganharam fama pelo número de vacinas apresentadas como curadoras da enfermidade pulmonar. O microbiologista Jaime Ferrán produziu uma vacina tendo como base um conjunto de germes que ele denominou genericamente bactérias alfa e com isto atraiu uma legião de enfermos para o seu sanatório, em Santander.</p> <p>Em continuidade, o Instituto Ravetllat-Pla, sediado na cidade de Barcelona, talvez tenha sido a organização que mais insistentemente propagandeou o valor curativo de suas drogas. Este Instituto fazia publicar anualmente extensos volumes compostos de depoimentos de tisiologistas e de antigos pectários que prometiam a ‘cura radical’ da doença do peito, mediante o emprego de “hemo-antitoxinas e soros Ravetllat-Pla” (Cendrero, 1942). Por fim, as promessas se somavam, revelando-se como meras ilusões que motivavam os condenados à morte lenta a nutrir esperanças e consumir tudo o que lhes era oferecido a preço de ouro.</p> <p>Afastando-se da regra, algumas outras associações buscavam fugir das promessas fáceis e sedutoras. Nos últimos anos do século XIX, a unidade parisiense do Instituto Pasteur estabeleceu uma linha de pesquisas vocacionada à obtenção de uma droga para combater a tísica, sob a responsabilidade de Ilya Metchnikoff, um cientista russo que havia ganho fama na área da imunologia.</p> <p>O Dr. Metchnikoff orientou suas pesquisas à busca de uma ‘brecha’ na formidável resistência do bacilo de Koch que, pelo revestimento ceroso, mostrava-se imune a qualquer substância que não ameaçasse igualmente a vida do hospedeiro. Os esforços do Instituto Pasteur, entretanto, pouco surtiram efeito, sendo as pesquisas interrompidas em 1916, ano em que ocorreu a morte do médico russo (Sokoloff, 1946).</p> <p>A tentativa que maior êxito obteve no combate à consunção resultou na criação da vacina BCG, obtida experimentalmente em 1906 e inoculada em crianças e adolescentes a partir da década de 20. Entretanto, a droga – cuja denominação é composta pelas iniciais que designam o bacilo biliado preparado pelos franceses Calmette e Guérin – sofreu forte resistência pública.</p> <p>Primeiramente, a imprensa encarregou-se de distorcer as propriedades da vacina, anunciando-a como curativa da fimatose e não como simples solução preventiva, composta de bacilos atenuados de tuberculose bovina. Em seguida, a aplicação do preparado em cerca de 272 crianças da cidade de Lübeck provocou um terrível acidente que comprometeu os esforços de combate à tuberculose. Isto porque as culturas microbianas não tinham sido convenientemente atenuadas, resultando na infecção ou morte de pelo menos metade das crianças pretensamente imunizadas. Em conseqüência, uma campanha mundial foi ativada contra a BCG, fato que adiou por alguns anos o emprego disseminado da substância protetora (Calmette, 1927; Bernard, 1939).</p> <p>A impotência medicamentosa no tratamento dos consuntivos impôs como solução paliativa o dimensionamento clínico do regime dietético, do descanso e da climatoterapia. Fórmulas antigas, registradas desde a aurora das civilizações ganharam redobrado foro de socorro ideal aos enfraquecidos do peito.</p> <p>Se no início do século XIX ainda prevalecia a orientação segundo a qual os ambientes praiano e campestre ou mesmo a reclusão em quartos fechados constituíam-se nos espaços apropriados para o tratamento dos tributários da Peste Branca, a partir de meados daquela centúria, a medicina germânica tornou-se propulsora do movimento que atestava ser as regiões montanhosas e de clima frio o contexto ideal para o tratamento dos infectados e dos fracos do peito, inaugurando a era sanatorial de isolamento dos pectários.</p> <p>Na abertura do século XX, a medicina alicerçada no método experimental de Claude Bernard e na teoria microbiana de Louis Pasteur havia construído novas explicações sobre a tuberculose e seus mecanismos de infecção. No mesmo período, as propostas curativas da moléstia pulmonar multiplicavam-se em número, sem contudo chegar a uma fórmula eficiente, capaz de limitar o território da tuberculose.</p> <p>O defasamento entre o acúmulo de conhecimentos fisiopatológicos ‘modernos’ e a fragilidade das respostas terapêuticas motivadas pela tísica impuseram uma dinâmica própria às ações sanitárias e aos comportamentos sociais, colocando em destaque não só a doença como objeto de indagações científicas, mas também a imagem historicamente construída dos tributários da Peste Branca.</p> </div> </div> </body> </html>