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A trajetória das imagens

As definições decorrentes da anatomopatologia e da bacteriologia permitiram a elaboração de um modelo ontológico explicador da tuberculose como fenômeno biológico. A identificação do germe disseminador da tísica encontrou continuidade lógica no reconhecimento das fontes de contágio e dos processos destrutivos que atingiam os tecidos e os órgãos. Em decorrência, o acúmulo de noções acerca da Peste Branca atuou como recurso orientador não só das práticas médicas, mas também dos limites da convivência entre os sadios e os contaminados, especialmente nos terrenos marcados pela concentração populacional.

As avaliações dos comportamentos públicos e privados daqueles que transpuseram as fronteiras da saúde alimentaram infinitos debates, favorecendo as discussões promovidas pela medicina, pela literatura e por variadas instituições sociais. Nesse processo, os doentes foram analisados genericamente por Comte e por seus discípulos como indivíduos que haviam enfermado porque de algum modo colocaram-se contra as regras garantidoras do bom funcionamento social. A partir disso, coube ao positivismo conferir validade científica ao milenar pressuposto segundo o qual as moléstias se abatiam sobre aqueles que reagiam negativamente ao ordenamento imposto, aproximando as doenças físicas e psíquicas do conjunto de ‘patologias sociais’ que colocavam em risco a sociedade urbano-industrial.

A busca do entendimento da Peste Branca e dos fimatosos, neste enquadramento, suscitou a cristalização de uma multiplicidade de representações sobre o doente do peito. Em continuidade, a ‘moléstia misteriosa’ e os tísicos tornaram-se objeto de uma série de tratamentos metafóricos que resultaram na percepção da vida infectada como sinistro espelho dos desregramentos e perversões promovidas pela existência grupal, especialmente após as Revoluções Burguesas.

As raízes das imagens

O século XIX foi o momento privilegiado na articulação e divulgação das mensagens que buscavam retratar, em minúcias, o comportamento atribuído aos consuntivos. No entanto, torna-se necessário recordar que, desde a Antigüidade, os fimatosos eram alvos de explicações que apontavam para o caráter distintivo da doença do peito. Entre os hebreus, a presença da tuberculose foi anotada como punição divina aos infratores dos mandamentos religiosos. A advertência de que a enfermidade se constituía em castigo sagrado imposto aos pecadores encontra-se registrada no Velho Testamento, nos Livros do Deuteronômio e no do Levítico. Os infiéis foram ameaçados com a ‘tísica e a febre’, sendo que Moisés advertiu que todos aqueles que rejeitassem os estatutos de Israel seriam assolados pelos males que “consumam os olhos e atormentam a alma” (Bíblia Sagrada, 1974:134).

Mesmo buscando estabelecer explicações naturais para a ocorrência e o desenvolvimento do ciclo patológico, os gregos também não fugiram da dimensão enigmática emprestada aos indivíduos com os pulmões comprometidos. A composição hipocrática da spes phthisica associou averiguações do quadro clínico da moléstia com notas sobre a pretensa conduta peculiar dos fimatosos que, diferenciados das vítimas das demais enfermidades, foram caracterizados como exageradamente egoístas, excessivamente crédulos na rápida recuperação da saúde e laboriosos em um grau incompatível com o estado doentio (Dubos, 1952).

O ambiente medieval, dado o caráter espiritual em voga, contextualizou as concepções bíblicas referentes à tuberculose. A consunção foi apresentada não só como punição aos ímpios, mas também como moléstia que se abatia sobre os puros de alma, para anunciar a fragilidade da carne e a necessidade de contínuo aperfeiçoamento da existência espiritual.

Na etapa da modernidade clássica, as primeiras hipóteses sobre a possibilidade contagiosa da doença contou com aceitação limitada, circunscrita a apenas algumas áreas do sul da Europa. Enquanto a maior parte do continente acomodava-se na idéia segundo a qual a tísica era uma patologia hereditária ou decorrente da inflamação dos tecidos pulmonares, algumas cidades italianas foram em sentido contrário, gerando regimentos que adotavam o princípio infectante da tuberculose.

Desde o ano de 1699, a República de Luca passou a cobrar notificação oficial de todos os fimatosos em tratamento médico, exigindo também que os prédios onde ocorressem óbitos pela enfermidade pulmonar fossem prontamente purificados por meio da caiação das paredes e da queima de enxofre e de ervas odoríficas. Meio século depois, o Grão-Ducado da Toscana determinou novas exigências, publicando um edito que proibia a venda ou doação dos pertences dos infectados, sem que antes os bens passassem por diversas fervuras despoluidoras, medida que nos anos seguintes foi imitada pelos Estados ibéricos.

Em conseqüência destas disposições, os consuntivos receberam na Itália um tratamento diferenciador, sendo que, no ano de 1782, o reino de Nápoles patrocinou a instalação do primeiro hospital destinado exclusivamente aos doentes pulmonares, localizado na região praiana. A existência do nosocômio especializado permitiu que novas leis fossem estabelecidas, inclusive uma que punia com multa e expulsão do reino todos os enfermos que não aceitassem o isolamento hospitalar.

A modernização das representações

A partir dos últimos anos do século XVIII, os escritores românticos adotaram a consunção e seus tributários como tema recorrente, sendo raras as novelas, as poesias e as pinturas que deixaram de incorporar os fracos do peito em suas descrições, mesmo que incidentalmente. Os discípulos de Goethe, Chateaubriand e Byron convergiram para a imitação de seus ‘mestres’, fazendo proliferar uma multidão de personagens aflitos e doentios, todos eles guardando semelhança próxima com o vulto depauperado e sombrio da espanhola Dona Tadea Arias de Enriquez, modelo inspiradora de uma pintura assinada por Francisco Goya, nos primeiros anos do século XIX.

O predomínio da motivação literária e artística centrada na tísica não pode ser explicado apenas pela alta taxa de disseminação da enfermidade nos terrenos urbanos e de industrialização incipiente, representados no início da centúria passada pelas principais cidades da Inglaterra e da França. É necessário levar em consideração que a Graveyard School – designação que busca aglutinar os autores e artistas românticos – apropriou-se da moléstia para melancolicamente anunciar a angústia existencial que se abatia sobre uma classe de privilegiados que fora ferida de morte no momento que sucedeu à Revolução Francesa.

Com isto, os escritores românticos encontraram na tuberculose um recurso conveniente para negar o mundo concreto e confessar o desencanto da vida social. A ansiedade da busca de um ‘segundo eu’ rimava com a desilusão produzida por uma sociedade envolvida pelos ideais de igualdade dos direitos dos cidadãos, favorecendo as cirurgias introspectivas e de auto-observação. Com isso, o comportamento mórbido e ensimesmado passou a ser concebido como sinônimo de requinte e delicadeza por um grupo infelicitado pela ameaça de decadência na hierarquia social.

Mais ainda, os românticos se deixaram enveredar pela tuberculose porque esta enfermidade se apresentava historicamente marcada por uma aura que passou a ser concebida como enobrecedora. Definida como ‘febre das almas sensíveis’, a consunção foi abraçada pelos textos literários como argumento exaltador dos dotes de uma larga parcela da elite intelectual. O mal dos pulmões foi assumido como cabal comprovação da sensibilidade e da genialidade que dirigia a existência individual e permitia a composição dos escritos românticos. A febre dos corpos confundia-se com o fogo das paixões e a exacerbação dos desejos, sendo que o próprio Laennec incriminou as aventuras amorosas intensas ao mesmo tempo como produto e conseqüência do processo tísico (Hillemand & Gilbrain 1980).

A literatura da primeira metade do século XIX, por isso, afastou-se silenciosamente do padecimento que se abatia sobre os fimatosos pobres que se aglomeravam nos cortiços e nas fábricas e que encontravam a morte nos becos das grandes cidades ou nas enfermarias coletivas. Ausentes dos cenários da miséria, os poetas e escritores românticos conferiram à tuberculose o mágico poder de redefinição positiva da vida. Com isso, a moléstia foi confinada a uma dimensão mítica da trajetória individual, cobrando lágrimas compadecidas e solidárias de uma sociedade que, de regra, não acreditava no fatídico contágio.

Neste encaminhamento, a literatura romântica diferenciou-se dos textos que a precederam. Isto ocorreu porque, nos momentos anteriores, as moléstias eram geralmente registradas literariamente apenas por meio de personagens senis, excetuando-se os escritos tematizados pelas quadras pestíferas. A consunção permitiu que a febre, a fraqueza, a hemoptise, o delírio e a morte fossem materializados em existências jovens, bastando uma contrariedade qualquer para condenar os corpos juvenis à extinção. Refletindo este posicionamento, em 1826, Shelley explicou a doença e a morte de seu amigo e também poeta John Keats como resultado das duras críticas que este recebeu pela publicação de um novo livro de versos. Imediatamente, o escritor ofendido foi vitimado por sucessivas crises de hemoptise que em poucos dias o levaram à morte (Dubos, 1952).

A família Brontë constituiu-se no modelo ideal de padecimento físico e sentimental que alimentava o paradigma romântico. A persistência avassaladora da tuberculose no clã foi não só entendida como a confirmação da hereditariedade da doença, mas também como elemento explicativo da genialidade que orientava as composições de Emily e Charlotte (1939). Nas páginas de Wuthering Heights, a patologia desponta como marca consagradora da pureza dos espíritos que aceitaram o fim doloroso com um orgulho que surpreende, pois a ‘bela morte’ produzida pela tísica conferia o poder libertador das angústias terrenas.

As observações registradas sobre os personagens que tinham os pulmões arruinados se avolumavam, compondo perfis mórbidos sensíveis aos olhos românticos. A genialidade e o afã por realizações eram explicadas como resultados do avanço da tuberculose, cuja febre se expandia e impregnava a vida adoentada, produzindo agilidade das idéias e bons frutos no trabalho intelectual exagerado.

Na verdade, o que garantia o caráter excessivo nas ações cotidianas pode ser equacionado não só como fruto da percepção da brevidade da existência ameaçada pela peste, mas sobretudo como resultado do uso desmedido de opiáceos, base de muitos remédios indicados pela medicina do século passado. O láudano era aconselhado como medicamento adequado para o combate à tosse, ao cansaço, à dor e à diarréia que atormentavam os pectários. Por isso, muitos enfermos tornaram-se dependentes da droga que, além de agir como excitante, conduz à efervescência mental e à liberação do inconsciente, fenômenos que eram atribuídos unicamente ao processo patológico.

A beleza e a sensualidade feminina também eram articuladas ao estado consuntivo. A tez pálida, os olhos lacrimejantes, as faces rosadas e a rouquidão da voz davam destaque aos corpos lânguidos, à alvura dos dentes e à tonalidade dos cabelos, tornando os ‘anjos tísicos’ modelos da estética feminina cultuada pelos românticos, sendo que as mulheres que correspondessem a este perfil eram situadas como objetos máximos dos desejos masculinos. A ‘desmaterialização corporal’ reconhecida nas fimatosas ensejou a elaboração de uma anatomia erótica que analisava meticulosamente o corpo feminino: cabelos, busto, mãos, pés, unhas, tudo enfim era avaliado em minúcias e registrado como sedutoramente belo e cobiçado.

A moda da vestimenta contribuía ainda mais para exponenciar o etéreo e o sensual, ganhando aceitação os tecidos leves, transparentes e esvoaçantes. No ano de 1832, Barbey D’Aurevilly sintetizou exemplarmente algumas destas percepções ao retratar os encantos da tuberculosa Léa que, segundo os olhos de seu enamorado, era “a mais bela das criaturas” (D’Aurevilly, 1832: 49) porque apresentava olheiras profundas, rosto pálido e um corpo abatido que agitava-se sensual e freneticamente.

Nem mesmo as crianças tuberculosas deixaram de receber um tratamento sensualizado pela pena romântica. No livro A Cabana do Pai Tomás, a pequena Evangelina foi retratada como “a mais bela de todas as crianças” (Stowe, 1962: 52), sendo que durante o desenrolar da trama são freqüentes as observações que avaliam positivamente todo o corpo infantil.

Filha de pai pectário e de mãe afetada no comportamento mental, Evangelina nutria um indescritível horror pelo sistema escravista, sentimento que se ampliou com a evolução da doença que a consumia. Morta, as considerações tecidas sobre a pequena tuberculosa não deixaram de exaltar a profunda sensibilidade da falecida, acrescentando-se uma frase que sintetiza eficazmente a percepção ultra-romântica sobre os fracos do peito: “não nasceu para viver aqui, na terra” (Stowe, 1962:52).

O padrão físico e a sensibilidade apurada que foram imputados às mulheres pectárias também ganharam sentido no semblante masculino. Fréderic Chopin talvez tenha sido o tuberculoso cuja imagem doentia foi a mais invocada pelos românticos. Seu amigo e rival Franz Liszt descreveu-o segundo o modelo de beleza do tempo, anotando a transparência de sua cútis, o encanto do seu cabelo e a distinção de seu porte frágil de consuntivo.

Tudo isto excitava a cobiça feminina: George Sand (1947) confidenciou que Chopin era um “homem irresistível” e “divinamente delicado”, enquanto um amigo do compositor dizia que “ele vira a cabeça de todas as mulheres e provoca ciúmes em todos os maridos”. O encanto do fimatoso polonês ganhou maior sentido ainda pela inconstância de seu temperamento. “Não há nada de permanente nele a não ser sua tosse”, pontificava George Sand que, apaixonada, entendia que a moléstia ampliava a genialidade do companheiro. Isto porque a escritora associava a tísica às súbitas transformações do “estado de alma” do músico, ocasiões que, segundo ela, Chopin compunha partituras de incomparável qualidade artística.

A aparência e o comportamento considerados próprios dos tuberculosos transformaram-se em regra existencial que vigeu durante o período mediado pela Revolução Francesa e pelo Segundo Império. Assumida como código de vida, a atitude atribuída aos fimatosos exigia que todos se alimentassem parcamente e se vestissem com trajes que sugeriam o estado mórbido do corpo e o padecimento do espírito.

Os esforços para ganhar a aparência consuntiva eram intensos, pois o semblante doentio atraía atenções e despertava fantasias, abrindo chances para o sucesso artístico. Nas Scènes de la Vie de Bohème, Henry Murger (1936) colocou na boca de um pianista que atuava em bares suspeitos palavras de glorificação à condição tuberculosa, anunciando a infecção como produtora de uma sensibilidade exaltada cujo fim último era o sucesso artístico e intelectual do tísico.

Esta obra murgeriana, datada de 1851, define a consunção como resultado da vida desregrada da boêmia, localizando a moléstia e suas vítimas em um grupo de indivíduos que desfrutava de um padrão econômico e social que em nada se assemelhava com o da elite tuberculosa retratada pela literatura das décadas anteriores. Com isso, desde o ‘ciclo revolucionário de 1848’, deu-se início à revisão da imagem imputada aos tísicos que, mantendo-se fiel aos clichês explorados pelo romantismo, passou a exibir esquemas condenadores da trajetória de vida e dos comportamentos atribuídos aos afetados do peito.

Os novos posicionamentos sociais e sanitários que foram esboçados naquele momento cumpriam o papel negador da boêmia e da tuberculose como marcas da camada culta e elegante, reconhecendo a consunção como enfermidade própria da população pobre e marginalizada. A partir de então, a tuberculose foi associada à miséria que dizimava o lumpemproletariado e os trabalhadores industriais, enfim, toda uma legião de injustiçados que Friedrich Engels analisou segundo a perspectiva sociológica em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra e que Victor Hugo dramatizou por meio da criação literária em Os Miseráveis.

Os motivos que permitiram a alteração dos posicionamentos coletivos sobre os pectários são pouco claros, mas pode-se pensar que neste período os casos de tísica tornaram-se bem menos freqüentes nos círculos burgueses da Europa. As taxas de mortalidade pela moléstia apontam uma significativa queda, pois, se no ano de 1838 a tuberculose cobrou 4 vidas em cada mil britânicos, tal índice caiu para 2,7 em 1860 e para 1,3 na virada de século.

A pouca eficiência dos recursos médico-terapêuticos disponíveis há 150 anos faz com que algumas explicações sejam tentadas para justificar o decréscimo relativo de óbitos e possivelmente da mortalidade produzida pela tísica: o afastamento dos infectados dos núcleos urbanos maiores, a eventual mutação da estrutura bioquímica do agente causal e a redução do número médio de componentes da família inglesa são elementos analisados pelos estudiosos, mas que pouco têm contribuído para o entendimento do fenômeno.

A hipótese que atualmente se aventa com maior intensidade – apesar de também não ser conclusiva – aponta para o aumento da resistência orgânica individual como evento limitador da legião de infectados. Isto porque houve seguidas melhorias nas condições materiais de vida dos agrupamentos proletários da Inglaterra, principalmente após a organização de uma vasta rede distribuidora de gêneros alimentícios, fato que implicou o rebaixamento dos preços e, por óbvio, no maior consumo de alimentos pelas camadas de trabalhadores urbanos (McKeown, 1977 e 1990).

Sob nova circunstância, elaboravam-se padrões inéditos para o século XIX: a saúde e a abundância de gorduras transformaram-se em moda e culto. O casal coroado britânico tornou-se o novo paradigma de corpo e de moralidade que foi reproduzido nos lares burgueses da Europa da segunda parte da centúria. A rainha Vitória e seu consorte Alberto eram corpulentos, e nos momentos de apresentação pública, mostravam-se alegres, ágeis, enérgicos e moralmente equilibrados.

À saúde do corpo e do espírito somava-se o gosto pela fartura de alimentação pesada, não faltando na mesa real uma grande variedade de peixes, guisados e assados, além de inúmeras sobremesas e vinhos. Refletindo a nova proposta, Jean Renoir e Édouard Manet, dentre outros, serviram-se de modelos robustos, até mesmo beirando a obesidade, para retratar as novas concepções estéticas e clínicas preconizadas naquele período.

Em continuidade, a medicina pública buscou enquadrar a tísica no conjunto de ‘moléstias sociais’, definindo-a como Peste Branca e com isto fazendo lembrar as taxas alarmantes de morbidade e de mortalidade produzidas pela doença no contexto das camadas mais pobres da população.

Complementando a proposta clínica, os higienistas compuseram novas estratégias de intervenção no cotidiano coletivo, sem no entanto abandonar os pressupostos fantasiosos que pairavam sobre o comportamento infectado. Neste contexto, definiu-se o julgamento moral dos fimatosos, tornando a vida privada dos enfermos um espetáculo que atraía o interesse coletivo. A literatura, associada à medicina, continuou a ocupar páginas e mais páginas para revelar a intimidade dos pectários que, segundo a tessitura murgeriana, caracterizavam-se psicologicamente pelo amálgama de “sentimentos maldosos e instintos ferozes” (Murger, 1936:170-171).

Ainda no momento inaugural desta nova etapa de verificação da vida consuntiva, outro enredo de tendência ficcional que ganhou ampla aceitação foi A Dama das Camélias, de Dumas Filho (1977). Isto se deveu ao fato da obra ter reunido todos os estereótipos organizados em torno do personagem tuberculoso, especulando sobre a trajetória existencial de uma conhecida cortesã francesa, opções que garantiram o sucesso editorial do texto, publicado no ano de 1852.

O impulso inicial para a composição deste romance deveu-se ao encontro do escritor com a cortesã Marie Dupleiss, cujo nome de batismo era Alphonsine Plessis. Alphonsine era uma camponesa da Normandia que, em conseqüência da miséria que assolava a região, assumiu a prostituição como estratégia de sobrevivência. Nessa condição, conheceu e contraiu matrimônio com um inglês de posses, porém, enviuvou em pouco tempo. Endinheirada, Marie Dupleiss rumou para a capital dos franceses, onde passou a levar uma vida faustosa, ganhando destaque no ambiente metropolitano e tornando-se presença obrigatória nas reuniões sociais que agitavam o cenário parisiense.

Já diagnosticada como consuntiva, Mme. Dupleiss conheceu Dumas Filho, mantendo um consórcio amoroso que se estendeu por alguns meses. Rompido o relacionamento, o escritor retirou-se para a Espanha, enquanto a amante permaneceu na ‘cidade-mãe do escândalo’, onde faleceu em 1847, aos 23 anos de idade. O velório, assim como o leilão dos bens deixados pela morta, constituíram-se em acontecimentos sociais concorridíssimos, impressionando o viajante Charles Dickens que registrou a emoção despertada pelos eventos, os quais o fizeram concluir que a Dama das Camélias era uma espécie de heroína nacional, comparável a Joana D’Arc.

De regresso a Paris, Dumas Filho soube do óbito de sua ex-companheira, escrevendo o livro que anunciava tratar de uma ‘história verdadeira’, testemunho de uma geração na qual a ‘ciência do bem e do mal’ estava definitivamente consolidada. Para alcançar estes objetivos, o autor tingiu a figura da pectária Marguerite Gauthier com as cores de uma mulher bela, sedutora e voluptuosa que, pela vida de orgias, tornou-se escrava da doença do peito.

Apaixonada pelo ingênuo Armand, nem mesmo as tentativas de recuperação física e moral patrocinadas pelo amante surtiram os efeitos desejados. A reclusão no território campestre e o descanso prolongado foram inúteis, pois a enfermidade progredia e a ‘febre de desejos’ conduziu a pectária novamente a Paris. Ali, Mme. Gauthier foi rejeitada pelos seus antigos companheiros de ‘devassidão’, pois os novos comportamentos instruíam que ‘no seu mundo não há amigos se não houver saúde’.

No território da literatura, pela primeira vez aflorava o repúdio declarado ao tuberculoso, o que fazia deste um ser desprezado e que por isso deveria empenhar-se na recuperação da saúde, como em certo momento confidenciou a Dama das Camélias:

Voltei para casa às quatro horas, jantei com bastante apetite. Essa saída fez-me bem. E se eu me curasse? Como o aspecto da vida e da felicidade dos outros faz desejar viver aqueles que, na véspera, na solidão de sua alma e na sombra de seu quarto de doentes, desejavam morrer depressa. (Dumas Filho, 1977:201)

A esperança de restabelecimento da saúde foi apenas um sonho para a cortesã arrependida. A corrupção do corpo seria o castigo para a vida dissipada. A morte da enferma foi despojada de qualquer aura redentora, para ser revelada como algo sombrio, aterrorizador, até mesmo repugnante: “Os olhos eram apenas dois buracos, os lábios tinham desaparecido e os dentes brancos cerravam-se uns contra os outros. Os longos cabelos negros e secos estavam colados às temporas e velavam em parte as cavidades verdes das faces” (1977:42).

Os medos despertados pela enfermidade e a adequação da tísica como doença dos miseráveis faziam com que a elite negasse a presença da moléstia em seu meio social. Quando a mortal enfermidade invadia os lares burgueses, o fato era protegido pelo absoluto sigilo familiar, sendo raros os infectados que viam alguma positividade na experiência de vida com a tuberculose.

Em 1882, enquanto Robert Koch exigia segredo absoluto sobre a sua condição pectária, a jovem pintora Marie Bashkirtseff (1943:326) desviava-se da regra, confidenciando em seu Diário: “esta posição de condenada, ou cousa que o valha, diverte-me (...) há nisto um certo encanto. É antes de tudo, uma novidade”.

A partir da segunda metade do século XIX, as celebrações byronianas perderam força, permitindo que a doença dos pulmões fosse assumida como experiência com sentido único: a degradação do enfermo.

Para clarear este novo posicionamento, os irmãos Edmond e Jules Goncourt (1982) fizeram-se alunos da faculdade de medicina de Paris para ganhar conhecimentos que resultaram no romance Madame Gervaisais, lançado a público em 1869.

Empenhados na composição de uma ‘sociologia dos tísicos’, os escritores abraçaram as teorias clínicas vigentes, conferindo-lhes lastro por meio da observação demorada de uma série de fimatosos isolados tanto nas enfermarias hospitalares quanto no recinto doméstico. Como resultado, surgiu uma obra que beira o registro biográfico, pois declaradamente inspirada no curso da vida da infectada Nephtalie de Courmont, tia dos irmãos Goncourt.

A descrição dos efeitos nefastos da tuberculose sobre o corpo e a personalidade de Mme. Gervaisais é intensa e assustadora, ocupando quase que o total das páginas do texto goncourtiano. Transferindo-se de Paris para Roma, a consuntiva foi pouco a pouco sendo despojada da beleza corporal, tornando-se uma mulher abatida e feia.

Os ‘efeitos morais’ da moléstia que a consumia eram múltiplos: anti-clerical, assumiu a vida mística e dependente de uma relação sado-masoquista com diversos pregadores jesuítas; pudorosa, revelou-se facilmente excitável no sexo, até mesmo com o nu das estátuas expostas nos museus e, mãe sempre devotada, abandonou o próprio filho, entregando-se a um egoísmo desmesurado, renunciando às relações sociais e à riqueza herdada do esposo.

O definhamento físico e a ruína moral da pectária foram explicadas pelos Goncourt como resultado da ação destrutiva promovida pela consunção. As dificuldades respiratórias, segundo os escritores, causavam uma semi-asfixia que intoxicava os pulmões e afetava o funcionamento do cérebro que, impedido de funcionar plenamente, gerava excitação sexual e ‘loucura religiosa’. Em continuidade, os estragos cerebrais condenaram a consuntiva, que contava com 40 anos de idade, a voltar a um estado mental infantil, fazendo-a comportar-se como uma criança de 12 anos.

As teses animadoras da trama assinada pelos Goncourt revelam a transposição para a literatura do ideário que a comunidade médica européia vinha articulando sobre o comportamento fimatoso, conferindo a Madame Gervaisais a dupla função de instrumento justificador e ao mesmo tempo popularizador dos enunciados clínicos. Nesta circunstância, a medicina ensinava que o tuberculoso era um tipo limite de vida, defendendo a condição pervertida dos doentes do peito.

A transparência da pele, a ausência de pilosidade, o surgimento de mamilos pronunciados nos homens e a inversão sexual feminina foram alguns outros elementos registrados nas conclusões das pesquisas especializadas, remetendo os contaminados para o território das ambigüidades onde o masculino e o feminino, o adulto e o infantil, o ingênuo e o perverso, enfim, onde todos os opostos se combinavam diabolicamente, resultando na nova e assustadora imagem ajustada aos personagens consuntivos (Grellet, 1983).

O caráter enigmático emprestado aos tuberculosos orientava os ensinamentos médicos e os devaneios ficcionais. Tanto uns quanto outros deixaram-se fascinar pelas pretensas aberrações perpetradas pelos tísicos, exigindo que facultativos e escritores se lançassem vorazmente na exploração das perversidades dos contaminados, dando especial ênfase ao comportamento sexual dos enfraquecidos do peito.

Perseguindo este intento, o Dr. Fonssagrives (1880) reuniu a autoridade docente da escola médica de Montpellier com o prestígio de autor de inúmeras obras fundamentadoras da medicina pulmonar para estender-se na observação das atitudes sexuais dos fimatosos. Ao prescrever a necessidade de rígida “higiene moral” dos adoentados, o clínico acrescentou que os tísicos, por se sentirem próximos da morte, apresentam um exagerado “apetite genésico”, cabendo aos clínicos inibir tal tendência por meio de medicamentos e dietas especiais.

A alegada anormalidade venérea dos tísicos assegurou a existência de toda uma vertente literária que garantia o sucesso de venda de livros na exploração dos comportamentos sexuais condenados pela moral vitoriana. A escritora que se ocultava sob o pseudônimo de Jane de la Vaudère (s.d.) foi uma das autoras que assumiu o tema, produzindo ‘composições eróticas’ povoadas de personagens tuberculosos homossexuais e sodomitas. Em um de seus livros, a trama se encerra com uma libertina infectada esvaindo-se em hemoptise, mas mesmo assim reservando seus últimos instantes de vida para presenciar e bendizer o coito anal de um casal que adotou como discípulos e que, pela licenciosidade do ato praticado, foi presenteado com todos os bens acumulados pela valetudinária.

A consunção e seus tributários transformaram-se na grande metáfora de tudo o que era considerado ameaçador, horripilante, nojento. Exemplo disto é uma série de livros publicada em Portugal no início do século passado e que tinha como título geral Tuberculose Social, onde, no décimo volume da coleção, o autor combateu a obrigatoriedade do celibato sacerdotal. Neste ensaio declaradamente anarquista e portanto anti-clerical, os estigmas sobre os pectários não foram colocados de lado, sendo que o enredo da obra constitui-se na história de um padre infectado que se deixou dominar pelos seus impulsos exageradamente eróticos, pervertendo e contaminando várias de suas inocentes fiéis (Gallis, 1903).

O tempo das viagens

Rejeitados pelo mundo dos sadios e atormentados pela doença que corrói, muitos tuberculosos acomodaram-se às prescrições médicas, rumando para longas e sucessivas viagens que prometiam a recuperação da saúde. Desde os fins do século XVIII, os clínicos passaram a reiterar com insistência a necessidade dos pectários mudarem de ares, indicando os climas quentes da Europa meridional como propícios para o tratamento dos pulmões, acompanhando de perto as instruções preconizadas pela medicina greco-romana.

No lado ocidental do continente, regiões que há muito vinham sendo visitadas pelos fimatosos consistiam no extremo sul da Península Ibérica, nas ilhas Baleares e nas praias banhadas pelo mar Tirreno. A constância das peregrinações de consuntivos para estas áreas fomentou o repúdio aos doentes com os pulmões corroídos, tornando os locais de cura pioneiros na elaboração de códigos sanitários que limitavam a liberdade dos contaminados.

Quando Chopin teve a sua saúde pulmonar comprometida, os médicos lhe recomendaram o afastamento do inverno rigoroso, prescrevendo uma temporada na ilha de Majorca, convenientemente situada a pouca distância do continente europeu e protegida pelo clima mediterrânico. Por isto, em 1839, George Sand conduziu o compositor para a ‘ilha encantada’, apostando na melhora da saúde do seu companheiro.

Entretanto, a estada em Valdemosa revelou-se constrangedora, fazendo com que tudo se tornasse difícil, desde a compra de leite de cabra até a locação de um imóvel minimamente confortável, pois os majorquinos nutriam verdadeiro horror aos visitantes infectados. Como Chopin piorasse da saúde, o regresso à França tornou-se medida urgente, situação que uma vez mais denunciou a intensidade da aceitação da teoria contagionista pelos ibéricos. O transporte do enfermo até a cidade de Barcelona foi oneroso, inclusive porque George Sand foi obrigada a cobrir os custos da cama ocupada pelo músico, pois logo depois de usado, o leito foi lançado à fogueira, como medida preventiva (Sand, 1984).

O fato dos ilhéus acreditarem no perigo contagioso foi julgado pela escritora como fruto da superstição típica de um ‘povo bárbaro’. Entretanto, o repúdio aos doentes pulmonares foi observado inclusive em Nápoles, quando o compositor tísico Nicolò Paganini foi severamente perseguido pelas autoridades, ao tentar estabelecer residência naquela cidade . Em Roma, René de Chateaubriand também registrou a mesma situação, pois ao se encarregar da venda dos móveis utilizados por uma amiga tuberculosa, não encontrou comprador, sendo obrigado a queimar a maior parte das peças, por ordem da milícia local (Grellet, 1983).

O temor inspirado pela moléstia ganhou novos espaços, limitando a ‘febre do judeu errante’ que animava a constante troca de moradia pelos personagens fimatosos. Mesmo assim, nos Estados Unidos, muitos dos pioneiros que no decorrer do século XIX desempenharam a tarefa de expansão das fronteiras americanas, eram tísicos que procuravam territórios apropriados para o tratamento da saúde. As regiões do Colorado, Utah, Texas, Novo México, Arizona, Kansas, Nevada, Oklahoma e Califórnia foram áreas de concentração de infectados, sendo que a cidade de Los Angeles foi designada como a ‘capital nacional dos consuntivos’, por volta de 1880.

Espelhando as mudanças das atitudes coletivas em relação aos tuberculosos, no término do século XIX tomou corpo um movimento que visava à aprovação de uma lei que exigiria que todos os cidadãos norte-americanos contaminados pela doença utilizassem um sino pendurado no pescoço, para assim alertar os sadios sobre o estado deteriorado de seus pulmões (Jones, 1967).

A força da tradição incitava os fimatosos a empreenderem sucessivas viagens, apesar do surgimento de leis sanitárias que tentavam inibir o trânsito dos tuberculosos. No século XX, as informações registradas nas correspondências e diários dos tísicos Katherine Mansfield e Franz Kafka, e em seus respectivos diários, denunciam a rejeição ao isolamento por parte dos enfermos, que, em continuidade, preferiam buscar tratamento da saúde em variados pontos da Europa, residindo em pensões e hotéis baratos. Persistia também o fascínio pelos longos períodos de retiro nas costas do Mediterrâneo, sendo que Monte Carlo, Mônaco e a Riviera Francesa se constituíram nos últimos redutos de liberdade dos infectados que dispunham de algum amparo econômico.

Um dos exemplos mais extremados da ânsia de recuperar a saúde por meio de contínuas mudanças de ambiente geográfico é encontrado na trajetória da vida tuberculosa do poeta António Nobre (1982). Diagnosticada a infecção no ano de 1894, o autor de Só abandonou Portugal para buscar socorro clínico na Suíça, alternando períodos de tratamento em Davos-Platz e Clavadel.

Receando piora de saúde, o poeta sonhou instalar-se nas ilhas Canárias, mas em vez disto, percorreu a Itália e, na seqüência, regressou à Suíça, vivendo alguns meses em Genebra e Lausane. Pouco tempo demorou para o tuberculoso novamente pôr-se em marcha, retornando a Portugal, onde vagou por várias regiões em busca de auxílio econômico, sendo expulso de hotéis que não aceitavam hóspedes consuntivos, perseguindo médicos e charlatães que acenavam com drogas miraculosas, ocultando de quase todos os amigos a verdadeira enfermidade que o minava.

Desencantado, António Nobre novamente desejou viajar, escolhendo a África do Sul como alvo, mas indo para Nova Yorque e, com isto, aproveitando as benesses do “Dr. Oceano (...) o melhor médico do mundo” (Nobre, 1982:197). Porém, a permanência na América do Norte foi breve, rumando o poeta para a ilha da Madeira, onde, pela vez única, sentiu-se melhor, porque em companhia de outros tísicos lusitanos.

Sob a desculpa do rigor do clima insular, o poeta estabeleceu-se novamente na Suíça e de lá partiu para Londres e Paris e, em continuidade, uma vez mais buscou abrigo nos sanatórios e nas pensões suíças. Praticamente abandonado pelos parentes mais próximos, sem dinheiro e desesperançado, Nobre valeu-se de sua pátria como refúgio derradeiro, falecendo logo depois. Corria o ano de 1900 e com ele os ‘males de Anto’ chegaram a termo.

A persistência pela vida em movimento adotada por uma vasta legião de infectados manteve-se ativa mesmo durante a era em que predominou o isolamento hospitalar como forma de tratamento e segregação dos tuberculosos. A consulta a vários guias de viagem revela que os editores destas obras assinalavam meticulosamente as estações de cura, informando os preços cobrados pelos hotéis, pensões e sanatórios que acolhiam enfermos, assim como as farmácias e os médicos dispostos a atender os tísicos. Sob o pretexto de desfrutar férias longe do abrigo doméstico, parece que se tornou comum os infectados ocultarem as temporadas passadas nas estações climatoterápicas, anunciando o retiro como simples período de descanso da agitação metropolitana.

O nascimento dos sanatórios

A era sanatorial de atendimento aos fimatosos abriu-se no ano de 1854, quando o médico tuberculoso Hermann Brehmer inaugurou a primeira instituição especializada no tratamento de pectários, localizada nas montanhas da Silésia. Alguns anos depois, o clínico Peter Dettweiler instalou outra casa de saúde em Falkstein, nas montanhas Taurus, para tratar de si próprio e de outros infectados.

A premissa que orientou Brehmer e Dettweiler para a retomada da antiga proposta de ‘cura nas alturas’ residia na suposição segundo a qual inexistia casos de tísica entre os habitantes das montanhas. Em conseqüência, os médicos alemães concluíram que a tuberculose era resultado da circulação precária do sangue no coração e nos pulmões, sendo que a permanência dos consuntivos nas regiões altas revitalizaria as funções orgânicas em geral e, em especial dos pulmões, viabilizando a cura dos contaminados.

Inicialmente, Brehmer e Dettweiler prescreveram exercícios físicos vigorosos para os seus pacientes, tentando estimular mais ainda o funcionamento do trato respiratório. Mas, pouco tempo depois de instituída, esta orientação teve de ser abandonada, porque os facultativos perceberam que tal prática favorecia a ocorrência de hemoptises, debilitando ainda mais os pacientes pulmonares.

O desdobramento do conhecimento clínico-epidemiológico sobre a tísica associado à disseminação de sanatórios nas regiões de altitude de toda a Europa permitiram que, no final do século XIX, ganhassem força os movimentos oficiais de combate à Peste Branca.

Se a Inglaterra foi o berço da concepção segundo a qual a doença poderia ser limitada por meio da atuação dos dispensários, o modelo germânico chamou mais a atenção, já que o governo alemão dirigiu desde 1892 a instalação de uma rede sanatorial, custeada pelos fundos criados pelos trabalhadores. Em conseqüência, vários países europeus centraram recursos na campanha pela criação de casas de saúde franqueadas ao proletariado, alegando que a tísica fazia grande número de vítimas entre os extratos mais pobres da população. Sob a ameaça de que a própria espécie humana corria risco de extinção pela Peste Branca, médicos e leigos se irmanaram, cobrando urgentes medidas oficiais contra o alastramento da infecção.

Neste contexto, as concepções vigentes desde o final do século passado instruíram entendimentos alarmantes sobre a Peste Branca e suas vítimas. A moléstia expandia-se em definição, concretizando-se ao mesmo tempo como causa e produto dos desarranjos que feriam o tecido coletivo.

O eugenista italiano Attillio Cevidalli, por exemplo, foi um dos intelectuais que, ao estudar os tísicos internados nas prisões e nos hospícios, inverteu a ordem dos fatores, concluindo que a toxina tuberculosa fazia com que os fimatosos agissem contra os valores básicos da sociedade e que, portanto, eram encarcerados nas cadeias e nos manicômios. Prosseguindo em seus ensinamentos, o intelectual italiano ganhou seguidores ao pontificar a urgência do combate à moléstia, explicando que a redução do grupo de infectados – ou o enclausuramento dos pectários – repercutiria no ambiente social, fazendo diminuir o número de atentados contra a ordem pública (Cevidalli, 1928).

As ciências sociais norte-americanas também caminharam nessa mesma linha de raciocínio. Em um dos principais textbooks publicados nas primeiras décadas do século XX, Alfred Queen e Delbert Mann (1925), sociólogos da Universidade de Chicago, faziam coro às idéias de Cevidalli, acrescentando que o indivíduo contraía a infecção pulmonar devido ao desregramento da vida cotidiana – inclusive pela aversão ao trabalho – sendo que a tuberculose apresentava-se como último recurso aos que buscavam fugir de seus compromissos com a sociedade.

A partir destas constatações, a intervenção no problema representado pela Peste Branca tornou-se um ‘dever social’ de todos os cidadãos, favorecendo as críticas aos governos nacionais que se mostravam apáticos frente à ameaça sanitária. Na França, onde a luta contra a moléstia tardou a ganhar impulso, inúmeras foram as vozes que reclamaram contra a inexistência de sanatórios destinados ao atendimento dos contaminados mais carentes. Por isso, no ano de 1902, um médico socialista aconselhava a França a seguir o exemplo germânico, cobrando do Estado e da burguesia a ‘obra patriótica’ de criação de sanatórios populares (Boureilli, 1901).

O resultado destas campanhas ativadas nacionalmente consistiu na criação de uma rede de casas de saúde especializadas no continente europeu. A partir de então, os sanatórios transformaram-se no ambiente próprio dos consuntivos e no espaço constitutivo do saber tisiológico.

Os enfermos, por sua vez, mantinham uma atitude contraditória em relação a estes nosocômios. Espaços organizados para a cura da tuberculose, os sanatórios também representavam a exclusão do cotidiano dos sadios.

Nas primeiras décadas do século XX, Thomas Mann, que acompanhou a esposa tísica durante seguidos internamentos em sanatórios suíços, e Paul Gadene, ele próprio tuberculoso, dentre outros, foram escritores que conviveram intimamente com a moléstia, denunciando os padecimentos dos contaminados isolados nos hospitais das montanhas. Isto porque a concepção segundo a qual os fimatosos eram crivados de vícios produzidos ou pelo menos exponenciados pela ação bacilar, impunha que a clínica administrasse idealisticamente os sanatórios segundo o modelo gerenciador da vida em caserna.

Em nome da preservação da raça, como queria o Dr. Banu (1939), ou da defesa moral, como advogava o Dr. Tartarin (1902), o diretor apropriado de uma casa de saúde era o que tivesse longa experiência como médico militar e o melhor dos pacientes era o soldado tuberculoso, pois um sabia ditar ordens e o outro obedecer rigorosamente as normas impostas pelos seus superiores.

A apologia da robustez física como indício da saúde moral e física, por contraste, situou a magreza corpórea e a fragilidade física como símbolos da doença e do comprometimento moral. A redefinição médica e social do tuberculoso, na segunda metade do século XIX, favoreceu a marginalização do infectado, sinalizando o isolamento sanatorial como destino último dos enfermos do peito. Neste contexto, ganhou aceitação ampla a ‘identidade virtual’ negativa e assustadora atribuída aos tísicos. Tal fenômeno não só permitiu a multiplicação dos tratamentos estigmatizadores impostos aos consuntivos, mas também abriu novas oportunidades para reiteração dos valores e dos comportamentos ‘saudáveis’ que deveriam reger a sociedade moderna.

No encerramento do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a Peste Branca e seus tributários dispunham de explicações biológicas e sociais que, guardando coerência, mostravam-se complementares. Estabeleciam-se assim os meandros possíveis da história dos infectados. Uma história que teve desdobramentos inclusive no contexto brasileiro.