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Administração sanitária e tuberculose no Brasil
A presença da tuberculose no Brasil persiste ainda como tema repleto de dúvidas quanto a sua origem. Os poucos estudiosos que pesquisaram o pretérito sanitário nacional parecem convergir para uma visão paradisíaca sobre o perfil epidemiológico das populações pré-cabralinas, repetindo as observações registradas pelos primeiros visitantes da colônia. A partir disso, a historiografia consagrou a versão de que, antes da chegada dos europeus, os agrupamentos indígenas desfrutavam de saúde perfeita, sendo assolados por raras patologias, todas elas de pouco risco para a vida.
Em continuidade, os médicos Afranio Peixoto, Lourival Ribeiro e Lycurgo Santos Filho, dentre outros, negam a existência da tísica junto às populações primitivas da América e em especial entre as tribos brasileiras, no momento que antecedeu ao contato com os conquistadores brancos. O antropólogo Thales de Azevedo (1941) talvez tenha sido o único pesquisador brasileiro a destoar dessa tendência, lançando dúvidas sobre a inexistência da consunção entre os indígenas no período anterior ao ano de 1500 sem, contudo, chegar a qualquer conclusão mais conseqüente.
A proposta de uma América edênica, entretanto, tem sido contrariada por inúmeros estudiosos estrangeiros. Aristides Moll (1969) defende a tese que coloca a tuberculose como moléstia conhecida pelos autóctones americanos muito antes de 1492, assinalando que os Incas haviam batizado a letal enfermidade com o nome de chaki onkoy. Outro pesquisador, o francês Mirko Grmek (1983), também aponta para a presença da tísica no ‘Novo Mundo’ no período que antecedeu a invasão européia. Com base em dados oferecidos pela paleopatologia, Grmek assinala que a infecção pulmonar apresentava-se como evento corriqueiro nos centros urbanos pré-colombianos, fazendo poucas vítimas nos agrupamentos de tamanho reduzido e que mantinham escassos contatos com as tribos maiores.
O certo, porém, é que a moléstia firmou-se como uma das principais causas de óbitos entre os indígenas a partir do século XVI, fenômeno que sugere a pouca intimidade grupal com o bacilo de Koch. A provável condição de virgin soil para a moléstia consuntiva – isto é, de comunidade cuja história biológica não incluía a tuberculose – fez com que os índios se tornassem vítimas indefesas da Peste Branca, resultando no desaparecimento de inúmeras organizações tribais e, na continuidade, situando a tísica como uma das principais marcas da epidemiologia continental.
No contexto colonial brasileiro, salienta-se que os primeiros sacerdotes que aqui aportaram vieram não só para trabalhar por ‘Deus e Sua Majestade’, mas também para tratar da saúde comprometida pelo mal consuntivo. Não faltam afirmações de que os padres fimatosos Manoel da Nóbrega e José de Anchieta tenham sido os primeiros disseminadores da doença entre os índios, contribuindo para o decréscimo populacional entre os tupis-guaranis catequizados.
Em agosto de 1557, o jesuíta Manoel da Nóbrega escrevia aos seus superiores pedindo novos apóstolos para atuarem na Terra de Santa Cruz, invocando seu estado de saúde como motivo do rogo:
a mim devem-me já de ter por morto, porque ao presente fiquo deitando muito sangue polla boca. O medico de quá hora diz que hé vea quebrada, ora que hé do peito, hora que pode ser da cabeça: seja donde for, eu o que mais sinto hé ver a febre ir-me gastando pouco a pouco. (Leite, 1957:404)1
A recorrência ao africano escravizado permitiu que um novo grupo provavelmente não tuberculinizado chegasse ao Brasil, sendo que os negros, em pouco tempo, tornaram-se as principais vítimas da fatal tísica. As condições de vida e de trabalho impostas aos cativos favoreceram a disseminação da moléstia entre os africanos e seus descendentes brasileiros, induzindo vários pesquisadores a pontificarem que a tuberculose imperava entre os negros pelas características próprias da biologia racial.
Outros estudiosos, entretanto, preferem creditar o alastramento da fimatose entre os negros ao excesso de trabalho, à dieta alimentar precária, ao alcoolismo e também ao consumo de maconha (Santos Filho, 1977). No século XIX, a consunção continuou a se alastrar entre a comunidade escravizada. Na pintura intitulada Mercado da Rua do Valongo, Debret retratou um grupo de negros abatidos, apáticos e macérrimos, elementos que permitiram a um tisiologista reconhecer que tais personagens apresentavam traços típicos de infecção pelo bacilo de Koch.
A continuidade dos estragos atribuídos à moléstia pulmonar passou a chamar a atenção das autoridades públicas, especialmente após o estabelecimento da família real portuguesa no Rio de Janeiro. A doença que tanto os leigos quanto os clínicos denominavam de ‘fraqueza do peito’, ‘chaga nos bofes’ e ‘sangue pela boca’ aumentava o número de seus tributários, exigindo respostas dos especialistas na saúde urbana.
O médico Francisco de Mello Franco (1829) foi um dos primeiros esculápios que examinou a ‘febre héctica’ no contexto nacional, assinalando que o morbus anualmente roubava um significativo número de vidas da população brasileira. Reproduzindo os ensinamentos ministrados pela medicina européia do tempo, o Dr. Mello Franco (1829:113) confundia a tuberculose com a febre resultante da infecção, concluindo que o melhor tratamento disponível para o pectário baseava-se no quinino, no ópio e também em sucessivas sangrias, pois o clínico acreditava que “no sangue possa existir a principal causa excitante da febre”.
As dificuldades hipocráticas em limitar o avanço da tísica no terreno da Corte fazia com que os doentes recorressem a uma multiplicidade de remédios, na tentativa de recuperar a saúde. Além das sangrias que eram praticadas, inclusive pelos cirurgiões negros que trabalhavam nas calçadas, os cariocas faziam uso de alguns elementos da flora nativa, como por exemplo, chás preparados com folhas de goiabeira, jataí e cipó-chumbo, ingerindo também grandes quantidades de mocotó e de leite de cabra e de jumenta, como reconstituintes pulmonares.
A procura pelas enfermarias hospitalares era evitada, não só devido ao medo que os recintos nosocomiais inspiravam naquele período, mas sobretudo pela escassez de leitos, fato que ditava a demora na obtenção de assistência médica. Quando a chance aparecia, os fimatosos eram instalados em camas avizinhadas aos catres das vítimas de outras patologias, favorecendo o mortal intercâmbio de moléstias que geralmente levavam a óbito os hóspedes das casas de saúde. Por isso, em 1840, a Santa Casa do Rio de Janeiro estabeleceu uma enfermaria exclusiva para o atendimento dos doentes do peito, originando-se daí o interesse pela construção de um hospital relativamente afastado do centro urbano e destinado a receber unicamente os pacientes tuberculosos.
Somente em 1886 foi que as autoridades sanitárias do Império buscaram seguir, pelo menos parcialmente, o modelo preconizado na Europa, fazendo entrar em atividade o primeiro nosocômio especializado na assistência aos tísicos, localizado no subúrbio de Cascadura. A vida do hospital, porém, prolongou-se por apenas duas décadas, momento em que a unidade foi desativada, alegando-se a escassez de donativos públicos e privados como motivo causador da suspensão das atividades médicas (Ribeiro, 1956).
De qualquer forma, a partir de meados do século XIX, praticamente todas as famílias cariocas contavam com pelo menos um de seus membros assaltado pela corrupção do peito. Espelhando os receios produzidos pela ampla disseminação da moléstia, o clínico João Vicente Torres Homem (1882) ocupou muitas de suas preleções na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com a análise dos danos individuais e coletivos causados pela tísica.
Quando o Dr. Torres Homem publicou a síntese dos cursos que havia ministrado nas duas décadas anteriores, o médico enfatizou que nunca a tuberculose havia feito tantas vítimas no território brasileiro quanto naquele período, declarando ainda que a Peste Branca se transformara no principal flagelo sanitário que ameaçava os habitantes da capital do Império.
O interesse em esclarecer os elementos determinantes do mal consuntivo levaram o catedrático da academia médica a buscar apoio nas doutrinas vitalista e miasmática vigentes no início da centúria para ensinar que o clima quente e úmido do Rio de Janeiro mancomunava-se com os mecanismos da hereditariedade, com o alcoolismo e com o aleitamento mercenário para propiciar a rápida expansão do reino da tísica. Neste encaminhamento de idéias, o Dr. Torres Homem mostrou-se pouco convencido das recentes descobertas microbianas, observando que “Entre o povo brazileiro, principalmente nas camadas sociais menos esclarecidas, está enraizada a opinião de que a phthisica pulmonar é muito contagiosa” (Torres Homem, 1882:358).
O pressuposto da fimatose configurar-se como moléstia disseminada de um indivíduo para outro era indicado como elemento próprio da cultura tradicional dos povos ibéricos. Entretanto, a multiplicação dos debates realizados na Europa acerca da validade das propostas pastorianas parece que plantou uma semente de dúvida nas exposições do professor de Clínica Médica que, tocado pela indecisão, buscou conciliar seus posicionamentos com alguns pontos da inovadora medicina de Pasteur:
Quem sabe se o ar expirado pelo phthisico não contem parcellas nocivas, que, sendo absorvidas pelos pulmões de um individuo são, podem n’elles provocar um trabalho inflammatorio lento e gradualmente destruidor! Quem sabe se o suor do phthisico em contacto com a pelle de quem está bom é absorvido pouco a pouco e serve de vehiculo á diathese tuberculosa! Quem sabe se este mesmo suor, transformado em vapor aquoso pela evaporação, não entra no organismo de quem convive com o doente, por meio da inhalação pulmonar! (Torres Homem, 1882,: 359-361, v. 1)
Pouco mais de uma década depois da publicação do texto das aulas ministradas pelo Dr. Torres Homem, a comunidade médica nacional revelava-se ainda pouco resoluta em aceitar os pressupostos microbianos. Repetindo o movimento que ocorria em escala mundial, a escola médica do Rio de Janeiro postava-se como guardiã incondicional da tradição hipocrática, sendo que, no ano de 1894, raros eram os lentes daquela faculdade que assumiam a tuberculose como enfermidade de caráter infecto-contagioso. Os lentes mais arrojados expressavam cautela, pontificando que a Peste Branca era causada tanto pela inflamação dos tecidos quanto pela ação bacilar, conseguindo com isso mostrarem-se inteirados dos recentes debates que vinham agitando a medicina positivista européia e, ao mesmo tempo, fugirem do confronto com os decanos da clínica e da Saúde Pública nacionais (Freitas, 1940).
No resto do país, o mesmo clima de indecisão bafejava as exposições especializadas. Em São Paulo, por exemplo, o cirurgião Luiz Philippe Jardim (1894), diretor do Hospital Militar, ensinava que a consunção era fruto da determinante hereditária e também do contágio. Ainda segundo o Dr. Jardim, o principal meio de infecção era o intercurso sexual, alegando que suas experiências apontavam para as mucosas genito-urinárias como o principal reservatório do bacilo identificado por Koch.
A tuberculose como questão pública
O advento do regime republicano incentivou os debates que resultaram na elaboração de um projeto nacional modernizante e calcado nos modelos representados pelos chamados ‘países civilizados’. Neste processo, a Saúde Pública foi considerada um dos principais setores onde a administração governamental deveria intervir, já que, segundo os ideólogos do período, o padrão sanitário predominante no momento imperial depunha contra a qualidade da ‘raça brasileira’, minando o espírito coletivo compromissado com os interesses nacionais. A definição do Brasil como um ‘vasto hospital’ exigia a imediata intervenção sanitária, estabelecendo as possibilidades e os limites da ‘regeneração’ da força de trabalho autóctone, assim como a atualização disciplinadora da sociedade brasileira.
A intervenção oficial na esfera higiênica, entretanto, realizou-se basicamente nos espaços urbanos situados nas unidades mais ricas da federação, especialmente as metrópoles carioca e paulista e, secundariamente, outras capitais estaduais que tinham sofrido sensível aumento populacional nas últimas décadas do século XIX, tais como Recife, Salvador e Porto Alegre.
A necessidade de limitar os prejuízos causados pelo conjunto de enfermidades que feria o corpo social tinha como elemento incentivador a urgência de dinamizar a circulação de homens e mercadorias, itens vitais para o bom funcionamento de uma economia com base no esquema agrário-exportador. Isto porque as doenças que assolavam as urbes brasileiras e especialmente as áreas portuárias inibiam a chegada de novos contingentes de imigrantes, afugentando igualmente os negociantes que buscavam estabelecer elos econômicos com o país.
Nesta circunstância, o governo federal e as autoridades estaduais buscaram conter o avanço das endemias e das epidemias que periodicamente ameaçavam o cotidiano das metrópoles, dispensando verbas e servidores para o combate da febre amarela, da varíola, da peste bubônica e da febre tifóide.
O fato de a Peste Branca ser reconhecida como uma das patologias que mais ceifava vidas no espaço citadino não foi suficiente para motivar os administradores da Primeira República a elaborar dispositivos de combate a uma moléstia que, se amplamente disseminada, ainda não dispunha de estratégias preventivas e curativas de aceitação geral pela corporação médica. Assim, diferentemente das demais enfermidades que assolavam as cidades, a tísica não contou com as atenções e os recursos oficiais, fazendo com que a sociedade assumisse as tarefas de criação e de patrocínio das instituições que tinham o objetivo de prevenir o contágio e amparar os tuberculosos pobres.
A aparente apatia governamental referente à doença dos pulmões foi quebrada no ano de 1907, quando Oswaldo Cruz propôs ao Congresso Nacional a aprovação de uma lei que estabelecia a obrigatoriedade clínica de notificação dos casos de tuberculose, a criação de um serviço especializado na enfermidade e ainda a ocupação de um inexistente sanatório que o higienista acreditava que a Marinha havia construído em Campos do Jordão.
O prestígio de médico que havia saneado o ambiente carioca e a autoridade emanada do cargo de diretor-geral do Departamento Nacional de Saúde não foram suficientes para que os políticos apadrinhassem a proposta cruziana. Ainda impressionados com as cenas que marcaram a Revolta da Vacina, os representantes do povo rejeitaram o projeto elaborado pelo comandante do Instituto de Manguinhos.
A proposta assistencial paulista
Coube ao estado de São Paulo a função inauguradora do movimento social de combate à tuberculose. A condição de área mais rica do país somou-se ao fato da terra bandeirante conviver com a moléstia do peito desde o início da ocupação da capitania, quando a ‘peste de priorizes’ tornou-se doença comum nos redutos indígenas, mantendo-se como algoz constante da gente paulista.
O incremento da imigração européia para a ‘terra do café’ deu nova dimensão à ameaça tísica. Por isso, no ano de 1887, o inspetor-geral da Higiene da Província chamou a atenção para o número de doentes pulmonares que existiam em São Paulo, informando que estes procuravam a terra bandeirante pela fama terapêutica dos ares locais (Arruda, 1936).
A tuberculose se apoderava a passos largos da ‘metrópole do café’, fazendo mais de quinhentos óbitos notificados no último qüinqüênio do século passado. Neste contexto, o higienista Emílio Ribas – diretor do Serviço Sanitário estadual entre os anos de 1898 e 1917 – mostrou-se sensível ao avanço da Peste Branca, convidando o clínico carioca Clemente Ferreira para transferir-se para a cidade de São Paulo e aqui iniciar a primeira campanha nacional contra a moléstia de Koch.
Os motivos que levaram o Dr. Ribas a escolher Clemente Ferreira para a tarefa em questão deveu-se provavelmente ao interesse demonstrado pelo médico carioca em combater a Peste Branca. O Dr. Ferreira havia se graduado em medicina no Rio de Janeiro, apresentando, em 1882, uma tese sobre a ‘phthisica pulmonar’, mas pouco depois mudou o rumo de sua especialização, dedicando-se à área que mais tarde ganharia a denominação de pediatria.
Na seqüência, o médico recém-formado encontrou colocação como assistente da clínica de moléstias infantis da Policlínica da antiga Corte, sendo que, ainda na década de 80 do século XIX, o Dr. Ferreira assinou um ensaio que analisava as qualidades climatoterápicas de Campos do Jordão e as possibilidades de organização da luta contra a moléstia pulmonar, fato que certamente despertou a atenção do diretor da Higiene paulista.
O facultativo estabeleceu residência em São Paulo em 1896, ocupando a função de ‘médico de crianças’ e, dois anos depois, o cargo de direção do consultório de lactantes do Serviço Sanitário estadual. Paralelamente, o clínico carioca foi incumbido de sensibilizar seus pares e os principais representantes da elite regional para a organização de um entidade filantrópica de combate à peste consuntiva.
Fruto dos esforços conjugados do funcionário e do diretor-geral da Saúde Pública, no mês de julho de 1899, surgiu a Associação Paulista de Sanatórios Populares para Tuberculosos, a qual teve Clemente Ferreira como único presidente, desde a sua fundação até 1945, quando o patrono dos tisiologistas de São Paulo, muito adoentado, afastou-se da administração da entidade.
Os objetivos iniciais desta instituição seguiam de perto as propostas expressas na carta de fundação da Verein für Volksheilstätten, sediada em Munique. Com isso, o Dr. Ferreira buscou reproduzir no contexto nacional a experiência germânica, empenhando os primeiros anos de vida da Associação no levantamento de recursos suficientes para a construção de um sanatório popular em Campos do Jordão, de um dispensário na cidade de São Paulo e ainda para a organização de um movimento educativo e de prevenção ao contágio fimatoso.
Apesar dos esforços do Dr. Ferreira para que a entidade contra a tísica cumprisse seu programa de ação, em pouco tempo a luta contra a Peste Branca deixou de ser novidade, fazendo com que as doações filantrópicas se tornassem cada vez mais escassas. A disponibilidade de recursos extremamente limitados exigiu que, já no primeiro ano do século passado, a Associação corrigisse seus compromissos, centrando seus trabalhos no estabelecimento de um dispensário especializado, o qual deveria seguir a pluralidade de ações preconizada pelo médico e nobre escocês Robert Philip, idealizador dos primeiros postos de atendimento à parcela do proletariado atingida pelo bacilo consuntivo.
Na série de alterações, a partir de 1903, a organização ferreiriana foi rebatizada com a designação de Liga Paulista Contra a Tuberculose, a qual adotou os serviços dispensariais como eixo central da assistência aos infectados. Apesar disso, a concepção que estipulava o isolamento dos consuntivos em recintos sanatoriais manteve-se como ideal máximo da instituição, permanecendo como matéria crítica no relacionamento da Liga com a administração pública estadual.
Nesta seqüência das atividades, a Liga Paulista Contra a Tuberculose rompeu relações com o Serviço Sanitário, colocando em campos opostos os diretores de ambos os órgãos. Atraído para São Paulo para atuar junto à administração da Saúde Pública, o Dr. Ferreira mostrou-se sempre reticente em reconhecer o apoio que o Dr. Ribas oferecia à Liga, alijando o nome da instituição governamental dos relatórios, palestras e artigos que publicava sobre os esforços regionais contra a disseminação da Peste Branca.
Apesar da pouca clareza dos motivos que alimentaram o conflito entre os dois esculápios, suspeita-se que a continuidade de atritos deveu-se principalmente à pretensão personalista do ‘médico de crianças’. Desde o surgimento da Associação, o clínico levantou a bandeira da campanha que visava a construir um sanatório popular em Campos do Jordão, o qual deveria ser financiado pelo governo estadual, mas ficar subordinado ao movimento filantrópico e não ao Serviço Sanitário.
Emílio Ribas, por sua vez, opôs-se a essa proposta, designando dois de seus mais fiéis assessores para a elaboração de um projeto relativo ao estabelecimento de uma casa de saúde especializada no estado de São Paulo. O resultado foi a publicação, no ano de 1899, de um extenso documento assinado pelos médicos Victor Godinho e Guilherme Alvaro em cuja página de apresentação o Dr. Ribas advogava que o Brasil deveria imitar o exemplo dos países em que o gerenciamento da luta contra a tuberculose era encargo exclusivo da alta direção do Serviço Sanitário.
No relatório publicado pela Saúde Pública, informava-se que a tísica era responsável por não menos que 7% dos óbitos notificados no estado de São Paulo, taxa que tenderia a se ampliar caso nada fosse feito para limitar a disseminação da doença pulmonar. Alegando que a infecção consuntiva era moléstia facilmente curável, os Drs. Godinho e Alvaro acrescentaram que a administração estadual deveria instalar em regime de urgência um nosocômio especializado em Campos do Jordão, não só porque o clima das montanhas era indicado para o tratamento dos fimatosos, mas também porque o local era de difícil acesso, protegendo os sadios contra a contaminação bacilar.
Nas conclusões desse estudo, entretanto, os higienistas confessaram-se descrentes da necessária agilidade oficial em custear a construção e o funcionamento de um sanatório na Serra da Mantiqueira. Por isso, depois de preencher quase uma centena de páginas onde o hospital para tuberculosos constituía-se principal tema, os médicos do Serviço Sanitário surpreenderam ao concluir que: “O phthisico póde curar-se em sua casa, desde que a transforme em um pequeno Sanatorio, ou desde que faça e use nella tudo o que teria de fazer e usar no Sanatorio”(1899:98).
A intromissão dos inspetores sanitários oficiais nos debates sobre a construção de uma casa de saúde para os tísicos paulistas parece que desagradou o Dr. Ferreira, que insistia que a luta contra a tuberculose deveria ser comandada exclusivamente pela Liga que dirigia. Em conseqüência, o tisiologista respondeu à proposta oficial por meio da composição de um outro relatório, datado do ano de 1900.
Nesse documento, parece que Clemente Ferreira tentou definir as áreas de influência da Liga Paulista contra a Tuberculose e do Serviço Sanitário: apesar de reclamar a paternidade da idéia de instalação de um hospital em Campos do Jordão, o Dr. Ferreira abriu mão desta iniciativa, atribuindo ao Estado a tarefa de erguimento e administração do nosocômio, exigindo em troca a construção de uma estrada de ferro que ligasse a estação de cura das montanhas com o Vale do Paraíba. A Liga, por sua vez, ficaria com o compromisso de patrocinar os serviços dispensariais na cidade de São Paulo, assim como levar avante o projeto de criação de um orfanato para os filhos dos consuntivos e também estudar a possibilidade de estabelecimento de um sanatório nas cercanias da capital paulista.
Mesmo que cada palavra assinada pelo clínico deixasse a impressão que o médico buscava se reconciliar com a Saúde Pública estadual, o Dr. Ferreira não se furtou de criticar uma vez mais seus superiores do Serviço Sanitário, respondendo à proposta oferecida, no ano anterior, pela instituição oficial:
O isolamento domiciliar é, porém, uma illusão, principalmente nas classes pobres. (...) Nem pavilhões, nem isolamento methodico; a maior parte succumbe mesmo em seus domicilios á mingua de recursos therapeuticos, baldos de um tratamento hygienico efficaz e com plena liberdade de infeccionar todos que com elles cohabitam.(...) O tractamento proficuo dos tuberculosos é uma utopia nas condições em que nos achamos. (1900:5)
Concomitantemente ao pronunciamento do diretor da Liga Paulista, o comandante do Serviço Sanitário enviou o Dr. Victor Godinho à Europa, para que visitasse os principais sanatórios da Alemanha, Suíça e França e se familiarizasse com os compromissos básicos que regiam as atividades e a rotina dos hospitais que atendiam os fracos do peito. Depois de permanecer por mais de um ano no ‘Velho Mundo’, o assessor dileto de Emílio Ribas retornou ao Brasil, apresentando um novo relatório oficial que, como o anterior, contou com uma edição de dez mil exemplares, sendo distribuído prioritariamente entre os grupos de políticos do estado, até mesmo para os vereadores dos menos expressivos municípios do estado (Godinho, 1902).
Neste documento, o Dr. Godinho retomou quase todas as idéias que haviam sido examinadas no texto preparado em 1899. Uma das raras novidades constantes deste segundo relatório governamental refere-se à proposta de criação de sanatórios pré-fabricados e de teto móvel, visando assim não só a facilitar o aproveitamento da ação desinfetante dos raios solares como também a viabilizar a rápida transferência da casa de saúde de um local para outro. O estranho de tudo: tal idéia não foi resultado do estágio que o médico brasileiro cumpriu na Europa, mas sim produto de um projeto elaborado no Brasil e assinado pelo próprio Dr. Emílio Ribas.
Mais do que a ausência de sugestões que eventualmente tivessem sido colhidas nos centros tisiológicos europeus, o que chama a atenção neste texto que leva a marca do Serviço Sanitário é a aparente redefinição dos postulados que impregnavam os discursos oficiais anteriores ao ano de 1902, os quais reiteravam que o melhor local para a instalação de um sanatório consistia na área de Campos do Jordão.
Para a surpresa de todos, a partir de então, o Dr. Godinho passou a afirmar que a tentativa de instalação de um hospital na Serra da Mantiqueira era uma “empreza enviavel”, indicando os arredores da capital dos paulistas e “até o município de São Roque” (1902:56) como regiões ideais para a instalação de uma unidade de isolamento dos tísicos pobres. Com isso, a equipe do Dr. Ribas apropriou-se das sugestões apresentadas dois anos antes por Clemente Ferreira, esclarecendo que o estabelecimento de um sanatório na Serra da Mantiqueira era uma idéia economicamente desarrazoada:
pensamos que a excellencia, não discutida nem discutível, do clima de Campos do Jordão, não basta para que o estado de São Paulo emprehenda a construcção de uma estrada de ferro para aquellas regiões, só para que se construa o Sanatorio para tuberculosos. (Godinho, 1902:72)
Transposta mais de uma década desde o início do conflito higienista, os jornais anunciaram a organização de uma empresa que tinha como objetivo construir um caminho de ferro que ligaria o distrito de paz de Campos do Jordão, na comarca do município de São Bento do Sapucaí, à cidade valeparaibana de Pindamonhangaba, acrescentando que a mesma companhia pretendia estabelecer uma vila sanitária e um sanatório para tuberculosos na região serrana.
Pouco tempo depois, o Congresso Estadual aprovou o projeto, concedendo aos empreendedores o direito de explorar uma faixa de 15 quilômetros de cada lado do eixo da linha férrea, garantindo também os juros de 5% sobre o capital inicial da companhia, o qual era inicialmente de 3 mil contos, logo em seguida aumentado para 4 mil. Os concessionários da empresa organizaram então a Sociedade Anonyma Estrada de Ferro Campos do Jordão, aparecendo como principais acionistas os nomes de Emílio Ribas e de Victor Godinho, sendo que o primeiro era natural de Pindamonhangaba, local onde era proprietário de extensas glebas de terra.
A novidade chegou aos ouvidos do Dr. Ferreira, que se incumbiu de disseminar ainda mais a notícia de o governo ter concedido os direitos de construção e exploração da estrada de ferro e do sanatório aos dois funcionários que, anos antes, tinham persuadido as autoridades a não levar avante tais projetos.
De maneira sutil e persistente, o diretor da Liga Paulista abordou o caso por repetidas vezes, passando a mencionar com freqüência o nome do Serviço Sanitário, inclusive no decorrer de seu pronunciamento na Conferência Internacional sobre a Tuberculose, realizada em Londres. No pronunciamento do médico brasileiro, tanto Ribas quanto Godinho estavam recebendo “favores especiais” do governo para criar um sanatório particular e uma vila sanitária que gerariam “um bom lucro” aos seus proprietários (Ferreira, 1913:5).
Por situações como esta, a Liga Paulista Contra a Tuberculose foi relegada a um isolamento que estimulou seu diretor a se lançar em uma campanha que associava a realização de obras de apoio aos pectários com a contínua cobrança de medidas oficias e filantrópicas para a limitação da Peste Branca. Muitas das páginas da revista Defesa Contra a Tisica – publicada irregularmente entre 1902 e 1914 e dirigida por Clemente Ferreira – foram preenchidas com a reprodução de memorandos expedidos pela Liga Paulista e encaminhados ao presidente do estado e aos responsáveis pelos hospitais paulistas, exigindo a instalação de sanatórios, a criação de pavilhões exclusivos para os pacientes fimatosos nas Santas Casas e a organização de serviços de desinfecção das residências onde existiam tuberculosos.
Paralelamente a isto, a Liga Paulista manteve um contínuo trabalho de divulgação dos princípios higiênicos que afastavam o perigo do contágio tísico. O Dr. Ferreira fez publicar dezenas de panfletos educativos e cartazes que visavam a orientar a população sobre a infecção, reservando para a elite intelectual contínuas palestras e conferências, nas quais eram discutidos os princípios clínicos e terapêuticos que orientavam a tisiologia européia.
Neste contexto, é fácil perceber que a seleção dos palestristas e dos temas abordados era uma tarefa exclusiva do diretor da instituição. A análise das palestras publicadas na Defesa Contra a Tisica deixa claro que alguns tópicos foram praticamente abolidos das discussões, tais como as pálidas medidas oficiais contra a enfermidade e também o papel desempenhado pela miséria econômica, pela prostituição e pelo alcoolismo na disseminação da tuberculose.
Até mesmo os recursos terapêuticos empregados pela medicina só ganhavam foro de discussão mediante a aprovação de Clemente Ferreira. No transcorrer da primeira década do século XX, o tisiologista era acirrado defensor das propriedades curativas e preventivas da Tuberculina de Koch, não sendo por acaso que muitas das reuniões públicas promovidas pela Liga Paulista versaram sobre o tema. Como exemplo, tem-se a série de palestras proferidas pelo clínico carioca Oliveira Botelho (1910), as quais foram amplamente divulgadas pela associação ferreiriana, inclusive porque reproduziam fielmente as idéias esposadas pelo presidente da instituição.
Mesmo contando com as idiossincrasias de seu diretor e com o prosseguimento dos choques entre este e a administração sanitária estadual, a Liga Paulista Contra a Tuberculose conseguiu inaugurar e manter um conjunto de dispositivos que se transformaram em órgãos modelares da luta brasileira contra a tísica.
Na seqüência de suas atividades, a Liga instalou, em 1904, o primeiro dispensário destinado ao atendimento dos fimatosos pobres, no contexto nacional. Pouco depois, foi criada a Obra de Preservação dos Filhos dos Tuberculosos Pobres, movimento apoiado pelas damas da sociedade paulista e que tinha como objetivo patrocinar a construção de um albergue para os filhos dos infectados, resultando no estabelecimento de um preventório infantil na cidade de Bragança Paulista. Na década de 20, coube ainda à Liga a construção e manutenção do Sanatório São Luiz que, localizado no município de Piracicaba, funcionou por apenas um lustro, sendo desativado, em 1931, devido à insuficiência de verbas.
Na sucessão das tarefas, a associação ferreiriana fez de tudo um pouco: educação sanitária, vigilância dos ‘grupos de risco’, testes com as drogas anunciadas como curativa dos pulmões, formação de tisiologistas, cirurgias torácicas, assistência clínica e amparo social. Neste contexto, nem sempre a sociedade paulistana percebeu com bons olhos as atividades desenvolvidas pela Liga, especialmente no que se referia ao funcionamento do ambulatório para tuberculosos em um prédio alugado e localizado na rua Líbero Badaró, no coração da Paulicéia.
Movido pelos protestos dos ocupantes sadios do edifício que abrigava o posto de atendimento aos fimatosos, Clemente Ferreira conseguiu doações suficientes para construir um prédio próprio para acomodar todas as atividades desempenhadas pela Liga, em um terreno localizado na parcela inicial da rua da Consolação. Imediatamente, os moradores da área, motivados pela tisiofobia reinante, organizaram um movimento contrário à transferência da unidade de tratamento dos tuberculosos para as proximidades da Vila Buarque e da Santa Cecília, situação que exigiu a interferência de várias comissões que passaram atestados nos quais declaravam que o dispensário não representava perigo contagioso para os moradores daquela parte da cidade.
Mas, tudo o que vinha sendo feito em favor dos pectários ainda era pouco para conter o avanço da Peste Branca no estado de São Paulo. Apesar dos esforços coordenados pela Liga e ainda a entrada em funcionamento do Sanatório Vicentina Aranha – inaugurado em 1924, em São José dos Campos –, no encerramento da década de 20, a tuberculose estava amplamente disseminada na região, especialmente na cidade de São Paulo.
Na capital bandeirante, onde a notificação clínica dos óbitos era muito mais freqüente que no resto do estado, os índices de morte pela consunção apresentavam-se altos e estáveis, sendo que no primeiro ano do século passado a taxa de mortalidade pela tísica era de 86,7 por 100 mil habitantes, enquanto em 1929, o mesmo índice assinalava 79,6 (Mascarenhas, 1953).
Neste último momento, Clemente Ferreira denunciou as dificuldades de sobrevivência da Liga Paulista, informando que a elite local pouco contribuía com donativos para a luta contra a moléstia consuntiva. Na ausência da generosidade dos ‘ricos’, o clínico disse ter encontrado apoio junto aos ‘mais humildes’, os quais patrocinavam as atividades da Liga mediante a aquisição dos ‘selos sanitários’, instituídos no Brasil pelo próprio Dr. Ferreira, no início da década de 20, pouco tempo depois de terem aparecido na Europa.
Confessando que era “transparente a pouca sympathia que desperta a cruzada contra o inimigo mais temeroso da raça humana”, o tisiologista levantou sua voz seguidamente para acusar a negligencia governamental frente à moléstia que corrói os pulmões. No Relatório da Liga Paulista contra a Tuberculose, Ferreira (1931:3) assim expôs a questão que tanto o torturava:
Por seu turno a acção official tem sido até aqui por demais apagada, para não dizer nulla, e entretanto indispensavel se faz uma campanha de tão grande porte, no manejo de um problema de tanta complexidade e polymorphismo, a assistência financeira efficaz do Poder Publico, pois, como já affirmou Calmette, a solução do problema da tuberculose é uma questão de dinheiro.
O Brasil e o modelo paulista
Apesar de todas as dificuldades de sobrevivência e atuação registradas na trajetória da Liga Paulista Contra a Tuberculose, a iniciativa bandeirante serviu durante toda a República Velha como paradigma inspirador das demais campanhas estaduais centradas na Peste Branca. A criação de uma entidade de combate à doença pulmonar em São Paulo foi reproduzida em outras unidades da federação que, de regra, apontavam as ações comandadas por Clemente Ferreira como responsáveis pelo presumível baixo índice de mortalidade consuntiva na capital industrial do país.
Assim, exagerando nos dados apresentados, o Serviço Sanitário de Pernambuco fez constar em seu relatório do ano de 1926, uma série de dados estatísticos em que ficava assegurado que São Paulo era a cidade ‘menos assolada’ pela tuberculose do país, informando também que a capital paulista se incluía entre as mais salubres metrópoles do mundo, com um coeficiente de óbitos por tuberculose bem inferior aos de Montevidéu, Paris, Viena, Roma e Madri.
De qualquer forma, os governos federal e estaduais mantiveram-se pouco sintonizados com os movimentos regionais de combate à tísica, mesmo no tocante ao Rio de Janeiro. Na capital da República, a criação da Liga Brasileira Contra a Tuberculose, poucos meses depois da sua congênere paulista, buscou imitar a proposta fomentada por Clemente Ferreira, apresentando as mesmas vicissitudes e pouco fazendo em benefício dos infectados pobres do Rio de Janeiro e do resto do país, inclusive porque contava com verbas, instalações e equipamentos ainda mais precários que os disponíveis em São Paulo.
Nas demais cidades brasileiras, a situação sanitária referente à Peste Branca era ainda mais crítica. O levantamento realizado pelo Dr. Alfredo Britto, em 1929, mostra que mais da metade dos óbitos nacionais causados por doenças infecto-contagiosas era devido à tísica, sendo que raras eram as instituições dirigidas para o combate à fimatose que se encontravam em condições de prestar assistência aos pectários pobres (Britto, 1929).
Por isso, na década de 20 do século passado, ganharam maior intensidade as cobranças que visavam à participação dos poderes públicos no combate à Peste Branca, sendo raras as publicações e os congressos médicos nos quais não se reclamasse da ausência oficial na luta anti-tuberculose.
Até mesmo o higienista Afranio Peixoto, sempre comedido nas palavras de crítica ao Estado, incorporou-se no movimento. Ao avaliar a trajetória da saúde pública nacional, o médico não se absteve de elogiar o empenho do governo federal em sanear os grandes centros urbanos do país, mas, ao se deter no fato tuberculoso, Afranio Peixoto não se conteve, pronunciando uma enigmática sentença: “é alarmante e não move os que devem e podem...” (1923:88).
O Estado varguista e a questão da tuberculose
Os anos 30 abriram-se sob uma crise econômica que resultou na ruptura da hegemonia oligárquica paulista e mineira no processo de tomada das decisões nacionais. A instalação de Getúlio Vargas no comando federal selou o encerramento de um período em que o Estado buscou amoldar-se à tradição liberal européia e aos princípios federalistas. Em continuidade, os ‘revolucionários’ de 30 orientaram seus projetos no sentido da centralização dos canais decisórios e na ostensiva intervenção governamental no funcionamento da sociedade.
A estratégia adotada por Vargas para reforçar a intervenção oficial nas instituições privadas e públicas correspondeu à expansão da burocracia governamental, inclusive na esfera da saúde coletiva. A multiplicação das instâncias oficiais e dos agentes do Estado favoreceu o desdobramento dos dispositivos legais e ordenadores da sociedade, alimentando a ilusão de que a administração pública era ‘moderna’ e ‘racional’, sendo, portanto, imune às contestações individuais ou de grupos.
A criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, no mês de abril de 1931, inseriu-se na determinação do novo governo em redefinir a imagem que o Brasil desfrutava frente às potências internacionais. A presença de múltiplas epidemias e endemias que minavam a população impôs a organização de um instituto sanitário que tinha como principal objetivo revitalizar as formas de normatização e manutenção da capacidade produtiva do proletariado, em um período em que já não era mais possível contar com a reposição da força de trabalho mediante o aproveitamento de novos contingentes de imigrantes deslocados da Europa.
Acrescenta-se ainda que a ampliação da máquina administrativa da saúde abria oportunidades para o governo expandir seus pólos de vigilância sobre o tecido social, fato que se transformou em um dos principais recursos empregados por Vargas para a manipulação dos conflitos sociais.
Sob o lema de que a saúde se constituía em um dos ‘direitos básicos do cidadão brasileiro’, a Assembléia Nacional reunida em 1934 pontificou que cabia ao Estado zelar pelas condições sanitárias do país, intervindo nos momentos epidêmicos e sobretudo desenvolvendo ações educativas de prevenção às enfermidades.
Segundo o médico e parlamentar paulista Pacheco e Silva, era dever do governo desdobrar esforços para melhorar a “qualidade eugênica do Homem Brasileiro” (1934:5), mediante a proibição do ingresso no país de grupos de estrangeiros que se mostrassem perigosos para a Saúde Pública e também por meio de medidas que restringissem as taxas de morbidade e mortalidade que feriam a sociedade nacional, incluindo-se aí as baixas causadas pela Peste Branca.
Durante o governo Vargas, entretanto, as verbas federais destinadas à higiene coletiva foram sempre reduzidas e, pelo menos até 1938, aplicadas quase que exclusivamente na melhoria das condições sanitárias da capital da República. Com isso, esperava-se que cada um dos estados se responsabilizasse pela criação de fundos próprios para o atendimento dos enfermos pobres e para a prevenção das moléstias, fato que tornou ainda mais crítico o perfil epidemiológico da maioria das regiões brasileiras.
O resultado do afastamento do Estado dos compromissos que buscavam garantir a qualidade da saúde pública nacional pode ser notado inclusive na precariedade das ações oficiais contra a tuberculose. Durante os primeiros oito anos do governo varguista, o retrato mais invocado dos movimentos contra a Peste Branca foi aquele elaborado pelo professor Octavio de Freitas, ainda pouco antes da Revolução de 30: o acanhamento em número e a deficiência de funcionamento dos sanatórios e dispensários especializados, a falta de autoridade moral de quase todas as entidades estaduais contra a tísica e a ausência dos poderes públicos na luta sanitária.
No transcorrer da década de 30, o texto do Dr. Freitas (1929) foi continuamente invocado pelos médicos descontentes com a paralisia do setor sanitário governamental, consagrando a denominação de ‘Grande Mal’ atribuída à moléstia que roubava as energias do povo e debilitava a capacidade produtiva nacional.
Em conseqüência, no ano de 1936, existiam poucas entidades direcionadas ao tratamento das vítimas do bacilo de Koch. O estado de São Paulo concentrava o maior número de unidades de saúde, contando com 14 sanatórios e hospitais-sanatórios, sendo seguido por Minas Gerais com três sanatórios, o estado do Rio de Janeiro com dois nosocômios e o Paraná com apenas uma casa de saúde especializada.
Todos os demais estados dispunham exclusivamente de alguns leitos hospitalares e de uns poucos ambulatórios mantidos pela iniciativa filantrópica. A escassez das vagas sanatoriais e o funcionamento irregular dessas instituições contrastavam com o número calculado de tuberculosos existentes naquele mesmo ano no país: cerca de meio milhão de infectados, segundo a Liga Paulista contra a Tuberculose.
Foi somente a partir de 1938 que a administração varguista mostrou-se disposta a elaborar um projeto federal de assistência aos doentes pobres, inclusive os tributários da tuberculose. Os motivos deste súbito interesse governamental em reforçar seus esquemas intervencionistas na saúde coletiva está certamente relacionado com o empenho varguista em normalizar o tecido social e também com a intenção de interferir na saúde popular como atitude preparatória para o lançamento da campanha oficial de ocupação de algumas áreas interioranas do país, fato que colocava a Saúde Pública como órgão encarregado de garantir migrantes saudáveis para o projeto governamental batizado como ‘Marcha para o Oeste’.
Além disso, é necessário levar em consideração o fato de os Estados Unidos terem produzido, no decorrer da década de 30 do século passado, uma série de interpretações sobre a América Latina, anunciando a condição ‘tradicional’ dos países situados ao sul do mexicano rio Grande.
Em um desses relatórios, o higienista Charles Wilson (1942:11) concebeu a América Latina como uma verdadeira “sick man’s society”, cujo caráter avesso à modernidade era atestado pela multiplicidade das doenças infecto-contagiosas que assolavam as populações instaladas nesta porção do continente.
Para configurar ainda mais a condição desigual entre as sociedades de origem latina e anglo-saxônica, o médico colocou em confronto os perfis epidemiológicos das duas áreas, concluindo que, enquanto nos Estados Unidos a principal causa de óbitos era preenchida pelas moléstias degenerativas – em que destacavam-se os acidentes cardiovasculares –, a América Latina era vitimada principalmente por um conjunto de doenças contagiosas, sendo a tuberculose a patologia que mais cobrava vidas dos ‘irmãos do sul’.
Almejando a condição moderna do país, Getúlio Vargas buscou emprestar novo rumo ao papel do Estado nas campanhas contra a doença pulmonar, mostrando-se sensível aos pedidos de apoio da até então apagada Federação Brasileira de Tuberculose – entidade fundada em 1931 – e também oferecendo suporte econômico aos sucessivos Congressos Nacionais de Tuberculose, realizados a partir do final daquele decênio.
Mais ainda, o presidente encomendou ao diretor do Departamento Nacional de Saúde, o higienista João de Barros Barreto, a elaboração de um plano nacional e centralizador de combate à Peste Branca. Dois anos depois, em 1940, Barros Barreto finalizou o projeto requerido pelo presidente, ressaltando que a ‘ameaça sanitária número um do país’ deveria ser combatida por meio da criação de uma rede de sanatórios federais, localizados nas periferias das maiores cidades brasileiras.
Aprovado por Vargas, o documento preparado por Barros Barreto nunca chegou a ser colocado integralmente em prática, principalmente devido à perene alegação de escassez de verbas, fato que ditava o ritmo lento das edificações dos prédios que deveriam abrigar as casas de saúde especializadas. Por isso, muitos dos sanatórios idealizados no final dos anos 30 só foram entregues à comunidade uma década depois, momento em que a proposta médica de isolamento nosocomial dos tuberculosos entrava em franca decadência.
Situações como esta deixam claro que, apesar dos pronunciamentos oficiais que prometiam assistência aos doentes do peito, o Estado getulista hesitava em liberar verbas para o combate à Peste Branca e para o socorro das vítimas desta enfermidade. Tentando fugir ao compromisso de luta contra a disseminação da moléstia, ainda no ano de 1939, o presidente da República ordenou a formação de um comitê incumbido de corrigir o código previdenciário, atribuindo aos Institutos de Aposentadorias e Pensões a obrigação de prestar assistência médica e previdenciária aos trabalhadores consuntivos.
A comissão – constituída por médicos e administradores ligados à Sociedade Brasileira de Tuberculose e coordenada por Abelardo Marinho – buscou seguir de perto os posicionamentos contidos na Carta del Lavoro da Itália fascista, demandando o período de seis meses para apresentar o texto final de um anteprojeto que visava a instituir um seguro especial contra a tuberculose.
Mesmo afirmando desconhecer as ‘condições próprias’ da tísica no país, a equipe designada por Vargas advogou a criação de um órgão que denominar-se-ia Instituto de Tuberculose e Previdência Social, o qual seria financiado por um fundo originado da cobrança de um imposto a ser ativado em nome da ameaça infecciosa. Segundo esta proposta, cada trabalhador deveria contribuir mensalmente com no máximo um por cento de seu salário, sendo que os empregadores deveriam colaborar com quantia semelhante ao total pago pelos seus funcionários (Marinho, 1939).
Estabelecidos os fundamentos do amparo aos pectários, o governo reservava para si a missão fiscalizadora das tarefas realizadas pelo novo Instituto, delegando o gerenciamento do órgão a uma diretoria composta por representantes das Caixas de Aposentadorias e Pensões. Nesse contexto, marcado pela acirrada vigilância estatal, as ações atribuídas à instituição anti-tuberculosa compreenderiam o amparo financeiro e hospitalar aos trabalhadores infectados pelo bacilo de Koch, a constituição de uma rede nacional de sanatórios e também a organização e patrocínio de campanhas de esclarecimento público sobre a tuberculose.
O fato do anteprojeto situar a luta contra o Grande Mal como responsabilidade dos agentes previdenciários suscitou pronta reação das Caixas de Aposentadorias e Pensões. Isso porque a assistência aos tísicos de limitados recursos pecuniários mostrava-se como um negócio de pouco interesse, já que de escassa lucratividade, fazendo com que as Caixas alegassem ‘falta de preparo’ para administrar o Instituto de Tuberculose.
Os setores previdenciários não pouparam esforços para atestar sua própria incapacidade financeira para o comando do problema fimatoso, alterando criminosamente os dados para ‘provar’ ao presidente Vargas que já estavam despendendo mais de 50% de seus recursos anuais no pagamento de pensões e assistência médica aos operários tísicos (Métall, 1944).
Na série de medidas que visavam a impedir que o Estado colocasse o setor privado como responsável único pela solução das questões produzidas pela doença pulmonar, as Caixas uniram-se na elaboração de uma contraproposta ao plano governamental. Seguindo este intento, os nomes de Raphael Pardellas e Mario Pinto Passos – ambos funcionários da Caixa de Aposentadoria e Pensões de Serviços Telefônicos do antigo Distrito Federal – ganharam conhecimento público como mentores das justificativas utilizadas pelas organizações previdenciárias que recusavam a direção dos trabalhos anti-tuberculose.
Segundo as perorações das Caixas, o Estado brasileiro já dispunha do arcabouço legal necessário para a prevenção e assistência aos tributários do Grande Mal, indicando-se o decreto número 16.300, datado do mês de dezembro de 1923, como instrumento jurídico que atribuía ao Departamento Nacional de Saúde Pública a responsabilidade de organização das ações sanitárias que objetivavam socorrer os fimatosos e limitar a disseminação da moléstia.
Para Pardellas e Passos, caberia à “laboriosa e moderna” administração estado-novista apenas “aparar algumas arestas” do antigo decreto para tornar “ainda mais eficaz” (Pardellas e Passos, 1941:276) o aparelhamento nacional de luta contra a tuberculose. Assim, por meio de uma retórica laudatória ao chefe da nação e ao mesmo tempo vazia de elementos esclarecedores, as Caixas buscavam devolver ao Estado a responsabilidade sobre o problema gerado pela Peste Branca.
Os mesmos analistas, ironicamente, centraram forças na depreciação dos serviços prestados pelas próprias Caixas para, por intermédio de uma cartada de risco, desestimular de vez a proposta oficial. Além de declarar que os diretores dos institutos providenciários não contavam com experiência suficiente para administrar uma organização tão complexa como seria o órgão de combate à tísica, os autores surpreenderam ao se posicionarem como denunciantes da precariedade do amparo prestado pelas Caixas aos contribuintes pectários, enfatizando a exigüidade do valor das pensões e também a baixa qualidade da assistência médico-sanatorial colocada à disposição dos trabalhadores adoentados.
Ainda em conformidade com o texto elaborado por Raphael Pardellas e Mario Passos, as verbas previdenciárias eram insuficientes para custear o tratamento do operário contaminado e garantir o sustento de seus dependentes.
A primeira opção oferecida pelos Institutos aos seus sócios tuberculosos correspondia a uma aposentadoria que raramente ultrapassava 50% do valor do salário pago a um trabalhador não qualificado, quantia que mal dava para a alimentação de um indivíduo sadio, quanto mais para custear a existência de um tísico e de sua família. Nesse caso, alertava-se que, se o doente recebesse a pensão, a instituição previdenciária se eximiria da responsabilidade de oferecer tratamento gratuito ao consuntivo.
A segunda opção era oferecida apenas aos portadores de lesões abertas e que necessitavam de intervenção cirúrgica imediata. Neste caso, a legislação em vigor garantia o direito à internação hospitalar por um período de até dez dias, podendo ser ampliada por um prazo mais extenso, dependendo da disponibilidade de verbas do órgão segurador, sendo que nesta situação o trabalhador não fazia jus ao recebimento da pensão. Por fim, a última alternativa era endereçada aos tuberculosos com lesões não abertas, os quais poderiam receber assistência especializada e ‘algum auxílio pecuniário’, cujo valor variava segundo a entidade previdenciária à qual o enfermo estivesse ligado.
Após dedicarem-se às denuncias da fragilidade dos Institutos, os representantes das seguradoras ofereceram um substitutivo ao anteprojeto preparado sob a orientação de Abelardo Marinho. Para os dirigentes da máquina previdenciária, o documento getulista era plenamente viável, não obstante precisar de alguns reparos. O primeiro deles era inevitável: eximir as Caixas de qualquer compromisso nos esforços de combate à tísica, colocando em seu lugar o Estado. Em seguida, sugeria-se o aumento do seguro para 2% sobre o salário dos contribuintes e a alteração do nome da entidade a ser criada para Instituto de Seguro-Doença. Nada mais.
Em nome da proteção coletiva contra a moléstia de Koch, o confronto entre o Estado e as Caixas manteve-se vivo até o final do primeiro período presidencial de Getúlio Vargas, pouco resultando em benefício do proletariado. As raras leis federais e estaduais que focavam a obrigação social dos empresários com a saúde dos trabalhadores eram convenientemente ‘esquecidas’, deixando o operariado entregue à própria sorte.
Assim, mesmo que um decreto assinado ainda na República Velha exigisse que todas as fábricas que contassem com ‘grande número’ de empregados dispusessem de um dispensário especializado no atendimento dos doentes do peito, raramente isto aconteceu. No estado de São Paulo, apenas a Companhia Docas de Santos buscou cumprir esta disposição legal, mantendo um ambulatório para o tratamento dos seus funcionários contaminados.
A The São Paulo Tramway, Light & Power Limited, considerada a mais moderna empresa no que tangia ao relacionamento entre capital e trabalho no período estudado também se dizia preocupada com o estado pulmonar de seus funcionários, tendo montado uma seção tisiológica. Entretanto, os relatórios assinados pelos médicos da empresa deixam notar que o principal objetivo do serviço clínico era impedir a admissão de operários infectados e não fazer o acompanhamento da saúde pulmonar dos funcionários que atuavam na companhia canadense.
Nesse encaminhamento, os trabalhadores não contavam com uma legislação que garantisse assistência médica e financeira digna àqueles que fossem vitimados pelo bacilo de Koch. Até mesmo o texto do decreto-lei no 7.036, promulgado em novembro de 1944 e considerado ‘avançado’, inclusive pelos críticos da ditadura estado-novista, serviu-se de palavras vagas sobre a Peste Branca ao estabelecer as modalidades de amparo legal aos acidentados do trabalho.
A possibilidade de um eventual enquadramento da tísica como moléstia favorecida pelo processo produtivo estava distante dos interesses dos empregadores e, por óbvio, mantinha-se rigorosamente afastada dos documentos oficiais. Considerado como problema de difícil resolução no contexto da ‘infortunística médico-legal’, a tuberculose foi precariamente examinada pelos autores da lei e pelos advogados que estudaram a legislação varguista, limitando-se todos eles a anunciar a dificuldade de amparo legal aos trabalhadores que fossem infectados no ambiente da produção.
Os confrontos entre o Estado e os órgãos previdenciários resultaram em quase nenhum apoio aos infectados. Mesmo que todas as discussões alimentadas pela administração varguista tomassem o trabalhador formal como ponto de referência e alvo de uma possível política social, o tratamento dispensando aos tuberculosos pobres ocorria independentemente da modalidade de engajamento no processo produtivo. Excluído do amparo governamental, de regra, o tísico necessitado foi considerado ‘indigente’ e nesta condição buscava assistência e abrigo nos serviços médico-sanatoriais mantidos pela caridade pública.
A administração tisio-sanitária em São Paulo
Os sucessivos interventores indicados por Vargas para comandar a administração pública paulista, espelhando o direcionamento federal, assumiram a tutela da sociedade, fazendo a apologia de que o Estado constituía-se na única instância com legitimidade e capacidade suficientes para garantir a concretização dos interesses coletivos.
A influência federal no território bandeirante assentou-se na produção de uma copiosa legislação que pretendia garantir o controle das decisões tomadas nas múltiplas esferas da burocracia regional. A área da Higiene Pública foi, de imediato, um dos setores mais visados pela administração ‘revolucionária’, sobretudo porque a reforma sanitária realizada em 1925 conferiu autonomia ao sistema regional de saúde, instituindo os Centros de Saúde e os localizando como ‘eixo central’ do movimento preventivista e de tratamento dos enfermos no estado de São Paulo.
Um dos resultados da orientação assumida pelas autoridades paulistas impostas por Getúlio Vargas constituiu-se numa série de reformas que atingiram o Serviço Sanitário entre os anos de 1930 e 1931. Em conseqüência, o esquema higienista entrou em colapso, isolando o Instituto Butantan do organograma da Saúde Pública e, mais do que isto, reduzindo as atividades dos Centros de Saúde, que se transformaram em dispensários subordinados à Inspetoria de Higiene e Assistência à Infância.
A decisão oficial de ampliar o corpo de funcionários estaduais da saúde, sem contudo haver um planejamento adequado, frutificou em um verdadeiro caos, favorecendo a duplicidade de tarefas, a elevação dos custos dos serviços e, pior do que tudo isto, anulando as ações preventivistas em favor da medicina curativa.
A reorganização do aparelhamento sanitário bandeirante implicou inclusive na constituição de novos setores médicos e administrativos que deveriam responsabilizar-se, direta ou indiretamente, pela assistência aos fimatosos. Assim, ainda em fevereiro de 1931, foi criada a Seção de Profilaxia da Tuberculose, a qual deveria prestar atendimento dispensarial aos tísicos, realizando a tarefa que, antes do ‘Golpe de 30’, estava programada para ser implementada pelos Centros de Saúde.
Mais ainda, a carência de pessoal especializado nos serviços exigidos pela tísica levou a Secretaria de Educação e Saúde Pública – criada no âmbito das reformas – a tornar oficiais os cursos oferecidos pelo Instituto de Higiene que tinham como meta a qualificação de técnicos de laboratório e de radiografia. No ano de 1932, o mesmo Instituto foi autorizado a instalar em suas dependências um gabinete de radiologia, abrindo oportunidade para que o paulistano obtivesse gratuitamente a Carteira de Saúde, documento instituído como elemento imprescindível para a colocação no mercado formal de trabalho, segundo uma lei sancionada no mês de abril daquele mesmo ano.
A proposta centralizadora da administração varguista resultou também na desapropriação do dispensário da Liga Paulista Contra a Tuberculose, mediante um processo legal que tramitou por três anos, encerrando-se a favor do Estado apenas em setembro de 1934. Acredita-se que este fato constituiu-se em mais um episódio da longa série de confrontos entre o médico Clemente Ferreira e as autoridades estaduais e federais.
Toleradas com certa benevolência no período anterior ao golpe de Vargas, as palavras ferreirianas sobre a ausência governamental no combate à Peste Branca foram entendidas como peças subversivas pelos interventores federais, desaguando no confisco do dispensário especializado e no afastamento do Dr. Ferreira do cargo de funcionário do Serviço Sanitário. Iniciou-se assim o declínio da influência e a marginalização do diretor da Liga Paulista Contra a Tuberculose, entidade que perdeu poder no mesmo passo que seu idealizador.
As tentativas reconciliatórias da administração pública com o diretor da Liga Paulista somente ocorreram alguns anos depois, quando o governador Armando de Salles Oliveira buscou homenagear o clínico, rebatizando o dispensário encampado com o nome de seu fundador, aproveitando a solenidade para indicar para a direção do órgão o médico Antonio Tisi Neto, amigo e principal discípulo do Dr. Ferreira. Na mesma oportunidade, o Serviço Sanitário alardeou que o centro de atendimento dos fimatosos seria transformado em um instituto de pesquisa da Peste Branca, função que, aliás, já vinha sendo desenvolvida pelo dispensário desde o início de suas atividades.
O alijamento do tisiologista Clemente Ferreira do comando das ações anti-tuberculose inscreveu-se no contexto centralizador, policialesco e pouco tolerante às críticas que ganhou dimensões maiores a partir da guerra paulista de 1932. Apesar disso, são constantes as vozes que tentam buscar outras explicações para a apropriação oficial do até então único dispensário filantrópico do estado de São Paulo.
Segundo esta vertente de entendimento, o confisco governamental deve ser creditado aos elevados custos exigidos pela assistência aos consuntivos, sendo o Estado a instância melhor capacitada para dispor de recursos de alta monta. Em coerência com este enunciado, tem-se apregoado que o Dr. Ferreira foi poupado – e não punido – pela administração pública que, solidária com as múltiplas atividades desempenhadas por este especialista, buscou liberá-lo da árdua tarefa de angariar os fundos necessários para o funcionamento do dispensário.
Excluído das discussões oficiais, mesmo assim Clemente Ferreira continuou a cobrar do Estado participação efetiva nas campanhas centradas na infecção pulmonar. No ano de 1935, durante uma solenidade em que compareceram inúmeras autoridades da administração pública, assim se pronunciou o tisiologista:
As falhas e lacunas da nossa organização sanitaria contra o mórbo, a deficiencia ainda sensivel do nosso armamentarium antituberculoso, e a falta de uma coordenação metódica e de uma indispensavel articulação dos poucos aparelhos de que dispomos, explicam de sobejo porque não conseguimos ainda recúo sensível do nosso obituário pela grande endemia. (Ferreira, s.d.:276)
O resultado da escassa intervenção do Estado na questão tisiológica e da ineficiência dos profissionais de saúde agregados aos serviços estaduais pode ser constatado na curva ascendente produzida pelo número de óbitos causados pela tísica na cidade de São Paulo. Nesta metrópole, durante a primeira metade dos anos 30, a tuberculose alcançou índices bem superiores aos da década anterior, pois, se em 1923 a cidade apresentou uma taxa de 113,18 óbitos por consunção em cada 100.000 habitantes, dez anos depois este índice se elevou para 138,72, denunciando a velocidade alarmante com que a moléstia se disseminava pela urbe, fenômeno que se reproduzia em todas as regiões do estado (Grieco, 1939:9).
A explicação oficial para o avanço da Peste Branca, inevitavelmente, convergia para a exigüidade dos recursos públicos, numa conjuntura em que a crise econômica estava afetando todo o sistema capitalista. A urgência de se criar novos canais de captação de verbas para a saúde fez com que, desde janeiro de 1933, passasse a vigorar uma lei estadual que impunha taxação especial sobre a prática de jogos realizados em cassinos e clubes populares. Apesar disso, é de se perceber que o estado de São Paulo despendeu anêmicas verbas na luta contra a tísica, sendo que no período de 1932 a 1945, as despesas anuais com o Grande Mal variaram de 0,94% a 2,05% do montante de dinheiro destinado à Saúde Pública paulista.
Em conseqüência, as ações desenvolvidas pela Seção de Profilaxia da Tuberculose foram extremamente limitadas durante a maior parte da década de 30, ocupando poucas páginas nos relatórios administrativos oficiais. Em 1936, por exemplo, enquanto Clemente Ferreira calculava em 400 mil o número de fimatosos existentes no país, sendo 54 mil deles só no estado de São Paulo, os dados fornecidos pelo governo do Estado informam que a ação pública resumia-se ao gerenciamento do Instituto Clemente Ferreira e de um dispensário inaugurado no distrito do Brás, o qual pouco depois teve suas atividades encerradas por ‘absoluta falta de funcionários’.
Mesmo assim, durante aquele ano, cerca de dez mil indivíduos procuraram espontaneamente os serviços públicos de tisiologia, ocorrendo a identificação de aproximadamente mil novos casos de tuberculose, sendo que nem todos puderam seguir tratamento devido à escassez de profissionais especializados nessas unidades de saúde. As ações preventivas com base na aplicação da vacina BCG também se mostraram precárias, sendo inoculados apenas 1.432 crianças e adolescentes, fato que elevou para 5.301 o número de indivíduos imunizados no estado de São Paulo, desde o ano de 1929, quando começou a funcionar o Serviço regional de vacinação.
O frágil empenho oficial em intervir com eficácia na questão sanitária determinou que as iniciativas privada e filantrópica ocupassem a função primordial de tratamento e assistência material aos consuntivos e seus dependentes. Como resultado, a década de 30 testemunhou a constituição de uma rede de sanatórios que, concentrada na cidade de São Paulo e nas prefeituras sanitárias de Campos do Jordão e São José dos Campos, encontrava sustento nas mensalidades cobradas aos pacientes e nos donativos promovidos pela caridade pública.
Segundo o tisiologista Paula Souza (1939:330), no final daquele decênio existiam no estado de São Paulo “menos de 2 mil” leitos reservados para os consuntivos, sendo que uma parte das vagas estava desativada, pois as doações oferecidas pela sociedade eram reduzidas e o “tuberculoso custa caro”.
O único apoio dado pela administração pública aos sanatórios paulistas constituiu-se em irregulares dotações orçamentarias, sob o compromisso das casas de saúde beneficiadas acolherem gratuitamente alguns pectários encaminhados pelo Serviço Sanitário, ou ainda para que os sanatórios expandissem o número de seus leitos.
Os dados oferecidos em 1936 pela Comissão de Assistência Hospitalar da Secretaria da Educação e Saúde Pública informam que as verbas oficiais destinadas aos nosocômios especializados foram da ordem de 1.790:471$312, sendo que a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia paulistana foi a instituição mais beneficiada, recebendo cerca de um quarto do total das doações para promover melhorias nos prédios dos dois sanatórios que estavam sob seu gerenciamento.
O rumo da administração paulistana em relação ao Grande Mal sofreu sensível correção a partir de 1938, refletindo a mudança que se processou em nível federal no que dizia respeito ao ‘inimigo número um da saúde pública nacional’. Nesse mesmo ano, o médico Adhemar de Barros foi nomeado interventor federal em São Paulo, dando início a mais uma alteração na organização e nas estratégias diretoras do aparelhamento sanitário regional.
A nova reforma geral dos serviços de Higiene Pública foi inaugurada com o decreto 9.247, de junho de 1938, por meio do qual foi criado o Departamento Estadual de Saúde, sendo definitivamente extinto o Serviço Sanitário. Os motivos alegados para a remodelação do setor foram vários, sendo o principal deles o argumento de que as sucessivas alterações ocorridas na estrutura administrativa da saúde coletiva haviam transformado o órgão em um setor ineficiente e que se mostrava inoperante, enquanto inúmeras enfermidades de caráter infecto-contagioso expandiam seus domínios no estado de São Paulo.
A orientação adhemarista restabeleceu o funcionamento dos Centros de Saúde como unidades basilares dos serviços de Higiene Pública. Concomitantemente a esta decisão, a voz oficial assumiu o retrocesso causado pelo conjunto de reformas realizadas nos primeiros anos do período varguista, confidenciando que a extinção dos Centros de Saúde, no início da década de 30 do século passado, deveu-se sobretudo às pressões de ‘muitos clínicos’ que denunciaram tais núcleos de atendimento aos enfermos como desleais concorrentes dos consultórios privados.
Superado o conflito, um decreto datado do mês de junho de 1938 determinou a imediata reativação de uma dezena de Centros de Saúde nos distritos da Capital e a transformação das Delegacias de Saúde e dos Postos de Higiene interioranos em ‘unidades sanitárias ecléticas e polivalentes’. Tudo isto, segundo o Dr. Raul Godinho, diretor do Departamento Estadual de Saúde, para permitir que o Brasil definitivamente deixasse de ser ‘um vasto hospital’.
Como órgão orientado, inclusive para assistência aos doentes do peito, os Centros de Saúde contavam obrigatoriamente com horários de atendimento exclusivo aos tuberculosos e também com um corpo de visitadoras sanitárias que, dentre as suas funções, deveriam percorrer as residências situadas nas áreas consideradas de maior incidência da tísica, com a missão de localizar e encaminhar para tratamento os possíveis casos de infecção consuntiva, além de ensinar à população os cuidados preventivos contra a contaminação pelo bacilo de Koch. Nesse sentido, os Centros de Saúde foram definidos como ‘porta de entrada’ dos fimatosos para o sistema especializado de saúde, cabendo a estas unidades a decisão sobre a necessidade ou não de isolamento sanatorial dos tísicos.
Ainda em conformidade com a remodelação de 1938, o Departamento de Saúde manteve no organograma a Seção de Profilaxia da Tuberculose, estabelecendo como seu objetivo básico a garantia de funcionamento do Instituto Clemente Ferreira. Entretanto, no mesmo ano, o relatório elaborado pelo Dr. Marques Simões, diretor da Seção, deixou claro as péssimas condições em que se encontrava o antigo dispensário da Liga Paulista: número insuficiente de servidores, salários inferiores aos que eram pagos em outras repartições sanitárias, desorganização burocrática, inexistência de móveis e arquivos e escassez de material imprescindível para a realização de pesquisas e para o tratamento dos infectados que recorriam ao Instituto.
Apesar da precariedade comprometedora dos serviços de socorro aos tributários da Peste Branca, em fins do mesmo ano de 1938 foi inaugurado o Hospital-Sanatório do Mandaqui, o primeiro nosocômio construído e mantido pelas verbas estaduais e direcionado exclusivamente para o atendimento de pacientes consuntivos. Localizado na zona norte paulistana, a casa de saúde foi aberta com a presença de Getúlio Vargas e Adhemar de Barros, constituindo-se em cerimônia que marcou o início da efetiva participação oficial no movimento de edificação de sanatórios voltados para o isolamento sanitário do proletariado e das camadas médias.
O prestígio alcançado por Adhemar de Barros e por sua esposa Leonor Mendes de Barros em conseqüência do empenho de ambos em participar do movimento contra a Peste Branca mostrou que o assistencialismo orientado para os tuberculosos poderia fornecer ao interventor o apoio popular necessário para as futuras disputas políticas. Por isso, mais do que em qualquer outro estado, em São Paulo frutificou uma série de promessas que anunciavam a rápida criação de um grande número de sanatórios financiados pelas verbas paulistas, apesar da constância de menções ao compromisso do presidente da República em co-patrocinar os projetos nosocomiais.
No relatório elaborado pelo Serviço de Assistência Hospitalar de São Paulo referente ao ano de 1938, encontram-se registrados os planos de criação de cinco novos sanatórios públicos, o que representava o acréscimo de mais de mil leitos à disposição dos consuntivos. É significativo que todos já tinham recebido denominações apropriadas para o tempo: três deles receberam o nome de Adhemar de Barros, enquanto cada um dos demais foi batizado com o nome do presidente da República e da primeira-dama do estado de São Paulo.
Enquanto as promessas da construção de novos sanatórios se reproduziam com uma velocidade singular, na verdade, ainda dispunha-se de poucos leitos destinados para os tuberculosos que viviam no estado de São Paulo. Segundo o relatório referente ao ano de 1938, existiam na área paulista apenas 1.412 leitos destinados aos tuberculosos, representados pelo funcionamento de sanatórios e abrigos situados nos municípios de São Paulo, Campos do Jordão, São José dos Campos e Tremembé e ainda pelos pavilhões especializados das Santas Casas de Santos, Campinas, Bragança Paulista e Sorocaba.
Os administradores públicos, em todo o território nacional, haviam se mantido excessivamente afastados do desafio tuberculoso. Assumida como grave ameaça para a saúde coletiva no início do período republicano, a Peste Branca e seus possíveis tributários só foram objetos de intervenção oficial nos últimos anos da década de 30 do século passado, quando o Brasil já se definia como um dos principais centros de tuberculosos do continente americano.
As tímidas tarefas desempenhadas pelos órgãos sanitários, no decênio anterior ao advento da estreptomicina, certamente influenciaram o ritmo de disseminação da moléstia pulmonar, sem, no entanto, inverter a tendência ascendente dos índices referentes à maior parte dos estados brasileiros.
Um estudo comparativo dos óbitos atribuídos à tuberculose nos anos de 1936 e 1945 indicam que, das 19 capitais estaduais averiguadas, 12 mantiveram-se em estado de ‘epidemia plena’ com índices crescentes, inclusive as cidades de Belo Horizonte, Recife, Salvador e Porto Alegre, enquanto a capital paulista e o Distrito Federal apresentavam taxas praticamente semelhantes nos dois períodos (Borges, 1948).
As evidencias sobre os estragos causados pela Peste Branca na população multiplicavam-se. Quando, no ano de 1943, “mais de 100.000” homens oriundos de todas as partes do país foram chamados pelo Exército para compor a Força Expedicionária Brasileira, entre 50% e 80% dos convocados de cada região militar foram declarados “incapazes definitivamente” para prestar o serviço militar, pelo fato de apresentarem uma ou mais patologias que comprometiam o desempenho físico dos recrutas. Nesse contexto, a tísica se apresentava como moléstia reinante – mas nunca publicamente quantificada – das baixas antecipadas (Gonçalves, 1951).
A recusa por parte do Estado e das Caixas em conceder assistência médica e previdenciária integral aos trabalhadores tuberculosos era fato consumado, colocando-se como tendência ininterrupta na primeira metade deste século. A decisão político-administrativa de tratar a legião de trabalhadores infectados como problema de difícil solução guardava íntima coerência com a diversidade de posicionamentos que instruíam os debates entre tisiologistas. Isso porque, refletindo as dificuldades sociais de entendimento da tuberculose e de suas vítimas, o agrupamento médico especializado mostrava-se crivado de dúvidas sobre como tratar os consuntivos e prevenir o avanço da enfermidade no terreno coletivo.