5
A educação pela tuberculose
São Paulo, como cidade que emblemava o progresso brasileiro, reunia em seu contexto uma boa síntese dos direcionamentos nacionais. ‘Moderna’, ‘industrial’, ‘cosmopolita’, a cidade era, naturalmente, um espelho fiel da problemática do país. A afluência de imigrantes e de migrantes convertia São Paulo em centro de fundamental importância para o enlace de questões que, afinal, extrapolavam as tensões internas brasileiras. Avanços da cultura e da ciência repontavam na capital dos paulistas, transformando-a em pólo de fermentação de idéias. A década de 30 do século passado é um eloqüente exemplo desta disposição – e a Universidade de São Paulo sua prova maior.
Vale, contudo, considerar que, independentemente do direcionamento identificado em São Paulo dos anos 30, havia uma anterioridade na vivência internacional e mesmo nacional com as questões pertinentes ao setor que, nas décadas recentes, recebeu o nome de ‘educação em saúde’. Pressuposto obrigatório para o entendimento da ‘filtragem’ da tuberculose como personagem, entre nós, é a análise desta situação.
As raízes da prática educativa em saúde
A partir de meados do século XIX, a medicina européia intensificou a busca de apoios nas técnicas pedagógicas, visando, com isso, a traçar estratégias de convencimento individual e coletivo sobre a urgência de reorganização da vida no contexto da cidade industrializada. A necessidade de construção de um ‘ser’ coerente com a modernidade e ao mesmo tempo avesso aos quistos de devassidão instalados nas cidades ensejou o florescimento do discurso educador em saúde. Assim, ganhou expressão uma multiplicidade de mensagens que, no mesmo compasso que bendizia a metrópole industrial, também confidenciava a nostalgia frente ao esmaecimento dos amparos comunitários e do zeloso moralismo garantidos pela tradição.
Como prática discursiva centrada na problemática dos grandes centros urbanos, o ensinamento higienista buscou impor, valorativamente, os conselhos que outrora eram ministrados pelos pais, padres e professores. Em nome da ‘verdade científica’, a medicina reclamava o direito de comando exclusivo das ações que tinham como objetivo estabelecer e divulgar as regras sanitárias que deveriam reger o comportamento individual e garantir o bom funcionamento da existência coletiva.
O manual que ensinava a cuidar da saúde assinado pelo médico Paul Good (1923) talvez seja o melhor exemplo deste posicionamento que falava dos ‘novos tempos’ com os olhos temerosos e melancólicos de um mundo que se transformava rapidamente. Traduzido em quinze idiomas, o texto do Dr. Good pretendia chamar a atenção dos jovens proletários para o perigo das enfermidades que poluíam as áreas urbanas, ensinando-lhes que as disposições higienistas eram produtos genuinamente derivados das leis morais.
A identificação da saúde do corpo com a correção do espírito colocava em foco a opção individual de encaminhamento da vida, abrindo oportunidade para a conclusão de que somente aqueles que cediam ao ócio, aos vícios e às tentações sensuais é que se tornavam fáceis presas do conjunto de patologias que sangrava o terreno metropolitano.
O fato da tuberculose ser considerada ‘doença social’ – e, portanto, limitada pelo regramento moral – determinou que a ampla disseminação da Peste Branca fosse tomada como argumento incentivador dos primeiros movimentos de educação em saúde. Como resultado, tanto nos Estados Unidos quanto na França, a ameaça tísica suscitou a criação de departamentos especializados na então chamada ‘educação sanitária’, a partir do ano que marcou o encerramento da Primeira Guerra Mundial.
No Brasil, o acompanhamento das tendências internacionais na reorganização dos serviços de Higiene Pública ocorrida após o advento da República estabeleceu como obrigação exclusiva do diretor do Instituto Sanitário Federal a tarefa orientadora da população, limitando este compromisso às quadras definidas pelas crises epidêmicas.
Foi somente no ano de 1921, por meio de uma nova reforma do setor saúde, que o país passou a contar com um órgão denominado Serviço de Educação e Propaganda Sanitária, encarregado de elaborar material didático destinado a instruir os cidadãos sobre os meios de evitar as pequenas e as grandes patologias que assolavam as áreas de concentração humana.
Consultas aos arquivos desta repartição demonstram que ela cumpriu acanhadamente seus objetivos, pelo menos no transcorrer da primeira década de funcionamento. Isso porque o Serviço de Educação e Propaganda Sanitária restringiu-se quase que exclusivamente a traduzir e editar as mensagens elaboradas no exterior, sem ao menos tentar adaptá-las à problemática brasileira, repetindo os folhetos preparados pela Comissão Rockefeller e pela Cruz Vermelha e distribuídos na Europa a partir do ano de 1919.
Os primórdios da ‘educação sanitária’ em São Paulo
A demora na ativação de um movimento oficial de orientação popular sobre os perigos do contágio consuntivo levou o médico Clemente Ferreira a, uma vez mais, ocupar posição pioneira no comando dos esforços educadores dos habitantes da cidade de São Paulo. O primeiro fruto do empenho da Liga Paulista Contra a Tuberculose em ensinar os princípios básicos de higiene à coletividade foi a publicação, em 1901, do texto preparado pelo médico norte-americano Samuel Knopf, acrescido de um capítulo assinado pelo Dr. Ferreira, no qual era ressaltada uma vez mais a ausência governamental na luta contra a doença pulmonar, fenômeno comum ao Brasil e a Portugal.
O insucesso do trabalho preventivo foi flagrante. A brochura distribuída gratuitamente à população era composta de 53 páginas preenchidas com letras minúsculas e um linguajar técnico que certamente condenaram o documento a ser peça ininteligível para a maior parte dos cidadãos.
Alguns anos depois, a Liga presidida por Clemente Ferreira voltou a incentivar a campanha educadora sobre a Peste Branca, desta vez fazendo publicar dois pequenos textos intitulados Instrucções populares sobre a tuberculose e Catecismo sobre a tuberculose destinado aos operários, que somavam palavras de fácil entendimento e ilustrações coloridas de vermelho, deixando claro o objetivo de chamar a atenção da parcela trabalhadora das principais cidades paulistas.
Nestes novos empreendimentos, o Dr. Ferreira ensinou que a tuberculose constituía-se em moléstia causada exclusivamente por um micróbio e que a patologia “persegue principalmente os pobres, os operários e os artistas” (Ferreira, 1908), negando a importância da hereditariedade na perpetuação da doença entre as famílias proletárias. Além disso, o médico alertou que todos deveriam se precaver contra o ‘mal dos pulmões’, consumindo alimentos saudáveis e em abundância, além de buscar moradia em residências arejadas, evitar exageros físicos e mentais e fugir das bebidas alcoólicas. Como se todas essas medidas fossem de fácil acesso ao conjunto da população citadina.
A escassez de recursos foi indicada como elemento impeditivo para que a entidade anti-tuberculosa desse prosseguimento às atividades educativas. Apesar da inexistência de informações precisas, acredita-se que, a partir de 1915, a Liga Paulista tenha restringido suas tarefas de esclarecimento público ao preparo de cartazes que eram expostos em ambientes hospitalares e nos locais de aglomeração humana.
Neste processo, enquanto os ‘catecismos’ patrocinados pela associação ferreiriana ensinavam as regras elementares de higiene, as mensagens inscritas nos cartazes tinham como destino alardear a periculosidade representada pela permanência dos pectários junto aos sadios, especialmente ao contingente infantil.
Representando emissários da doença e da morte, aconselhava-se que muitas coisas deveriam ser vedadas aos tuberculosos: a companhia de não contaminados, a conversa prolongada, o beijo no rosto e especialmente na boca, o aperto de mão, a oportunidade de trabalho, enfim, a solidariedade próxima. Na seqüência, os comunicados sanitários instruíam os indivíduos saudáveis a se manterem afastados de tudo o que tivesse a marca da fimatose, inclusive das residências onde viviam os doentes e dos locais onde tivesse ocorrido óbitos causados pela Peste Branca.
O posicionamento da Liga Paulista Contra a Tuberculose como paradigma nacional incitou as entidades congêneres, sediadas em outros pontos do país, a produzirem folhetos e cartazes próprios, sendo que todos eles guardavam nítida semelhança com os que eram preparados em São Paulo.
No território baiano, a campanha sanitária elegeu o agrupamento infanto-juvenil como população-alvo de suas pregações, servindo-se da tísica para tecer regras sobre o que ‘os meninos educados não deviam fazer’. A contínua reiteração do alerta ‘nunca’ – anunciado em letras destacadas – expunha a intenção coercitiva da propaganda, fazendo a apologia da conduta desconfiada para com todos, inclusive em relação às pessoas que partilhavam do círculo íntimo da vida doméstica. Neste encaminhamento, dentre os postulados divulgados pela Liga Bahiana (apud Ribeiro, 1956:72) Contra a Tuberculose, encontravam-se:
NUNCA beber agua no copo em que outra pessoa bebeu...
NUNCA permittir que qualquer pessoa lhes beije na bocca...
NUNCA beijar, abraçar, apertar a mão de um doente do peito...
NUNCA levar uma noite inteira accordado sem necessidade...
Após proceder ao alinhamento de uma infinidade de recomendações, os dizeres do mesmo cartaz lembravam aos incautos ‘meninos’: “NUNCA esquecer que, assim procedendo, mostram que têm educação e evitam muitas molestias entre as quaes a doença do peito”.
A veiculação de orientações como estas não satisfazia plenamente os interesses da medicina dos anos 20, que situou a ampliação dos esforços de educação sanitária em massa como um de seus principais compromissos postergados pelo Estado. Apesar da constância das denúncias, a burocracia oficial fazia-se de surda frente aos reclamos, confirmando pelo silêncio a pouca eficiência do Serviço de Educação e Propaganda Sanitária e, em oposição, o importante papel das Liga Estaduais como centros fomentadores das mensagens preventivas.
Uma das raras tentativas oficiais de participar do setor educativo em saúde no período anterior a 1921 deu-se em São Paulo, no âmbito das atividades articuladas pelo Instituto de Higiene. No ano de 1918, graças ao apoio da Fundação Rockefeller – interessada ao mesmo tempo em expandir a influência norte-americana na América Latina e garantir o prestígio da ‘medicina científica’ –, a entidade paulista inaugurou o funcionamento de um curso de formação de educadores sanitários, fazendo campanha para que as escolas de magistério incluíssem uma disciplina que discorresse sobre as regras básicas da saúde para os futuros docentes do ensino fundamental.
Como resultado, as unidades de educação elementar estabeleceram a instrução e a propagação dos postulados sanitários dentre os objetivos pedagógicos. Segundo um livro-guia organizado pelo inspetor do ensino estadual João Toledo (1925), ficava determinado que o programa de Higiene teria como finalidade promover a ‘moralidade do educando’, preparando as crianças para as tarefas de ‘cidadão prestativo’.
Neste direcionamento, uma vez mais os ensinamentos preventivistas entrelaçavam-se com as regras morais, exigindo que os professores criassem condições para que os aprendizes “adquirissem homogeneidade psychica” que os permitisse compreender inclusive os motivos que levavam “alguns individuos a se entregarem a tuberculose” (Toledo, 1925:8 e 146).
O material norteador que deveria chegar às mãos dos docentes e dos alunos infantis consistia na Cartilha de Hygiene, elaborada em 1923 pelo próprio Instituto de Higiene, sob a coordenação do médico e jurista Antonio Ferreira de Almeida Junior que, na década seguinte, seria responsável pelas aulas de Biologia Educacional na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Nas páginas desse livro de ensino, a moléstia consuntiva ganhou espaço privilegiado, reiterando as instruções que vinham sendo divulgadas pela Liga Paulista contra a Peste Branca.
No manual destinado às crianças, o horror à enfermidade desdobrava-se na rejeição aos tísicos, enfatizando a figura do infectado como um ser abjeto e assustador. As ilustrações guardavam íntima coerência com o texto, retratando o tuberculoso como um indivíduo feio, sujo, triste, alquebrado, perigoso, sendo o seu perfil muito próximo da representação clássica do Ceifeiro Implacável. Em contraste, a imagem do sadio confundia-se com os traços corporais cobrados dos filhos da burguesia: brancos, limpos, bem arrumados, vigorosos, musculosos, sorridentes, ativos e sempre dispostos ao trabalho.
A iniciativa paulista de confundir em um mesmo enredo o doente com o perfil da pobreza e da decadência moral e os saudáveis com a matriz comportamental acalentada pela elite, inevitavelmente projetou-se em outros estados, mesmo que nestes casos não houvesse o patrocínio da administração pública.
No Espírito Santo, por exemplo, o professor Collares Junior incluiu no seu livro de Moral e Civismo, publicado em 1930, um capítulo em que era retratada a trajetória de vida de um docente de escola primária que juntava às atitudes despóticas um semblante que lembrava a miséria econômica, sendo por ambos os motivos odiado pelos seus pupilos e também por seus familiares.
Após a minuciosa descrição do professor, Collares Junior decifrou as condicionantes da vida do estranho mestre, repartindo o segredo com uma legião de leitores quase crianças: o odiado professor tinha sido viciado pelo álcool na mocidade, motivo que o levou a se tornar fácil presa da tuberculose e também a ser pai de uma numerosa prole, toda ela composta por débeis mentais, aleijões, prostitutas e vagabundos, atribuindo-se ainda à infecção kochiana a ‘prole degenerada’ e a incapacidade do mestre de se relacionar afetuosamente com seus discípulos. Era com estas lentes embaçadas pelo preconceito que muitos estudantes entravam em contato com o personagem de pulmões corrompidos.
As alternativas educadoras
A ampla distribuição do Grande Mal nos ambientes urbanos contrastava com as fragmentárias e acanhadas tentativas educadoras que, ao se concretizarem, atingiam escassamente o público das cidades, inclusive porque o analfabetismo e o desconhecimento da língua nacional predominavam nos grandes centros urbanos do país. A crescente tisiofobia que animava os comportamentos sociais incitava a população a discutir as possibilidades da existência consuntiva, buscando motivos convalidadores dos preconceitos ajustados aos tributários da Peste Branca.
A leitura das fontes que guardam histórias de tuberculosos sugerem que tais narrativas foram contadas e recontadas em conversas grupais antes de ganhar registro escrito. Isto permitiu supor, num primeiro momento, que muitos destes fatos tivessem sido anunciados pela imprensa popular, tornando os jornais veículos disseminadores das notícias sobre os fracos do peito, sobrepondo-se em importância ao discurso médico-higienista articulado no período anterior à década de 30.
Os diários de São Paulo, entretanto, incorporando o direcionamento da imprensa nacional, pouco se ativeram ao personagem tísico, assumindo como regra a constante reprodução em suas páginas de textos assinados por clínicos e por laboratórios comprometidos com a causa da tuberculose, exponenciando os perigos do contágio, sem, contudo, abordar a possível periculosidade do personagem enfermo. Acompanhando estes artigos, havia também notas que informavam sobre as atividades desenvolvidas pelos movimentos filantrópicos de apoio aos infectados pobres.
Raros foram os instantes em que os principais jornais paulistas se reportaram aos estigmas produzidos em torno da condição fimatosa. Em uma das primeiras menções ao tema, em 1875, A Provincia de São Paulo serviu-se da imagem da patologia apenas como metáfora esclarecedora da notícia, intitulando de “Ouvido de phthisico” um texto que versava sobre a peculiaridade de um europeu sadio que ganhou fama por distinguir a marca de fábrica das armas, apenas ouvindo o som do estampido dos projéteis.
Em outros momentos, quando a notícia versava sobre o crescimento do número de cortiços na ‘Metrópole do Café’, o tuberculoso mantinha-se como personagem de referência obrigatória, reiterando-se então a associação entre doença pulmonar e vida desregrada e improdutiva.
O afastamento da imprensa das notícias centradas nos personagens consuntivos fez com que outras fontes documentais fossem consultadas. Na busca de apoios, a literatura nacional ganhou sentido revelador, pois, com ritmo diverso do que prevalecia na imprensa e imitando o modelo que projetou os irmãos Goncourt, cumpriu a tarefa de vasculhar os segredos da condição consuntiva, apresentando-se como desdobramento complementar do saber hipocrático.
Com isso, os escritores brasileiros tornaram-se indiscretos auxiliares dos esculápios, favorecendo a operação na qual a literatura apoiava-se nos princípios médicos para conferir peso realista aos seus enredos e a medicina, por sua vez, alimentava-se das descrições ficcionais da vida e dos sentimentos dos infectados para justificar suas pontificações sobre a ‘psicologia’ diferenciada dos pectários.
As observações literárias igualmente auxiliaram na tarefa esclarecedora da população que, movida pela curiosidade e pelo medo, reclamava orientações sobre como se comportar frente aos enfermos dos pulmões. Todos, médicos e leigos, queriam saber sobre as condicionantes da vida contaminada pelo bacilo de Koch, recorrendo por isso aos textos ficcionais ou ouvindo ‘causos’, muitos deles tecidos pelos escritores de larga aceitação pública.
Estava aberto o caminho literário para a devassa da existência tuberculosa. Seguindo o modelo estrangeiro, os autores brasileiros buscaram inspiração no realismo cientificista para descrever a individualidade enfermiça. Nesta cirurgia, a pena literária serviu-se sobretudo de uma nova concepção de peste que, roubada dos ensinamentos tradicionais e das cogitações médicas, tingiu o pectário com cores berrantes, situando-o como uma ameaça constante para as coletividades aprisionadas nas malhas da modernidade urbano-industrial. Entre a fantasia e a vulgarização científica, a literatura brasileira ratificou a metáfora identificadora da tuberculose com o mal, oferecendo novos alertas aos sadios sobre os perigos resultantes do convívio com os ‘entisicados’.
A ‘literatura tuberculosa’
Um dos primeiros escritores nacionais a romper – pelo menos em parte – com a visão romântica sobre os adoentados do peito foi Machado de Assis (1957). Assumidamente evitando a incorporação de personagens tísicos em suas criações, nas raras oportunidades que Machado discorreu sobre o tipo consuntivo, tratou logo de decretar-lhe a morte, como ocorreu com a tuberculosa Maria Luísa, no conto A causa secreta, publicado em 1896.
Definida como a “velha dama insaciável, que chupa a vida tôda, até deixar um bagaço de ossos” (1957:112), a tísica aflorou como um mal associado à malignidade imputada ao homem moderno. Machado de Assis evitou divagar sobre os sentimentos íntimos que animavam o comportamento da infectada, mas o mesmo não ocorreu em relação ao marido da personagem que, apresentado como sádico, comprazia-se em amputar e lançar à fogueira animais vivos. Na continuidade do texto, o escritor deixou claro que a moléstia pulmonar ramificou em uma criatura “nervosa e frágil”, incapaz de suportar a perversidade do esposo.
Nas três décadas e meia que se seguiram à publicação do conto machadiano, nenhum outro literato situou o personagem tísico como vítima dos descalabros dos sadios dos pulmões. Os sucessores de Machado de Assis fugiram das considerações filosóficas de Quincas Borba para, em seu lugar, entronizarem o seu oposto, Borba Sangue, o personagem médico criado pelo também médico Neves-Manta (1930).
O novo paradigma explicador das tramas existenciais dos infectados foi pouco a pouco sendo construído neste intervalo de tempo, centrando suas conclusões na filha mais cara do positivismo clínico, a endocrinologia. Motivado pelo novo braço da medicina, que reduzira o corpo humano a um ‘armário de glândulas’, Borba Sangue não teve dúvidas ao pontificar: “a vida é um processo de experimentação. De equilibrio physio-glandular. De tendente equidade sociogenica. Domina-te! Corrige-te!” (Neves-Manta, 1930:109).
A obediência a este enunciado determinou que a comunidade dos ficcionistas emprestasse vigor próprio ao pressuposto hipocrático que localizava o tuberculoso no círculo vicioso que, inaugurado pela perversão dos costumes, conduzia à tísica, sendo a enfermidade então responsabilizada pelo aprofundamento da degradação dos sentidos e pela ampliação das tendências pervertidas. Por isso, os murgerianos Mimi e Rodolphe parecem inocentes demais se comparados aos pectários apresentados pela literatura brasileira. No contexto nacional, os personagens tuberculosos foram excessivamente diabolizados, conferindo uma identidade própria e aterrorizadora a um grande número de peças ficcionais compostas nas três primeiras décadas deste século.
Espelhando esta tendência, no final do século XIX, o maranhense Coelho Netto (1924) produziu um conto onde o elemento tísico ganhou sentido na figura de Isidro, jovem burguês que, enviado a Portugal para graduar-se em Direito, aproveitou-se da ausência paterna para entregar-se à bebida, ao ópio e às orgias, encontrando abrigo carinhoso nos braços de uma linda cigana. Frágil do físico desde o nascimento, todos os exageros comprados a peso de ouro só poderiam levá-lo a um desfecho único: a hemoptise anunciadora da tuberculose.
Obrigado a retornar ao Brasil, pouco tempo Isidro permaneceu na cidade do Rio de Janeiro, sendo enviado pelo médico da família para o clima seco e fresco do sul da Bahia. Uma vez mais distanciado dos progenitores, o enfermo entregou-se à vida desregrada, agora não por vontade própria, mas sim em conseqüência da ‘febre tuberculosa’ que acreditava-se deformar os mecanismos do corpo e da mente, produzindo a depravação do comportamento.
Amasiado com uma mulata sensual, Isidro ao mesmo tempo infectou e engravidou a amante que rapidamente caminhou para o óbito. Concomitantemente à piora do estado da saúde do viajante, a tísica impunha ao seu súdito todas as suas marcas, inclusive o misticismo, levando-o a encontrar a morte no altar de uma capela sertaneja.
Nas linhas do conto assinado por Coelho Netto foram associados os principais estigmas atribuídos aos doentes do peito: vida dissipada, irresponsabilidade social, egocentrismo, hipersexualidade e ‘loucura mística’. A partir de então, foram estes os temas explorados pela imaginação dos escritores nacionais que, iniciantes ou não, encontraram na exposição da pretensa trajetória de vida tuberculosa a garantia do sucesso editorial, oferecendo farto material que sugeria o funcionamento íntimo dos segredos que pontuavam a privacidade dos infectados.
Assim ocorreu com o estreante Théo-Filho (1923:62-123) que, no ano de 1910, obteve os primeiros reconhecimentos da crítica e dos leitores ao discorrer sobre a vida privada de alguns tipos cariocas, na coletânea intitulada Dona Dolorosa. Apresentada por Silvio Romero como uma obra que expunha “a vida como ella é na sua largueza ordinaria”, o conto que empresta nome ao volume centra a narrativa na descrição da atormentada Cecília, amasiada com o jornalista Julião, por sua vez um fracassado aluno da Faculdade de Medicina carioca.
Logo após efetivar a vida em comum, Julião passou a se torturar com a aparente frigidez sexual da companheira, ex-lésbica, que nos momentos iniciais da união com o jornalista limitava-se a realizar suas “satisfações mórbidas (...) pela imaginação, no vicio solitario”. Inquirida insistentemente pelo amante, Cecília confessou sua tara: o êxtase sexual só era alcançado se arrancasse e bebesse o sangue do corpo do companheiro. Feita a confissão, a mulher que os amigos apelidaram de Dona Dolorosa passou a apresentar um “monstruoso appetite genesico” e também inusitado apego religioso, já que até o sangue divino, estilizado no santo crucifixo, estimulava o prazer da ‘desregrada’.
Atormentado pela conduta da amásia, Julião recorreu aos alfarrábios que lhe restaram do curso de medicina para, em um momento de desespero, lançar suas suspeitas sobre a companheira: “Tenho nojo de ti. (...) Tens então lama nas veias, em vez de sangue! ... És um monstro... com certeza filha de monstros...”.
Ato contínuo, o ‘macho inútil’ completou a sua insultuosa análise:“cobrindo de defeitos à mãe della, a todos os seus antepassados cheios de mazellas no sangue e nos nervos, talvez syphliticos, com certeza alcoolicos, quem sabe se não tysicos! Que familia torpe! E elle que se deitara com um trapo daquella dymnastia!”
A trama se desenrola fazendo do jornalista um detetive que, no final das investigações, descobriu uma série de fatos sobre o pretérito de Dona Dolorosa, coerente com as suas desconfianças: a mãe de Cecília era uma decadente e tuberculosa prostituta do Mangue, que vendia o corpo para sustentar o marido beberrão. Cecília havia sido gerada em um momento de embriaguez do casal, às vistas dos freqüentadores da casa de meretrício, nascendo menina fraca, marcada ela também pelo comprometimento pulmonar.
A aberração do comportamento da tísica Cecília foi apresentada como fruto natural da herança biológica familiar e da condição infectada. Para uma personagem assim tão carregada de estigmas, não restavam outras possibilidades senão o manicômio ou o necrotério. Théo-Filho optou pela segunda alternativa, fazendo a ‘impudica Dona Dolorosa’ suicidar-se, não sem antes uma vez mais entregar-se à ‘maldição de Onan’, com os olhos voltados para as chagas do filho crucificado de Deus, lembrando o desfecho que a francesa Jane de La Vaudère dera ao seu livro intitulado Os Androgynos.
A morte ou o hospício. Estes eram os caminhos que a literatura escolhera para os personagens fimatosos, selando a impossibilidade dos tuberculosos permanecerem no convívio com os sadios. Algumas vezes os escritores cruzavam as opções, como fez Pedro de Castro Canto e Mello, escritor que alcançou relativo sucesso com textos moralistas, tornando-se literatura recomendada para os alunos adolescentes dos internatos religiosos.
Em Almas em Delirio, editado em 1912, Canto e Mello incorporou a teoria médica segundo a qual a doença de Koch e a loucura eram patologias associadas, compondo o que ele próprio classificou como sendo um ‘estudo psicológico’. Advogado de profissão, o escritor justificou o embasamento clínico de sua obra pelo fato de ter encontrado incentivo e orientação junto ao Dr. Franco da Rocha, diretor do então denominado Hospício dos Alienados do Juqueri, a quem o autor dedicou o livro.
Almas em Delirio foi anunciada como uma ‘história verdadeira’, tendo como personagem central um major do Exército, acobertado pelo pseudônimo de Rogério Duarte. Após ganhar distinção como herói nacional pela atuação na guerra do Paraguai e na Revolta dos Mucker, o militar contraiu casamento com Carolina, moça interiorana e rica, desejosa dos prazeres oferecidos pela metrópole.
Ambiciosa e egoísta, a mulher impôs ao marido uma ‘comunhão satânica’, exigindo que Rogério empenhasse todos os seus bens na aquisição de roupas, jóias, perfumes e em festas elegantes. Exaurido economicamente, o militar pouco a pouco se viu despojado de tudo, até da galhardia de herói nacional. Desgostoso pela ‘má escolha da consorte’, Rogério passou a ausentar-se do lar, varando noites nas tavernas e nos bordéis, até se tornar alcoólatra e toxicômano, recorrendo insistentemente ao parati, ao clorofórmio e ao ópio para minimizar os desgostos da vida.
A partir deste ponto, o leitor fica em dúvida sobre a veracidade dos fatos, já que a trama foi narrada na primeira pessoa do singular. Entre a alucinação e a realidade cerraram-se tênues cortinas que direcionam Rogério para a insanidade mental e para a tuberculose. Alucinado pela idéia de que Carolina o traía com o clínico encarregado de seu tratamento, o militar tenta assassinar o facultativo, sendo tomado em seguida por ‘agulhadas no peito’ e, na seqüência, pela hemoptise.
O manicômio configurou-se como o caminho imediato de isolamento, sendo que o doente permanece pouco tempo no hospício, até mostrar-se livre dos delírios. Porém, a devastadora tísica o obrigou a estabelecer moradia em Campos do Jordão, onde esperou a morte pôr termo às suas angústias. Ocorrido o óbito, os jornais paulistanos seguiram o protocolo, registrando falecimento do herói nacional como resultado de ‘antigos padecimentos’.
Nessa trajetória, o major Rogério Duarte não foi apresentado como vítima de um casamento infeliz. Diferentemente da machadiana Maria Luísa, o personagem criado por Canto e Mello (1912:15) foi responsabilizado pelo ‘inferno’ em que se transformou sua vida, mensagem que desponta na introdução do ‘depoimento’ do frustrado herói militar: “Quando não tenha outro merecimento, servirá [o texto] ao menos de lição e de exemplo àquelles que sendo, como eu, talhados para o bem, se tornam, por sua culpa, enormemente desgraçados”.
A fantasia literária mostrava-se insaciável na exposição pública das aberrações pretensamente produzidas pelo bacilo tuberculoso. A percepção distorcida da realidade e a exaltação egocêntrica que animavam os figurantes consuntivos tinham como desdobramento novas versões ficcionais que declaravam-se instrumentos dissecadores da vida privada dos contaminados.
Este caminho de fácil exploração motivou também o desconhecido escritor Elias Cecilio, perene ausente das avaliações literárias sobre as primeiras décadas deste século. No seu livro Demonios e Semideuses, lançado no ano de 1933, a tuberculose dirige as ações de Aulo Santerre, um homem rico e de destaque no mundo dos esportes, que se apaixonou por uma pectária que escondeu até à morte a sua condição enfermiça.
Infectado, Aulo descobriu-se doente logo após tomar ciência da causa do repentino falecimento da amada. Em resposta à sua tragédia, o enfermo resolveu vingar-se do mundo, empenhando o resto da sua vida na disseminação do bacilo de Koch. Para atingir este objetivo, o ‘perverso Aulo’ passou a promover contínuas festas que degeneravam em bacanais regados pelo absinto e pela morfina, exigindo nestes encontros que todos os presentes bebessem de um mesmo cálice, previamente contaminado pelo germe da morte. Próximo do fim, o consuntivo ocupou seus derradeiros instantes de vida locupletando-se de sua própria maldade, feliz porque havia ‘marcado’ todos os seus parceiros de devassidão.
As cenas de pretenso realismo sobre a conduta corrompida dos tísicos encontrou verificação maior em uma extensa passagem de um livro apresentado como coletânea de ‘crônicas policiais’ e intitulado Noites de Plantão, sendo seu autor o delegado paulistano Amando Caiuby (1923).
Nesta obra, destaca-se o drama que envolveu Leopoldo e Olivia, um casal do interior paulista que perdeu todos os seus bens na busca da cura da doença pulmonar que minava Leopoldo. Moradores em Mogi-Guaçú, a miséria econômica e a tísica impuseram a transferência do casal para a cidade de São Paulo, onde o tuberculoso esperava encontrar assistência médica patrocinada pela filantropia.
Leopoldo, no entanto, teve seu internamento hospitalar rejeitado pela Santa Casa, sendo obrigado a alugar um quarto num cortiço localizado no bairro operário do Brás. Na habitação coletiva, o doente logo selou inimizade com o senhorio, não só porque atrasava o aluguel, mas também porque sua tosse contínua amedrontava os demais inquilinos. Em resposta aos reclamos, o consuntivo esfaqueou um dos vizinhos, sendo encaminhado à chefatura da polícia.
Na delegacia central, Leopoldo foi acometido por uma violenta hemoptise, sensibilizando o delegado que não só o perdoou como ainda forneceu dinheiro suficiente para o casal mudar a residência para Campos do Jordão. Na estação de cura, o infectado deixou-se dominar pela ‘tara consunptiva’, mostrando-se enciumado pelos olhares cobiçosos que os sadios lançavam sobre Olivia. Ao perceber a proximidade da morte, o ‘egoísmo’ e a ‘distorção dos sentidos’ impostos pela tísica fizeram o doente fingir-se recuperado, para assim contaminar a acompanhante, pois, tomado também pela ‘febre de sensualidade’, Leopoldo forçou a esposa a lhe conceder íntimos ‘agrados e carinhos’.
Atingido o lúgubre propósito, o fimatoso dominado pelo ‘cérebro doentio’, confessou à companheira:
— Filha, vou primeiro. Morro contente, porque sei que me acompanhas. Fingi-me são, para poder contaminar-te. Perdoe-me. Amei-te muito para deixar-te sosinha aos outros. (...) Os meus beijos mataram-te. És nova, não sofrerás tanto, acabarás depressa. Por despedida mais um beijo, aqui, na bocca... (Caiuby, 1923:40)
Quanto maior fosse a ‘febre, e o suor frio, e a tosse, e o desespero’, maior também seria a maldade dos infectados. Em coerência com este postulado, no livro de estréia do médico e escritor José Geraldo Vieira (1922), intitulado A Ronda do Deslumbramento, os vários personagens retratados carecem de nome próprio, sendo todos eles rotulados apenas pela identidade da doença que os afligia. No império enfermo visitado pelos literatos, os indivíduos perdiam destaque, constituindo-se apenas em apagados coadjuvantes que permitiam que a tuberculose, a grande personagem, pronunciasse na plenitude o seu poderio de deformação moral e de extermínio da raça humana.
Completando a tarefa decifradora do doente dos pulmões, os ensaios ficcionais também foram utilizados para descrever os traços físicos que tornavam possível o reconhecimento imediato dos perigosos filhos do Grande Mal.
Se o corpo emagrecido e o escarro sangüíneo foram os elementos mais constantemente invocados, outros detalhes eram anunciados como reveladores da condição enferma: as orelhas despregadas da cabeça, dentes escurecidos, audição afinada, unhas quebradiças, olheiras profundas, pele manchada, ombros caídos, pilosidade rara ou mesmo inexistente, corpo trêmulo, gesticulação exagerada, voz rouca e uso de roupas quentes nos meses de verão ou de pijama sob a roupa exibida publicamente.
Seguindo o compromisso identificador dos fimatosos, ainda nos anos 20, Amadeu Amaral compôs o seu Memorial de um Passageiro de Bonde, texto publicado postumamente, no qual o autor narra o cotidiano de um homem, sob o pseudônimo Felicio Trancoso (1938), nome também emprestado a um burocrata que se comprazia em observar seus companheiros de condução.
Na posição de espectador, Trancoso fantasiava conhecer na intimidade várias pessoas que compartilhavam com ele a viagem de bonde. Dentre os passageiros examinados, destaca-se uma mulher que o voyeur batizou com o nome de Rufina. A coincidência de ambos partilharem do mesmo veículo dia após dia, permitiu que Trancoso detalhasse em seu diário as características da mulher: vigorosa, sempre animada e sorridente, trabalhadora, enfim, plenamente sadia.
Uma manhã, porém, Rufina ausentou-se do bonde, fato que se repetiu por dois meses consecutivos. Esgotado este tempo, Rufina reapareceu, sendo imediatamente notada por Trancoso. Entretanto, ela não apresentava mais a vitalidade que havia excitado a imaginação do memorialista. O encanto feminino tinha se corrompido monstruosamente, sendo substituído pelo depauperamento do físico e pela palidez do rosto. O ‘regato da montanha’ tinha sido depredado, tornando-se um lúgubre ‘ribeirão turvo do vale triste’.
A brusca decadência do corpo e o estado de desânimo identificado pelos olhos do espectador não deixavam dúvidas. O diagnóstico feito por Trancoso garantia que a passageira do bonde havia sido aprisionada nas ‘garras da bruxa horrenda e bela’, a tísica. A doença de Koch fez com que o memorialista perdesse todo o interesse pela companheira de viagem, e por isso a pretensa enferma deixou de povoar as fantasias do burocrata.
A ânsia literária de dimensionar a condição tuberculosa impunha que não só o pectário, mas também os seus parentes próximos fossem apresentados sob a pecha da periculosidade e do desregramento. Idéia veladamente manifestada pela medicina, a defesa da existência de estirpes condenadas pela Peste Branca foi amplamente vulgarizada pelos escritores brasileiros, motivando a sociedade a se afastar das famílias em que houvesse casos da infecção.
Como exemplo, citam-se os conselhos emitidos por Otoniel Mota, um pastor protestante que ocupou o cargo de professor do Departamento de Letras da Universidade de São Paulo. Pai de uma tuberculosa e co-fundador de vários sanatórios protestantes, mesmo assim o professor Mota escreveu textos nos quais pregava a proibição de alianças entre famílias sadias e clãs assolados pela tísica, encobrindo-se sob o pseudônimo Bar Joseph (1936).
Em um de seus romances, que contou com sucessivas edições patrocinadas pela Igreja Protestante, o religioso colocou palavras de censura na boca de um de seus personagens, motivando-o a denegrir a intenção de casamento entre um rapaz cuja única mácula era ser sobrinho de um pectário e uma moça de estirpe sadia: “— Que direitos tem um rapaz de exigir da mãe de familia que lhe dê para o tálamo um corpo virginal quando ele só lhe pode oferecer em troco um corpo ascoroso, envilecido no deboche, corroido de molestias repelentes?” (Joseph, 1936:178).
E, como os parentes da pretendida viam com simpatia o enlace, o autor, na mesma página – como voz que paira sobre a trama –, pontificou: “E o mais triste é que bons pais de familia (...) já tenham aceitado esta situação como normal, em vez de organizarem uma liga de resistência moral que santificasse a familia em proveito da espécie”.
A literatura que se definia como ‘realista’ conferia ao tuberculoso e aos seus próximos as cores da morte e da exclusão. Qualquer outra versão sobre os doentes do peito era considerada desproposital e falsa.
Por isso, quando o fimatoso Ribeiro Couto publicou, no ano de 1931, o romance Cabocla, seu texto foi alvo de inúmeras críticas, não pela qualidade da narrativa, mas sim pelo fato do autor ter tratado do encontro de dois tísicos destituídos de estigmas e que, apaixonados, encontram a ambicionada cura. Para os analistas do período, a recuperação da saúde e a felicidade não rimavam com a vida infectada.
Nas cogitações ficcionais, a figura do tuberculoso tinha se confundido com os produtos negativos da sociedade moderna, fazendo do verbo ‘entisicar’ um indicativo do que favorecia o nojo, a decadência espiritual e corporal e, por fim, a morte. A metáfora estava pronta para ser empregada sem qualquer reticência.
O desconhecido cronista Romeu de Avellar (1932), por exemplo, não poupou esforços para, ao avaliar tudo o que procedia de Minas Gerais, como sendo coisas e pessoas ‘entisicadas’, pois filhos da ‘bruxa chupada’ que simbolizava a ‘terra tuberculosa dos mineiros’.
Contando com maior popularidade e aceitação que a medicina educadora, a literatura deixou-se entusiasmar pelo enredo tuberculoso, ganhando relativa autonomia frente ao que era ensinado pela clínica. Sob o compromisso de retratar as cenas que se repetiam nas praças públicas e atrás das portas fechadas, os escritores brasileiros deram corpo à tendência universal de estigmatizar as vítimas das doenças infecto-contagiosas, isolando-as num plano em que os filhos da elite – bem mais do que os trabalhadores pobres – perdiam-se no labirinto dos prazeres, pagando os vícios prazerosos com a moeda da saúde.
Afastada dos retratos da miséria, a literatura burguesa produzida no Brasil preferiu dedicar-se às especulações sobre os efeitos da tísica dentre os representantes das classes mais abastadas da sociedade, pouco falando dos enfermos pobres e, neste encaminhamento, divergindo das apregoações clínicas.
Dissecadora da ‘psicologia’ do consuntivo, a literatura mostrava-se agente enriquecedor da tuberculofobia, constituindo-se em um dos mais ativos pólos discriminadores dos enfraquecidos do peito, disseminando representações negativas sobre os que tinham seus corpos e suas trajetórias sociais afetados pela tuberculose.
O objetivo imediato: a construção do ‘Homem Novo’
A reorganização da burocracia e do aparelhamento da Higiene Pública que tomou corpo a partir da instalação do Estado Novo resultou na revitalização do Serviço de Educação e Propaganda Sanitária, sediado no antigo Distrito Federal, e na criação de órgãos congêneres e de alcance estadual, nas áreas estratégicas do país.
Situar o incremento do interesse oficial pelo ensino das regras salutares apenas como reflexo ideológico do período seria cair em esquemas simplistas de análise, que pouco contribuiriam para o entendimento da questão. Por isso, pensa-se na existência de um projeto médico-pedagógico que vinha sendo acalentado desde as últimas décadas da centúria anterior e que encontrou, na fase ditatorial do governo de Getúlio Vargas, condições propícias para a sua concretização, como dispositivo disciplinador e de atualização do que era então denominado como ‘hábitos e comportamentos’ que caracterizavam o tecido coletivo.
Entendida como tarefa necessariamente comandada por membros da academia hipocrática, a educação em saúde tornou-se instrumento privilegiado pelo Estado para conter a disseminação das enfermidades e também para afinar a vida dos cidadãos com os padrões modernos que idealisticamente deveriam reger a existência do proletariado industrial. Nesta ação, o médico travestiu-se de educador, reclamando para si o comando das tarefas orientadoras da higiene e da moralidade que deveriam promover o bem-estar individual e o compromisso produtivo da vida em sociedade.
A tendência de aceitação coletiva da autoridade médica sobre o corpo social colocou a comunidade dos clínicos e dos sanitaristas como um dos principais grupos dirigentes do projeto modernizante nacional. Cumpria-se assim o sonho dos esculápios que, nas décadas anteriores, bradavam contra os erros e as mentiras pronunciadas sobre os corpos, as patologias e a moralidade e que ganhavam foro de verdades, quando pronunciadas a partir da cátedra leiga, do púlpito e dos conselhos paternos.
A premissa forjada na Alemanha e aqui insistentemente divulgada por Afranio Peixoto (1913) segundo a qual ‘todo mundo é um pouco tuberculoso’ conjugava-se com a ampla disseminação da Peste Branca no território nacional. Somados os fatores, a tísica serviu mais do que qualquer outra enfermidade para garantir a intervenção médica na vida pública e na esfera privada, tornando-se moléstia de referência obrigatória em qualquer aconselhamento sanitário. Neste processo, estruturou-se a medicina social brasileira que, buscando apoios na clínica, na psicologia, na sociologia e na pedagogia, cobrava aceitação inconteste ao declarar que a saúde pulmonar era resultado natural da ‘prática de ações limpas’ e da ‘vida sobria, temperante, moderada’.
Neste contexto, o objetivo da medicina social e educadora constituiu-se na tarefa regeneradora da população brasileira, criando condições para a efetiva capacitação do capital humano nacional. Sob o lema de ‘preservar, recuperar e aumentar a capacidade do trabalhador’, a Saúde Pública, atrelada ao Estado, contribuiu decisivamente para a construção do ‘Homem Novo’, coerente com a proposta de modernização econômica e social encaminhada por Getúlio Vargas.
Afinal, chegara a hora propícia para implantar a sociedade disciplinada pelos facultativos. “Pensai na educação, brasileiros!” era o grito heróico lançado pelo clínico e deputado constituinte Miguel Couto, no ano de 1933, pouco antes de morrer. Mas, qual seria o objetivo da educação a ser implantada? O próprio Dr. Couto deixava o direcionamento, com mote inconclusivo e nada original, emprestado dos jargões norte-americanos: “O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever!”.
A definição paulista
Em São Paulo, a nova orientação federal resultou inclusive na criação da Seção de Propaganda e Educação Sanitária (Spes), órgão ligado diretamente ao Departamento Estadual de Saúde. Contando exclusivamente com funcionários médicos no início de seu funcionamento, o novo setor apresentou como meta combater os principais ‘flagelos sociais’ que se abatiam sobre a população bandeirante, por meio do ensino de hábitos de vida considerados saudáveis, reiterando em documento interno que: “A Educação Sanitária, difundida em todas as camadas da população, é a medida básica para a conquista e garantia da saúde coletiva, que, por sua vez, é o fator primordial da prosperidade e da riqueza do povo”.
Para atingir tal objetivo, a Spes bandeirante contou com sofisticadas técnicas pedagógicas que vinham sendo desenvolvidas nos Estados Unidos e na Europa. Neste sentido, o manual de educação em saúde organizado pelos médicos norte-americanos Bauer e Hull (1937) representou o mais importante elemento incentivador dos clínicos e dos educadores paulistas, guiando a preparação do material educativo, pelo menos até o término da década de 50.
No esforço normatizador e preventivista, a Seção de Propaganda e Educação Sanitária inaugurou a produção de uma grande quantidade de folhetos, cartazes, folders e brochuras que, elaborados com um linguajar simples, de fácil entendimento e repletos de ilustrações coloridas, concorriam com os almanaques presenteados pelas indústrias farmacêuticas, abrindo uma nova fase das ações pedagógicas na área da saúde.
A garantia da distribuição gratuita dos panfletos higienistas determinou que, mesmo em outros estados, os textos da Spes ganhassem ampla divulgação, fato que obteve abrangência maior quando o governo paulista decidiu incentivar a imprensa, os canais radiofônicos e os cinemas de todo o país a reproduzir os conselhos sanitários preparados em São Paulo, visando com esta medida a atingir o maior contingente possível da população brasileira, inclusive a parcela de analfabetos.
Surgiram assim as Edições Populares da SPES de S. Paulo, denominação genérica e que incluía várias coleções de textos elaborados por ou sob a orientação da medicina social paulista. Deste conjunto de mensagens destacam-se as séries Coletânea e Romances, sendo que, até 1945, os leitores da Coletânea foram brindados com nove livros de bolso, cada um deles contando com 50 a 70 enredos curtos e tematizados pela saúde coletiva, enquanto a coleção Romances, representada por livretos de 32 páginas, editou no mesmo período pelo menos um texto que dissecava personagens tuberculosos.
No final, ambas as séries ganharam grande divulgação popular, inclusive porque foram bem aceitas pelos diretores dos meios de comunicação que, por volta de 1942, reproduziam regularmente os alertas sanitários nas páginas de 363 jornais e 22 revistas, assim como os veiculava por intermédio de 16 emissoras de rádio, sob formato novelístico.
A análise desse núcleo documental impõe como tarefa inicial a necessidade de identificação dos personagens aproximados pelas mensagens higienistas. Isto porque, apesar do discurso sanitário se apresentar universal e dirigido para todos os estratos sociais, na verdade foi dimensionado para servir como peça de convencimento de grupos específicos da sociedade, identificados não só pela posição que ocupavam no corpo coletivo, mas também por circularem em ambientes geográficos particulares.
A obediência a esta fórmula determinou que a orientação preventivista direcionasse seus ensinamentos para os moradores do espaço metropolitano, ou melhor, para a “babel urbana”, onde homens provenientes de várias partes do país e do globo confluíam em busca de novas oportunidades de vida. Nesta trajetória, a clínica educadora advertia que a cidade se apoderava dos homens, ditando o ‘ritmo alucinante’ da existência grupal e individual. Em continuidade, o território urbano foi visto como a pátria do egoísmo e da perdição, onde o ‘vício depravado’ e a ‘corrupção dos costumes’ comprometiam a regularidade da vida e os ‘altos ideais coletivos’, resultando no ‘contínuo desgaste das energias vitais’.
O resultado de tudo isso não poderia ser outro: “Em geral, o aspecto de um cidadão com seus 40 anos é bom, porem dentro do seu arcabouço ósseo-muscular trabalha o germe da destruição precoce, que pode levá-lo à tumba muito antes do que deveria ser” (Coletânea 6, 1942:118).
Nesta operação, o eugenismo médico chamou para si a tarefa de ‘recuperação da raça’, utilizando a intervenção educativa para instruir as coletividades urbanas sobre o código saudável que fora acoplado à concepção de ‘vida moderna’. Erigia-se assim a imagem do locutor das mensagens sanitárias como a voz clínico-epidemiológica e moralista que, escudada na razão da ciência positivista e na ética cristã, variava o tom entre o conselho amigo e a imposição autoritária, exigindo sempre o silencioso acatamento das idéias que veiculava.
Todos aqueles que se contrapunham à obediência coletiva ganhavam o epíteto de ‘traidor’ da causa comum, sendo enquadrados nesta categoria não só os que se negavam a cumprir as considerações protetoras da própria saúde, mas também aqueles que, por desleixo ou por ganância, induziam outras pessoas ao erro, destacando-se nesta condição os pais despreocupados com a higiene física e moral de seus rebentos e especialmente os farmacêuticos que usurpavam a exclusividade médica para clinicar e se desfazer de seus estoques terapêuticos encalhados.
Na seqüência, seria ingênuo supor que os enunciados educativos visassem a atingir a população urbana como um todo. A proposta de capacitação para a vida moderna situava o proletariado com raízes fincadas no solo metropolitano e os grupos pobres e com escassa experiência citadina como setores privilegiados do norteamento higienista.
O médico Octavio Gonzaga (1941), ex-diretor do Serviço Sanitário paulista e um dos principais expoentes da burocracia da saúde durante o período varguista, talvez tenha sido o personagem que melhor definiu o método e o objetivo da prática pedagógica que imperou durante o Estado Novo. Para ele, a educação higienista deveria ter como base um ‘discurso positivo’ que, evitando a abordagem aprofundada das noções clínicas, se concretizasse como mensagem de pronto entendimento para o público-alvo das campanhas de saúde, representado unicamente pelas ‘classes trabalhadoras’.
O direcionamento das ações educadoras para a população proletária tinha explicação: era o operariado fabril e os empregados do setor de serviços que mostravam maior fragilidade em relação à ‘sede de ouro’, condenando estes grupos à perene rebeldia contra a ‘pobreza honesta’, marca que os coagia a trocar o vigor físico e a honra por qualquer aceno de dinheiro, poder e prazeres fáceis.
Segundo o Dr. Gonzaga, os trabalhadores diferenciavam-se da elite endinheirada por colocar tudo de lado para satisfazer a ânsia de riqueza, inclusive os fundamentos morais que dão conformidade à vida social e os princípios higiênicos que garantem a saúde individual e a produtividade coletiva. Para reforçar este posicionamento, o ex-diretor do Serviço Sanitário invocou a trajetória de vida dos filhos da pobreza que sacrificaram a saúde e a moral para alcançar fortuna e prestígio. Nesta tarefa, o médico preferiu afastar-se dos paradigmas nacionais, citando como exemplos os ‘modernos ditadores da Europa’, implicitamente referindo-se às biografias de Hitler e Mussolini, personagens que, sintomaticamente, haviam sido diagnosticados como ‘fracos do peito’ nos anos de adolescência.
Para evitar que o Brasil gerasse ‘monstros’ iguais aos que estavam colocando fogo na modelar Europa, a medicina social prescreveu uma série de reparos no que inicialmente foi denominado de ‘alma popular’. Mas, segundo os intelectuais orgânicos do Estado Novo, qual seria a essência deste espírito coletivo? A resposta talvez possa ser encontrada em um dos artigos de abertura do primeiro volume da Coletânea, em que um autor anônimo pontificou que as marcas centrais do ‘trabalhador brasileiro’ constituíam-se na postura individualista e na rebeldia frente aos dispositivos legais que davam forma à nação, já que a população urbana tinha sido moldada pelo ‘sentimento liberal, que é a linha mestra da sua consciência’.
A substituição do termo ‘alma popular’ pela categoria ‘nacionalidade’ dominou as peças educadoras, exigindo que os médicos colhessem inspiração nos modelos estrangeiros para aconselhar uma profunda reforma dos comportamentos sociais. Por isso, durante o período em que Getúlio Vargas mostrou-se reticente em apoiar um dos blocos envolvidos na Segunda Guerra Mundial – situação que foi explicada pelos higienistas como sábia decisão presidencial para não criar tensão emocional na sociedade e favorecer o enfermamento coletivo – a comunidade hipocrática brasileira, sempre cautelosa, apregoou o estilo de vida vigente na neutra Noruega como o padrão que deveria ser reproduzido por todos os brasileiros.
Apesar da surpresa causada pela opção, a idéia foi prontamente incorporada pelos educadores sanitários paulistas, resultando na multiplicação de textos que apontavam para o exemplo escandinavo como antídoto recuperador do degradado caráter urbano brasileiro. Em nome da preservação da ordem e da saúde pública, assim foi apresentado o ‘reino do equilíbrio’:
A Noruega é o País da Cocanha dos nossos tempos. Real, vivo, feliz. (...) Cada um tem o seu lugar. (...) Por isso a vida desliza numa planície. E não é sacudida pelo entrechoque das ambições pessoais desmedidas. Tudo é ajustado. (...) O Homem norueguês é calmo, controlado, mesmo nos gestos, no olhar, na palavra. Detesta a violência. Tem horror às cenas. Aos dramas expostos. Tudo que venha a ferir a harmonia ambiente ecôa forte como escândalo. Que o norueguês abomina. Há na sociedade norueguesa um admirável meio têrmo. Um equilíbrio inalterável. Que é a civilização. (Coletânea 1, 1939:67).
Entretanto, após a entrada do Brasil no conflito mundial, os conselhos educadores experimentaram sensíveis revisões. Em coerência com o novo alinhamento político da nação, o modelo norueguês foi preterido em favor da agitação e da operosidade yankee.
Nas páginas da Coletânea, os ‘irmãos do norte’ ganharam destaque, inclusive por meio de artigos assinados por norte-americanos que, em uníssono, convergiam para elogio do american way of life. O vestuário e o calçado, a alimentação e as regras sociais, o amor ao trabalho e a fidelidade ao presidente da República e à Constituição nacional, o bônus de guerra e a organização sanitária, tudo foi examinado como moderno, funcional e saudável porque forjado nos Estados Unidos.
Ademais, os higienistas brasileiros ansiavam em ver reproduzido no Brasil o mesmo juramento solene que se dizia firmar nos lares de todos trabalhadores norte-americanos, apresentado pelo vice-presidente norte-americano Henry Wallace: “Comprometo-me, pela minha honra de americano, a fazer todo o possível para que eu, minha família e os que me cercam nos tornemos cada vez mais robustos e saudáveis, como Deus sempre quis que o sejamos”(Coletânea 7, 1942:61).
Neste contexto, a tuberculose como principal flagelo sanitário que se abatia sobre a população tornou-se o tema mais invocado nos textos produzidos pelo setor educativo do Departamento de Saúde de São Paulo. Os perigos e os efeitos desastrosos da Peste Branca inspiraram a matéria presente em centenas de conselhos, constituindo-se, assim, em recurso básico da medicina social para a comunicação com as ‘classes trabalhadoras’. Em nome da tísica, buscava-se orientar os contingentes pobres, em conformidade com os princípios da vida moderna, equilibrada, saudável, honesta, enfim, de utilidade produtiva para a nação.
O fundamento norteador do discurso em saúde era a asserção que definia a tuberculose como uma patologia cujo diagnóstico, prognóstico e terapêutica eram minuciosamente conhecidos pela clínica que, nesta condição, dispunha de recursos eficazes para assistir e recuperar a saúde de qualquer infectado. A dimensão curável imposta à enfermidade estabelecia que ‘só é doente quem quer’, atribuindo-se inteira responsabilidade aos (des)caminhos da existência individual como fator desencadeante da infecção kochiana.
Assim, o tísico era qualificado, em conformidade com as posturas que proliferavam especialmente nos Estados Unidos, como um personagem egoísta que deixou-se contaminar porque se manteve cego frente aos interesses coletivos, transformando-se duplamente em pária da sociedade, já que, além de se tornar improdutivo, exigia ser sustentado pela caridade pública.
No encaminhamento do processo pedagógico, os avisos sanitários buscavam abranger as diferentes faixas etárias, cobrindo integralmente os membros das famílias trabalhadoras. Estabelecendo o consuntivo como objeto passivo de intervenção, os médicos e os educadores empenharam-se no convencimento dos adultos como possíveis vítimas do mortal contágio e também como responsáveis pelas crianças que poderiam ser infectadas pelo micróbio da tísica.
Aos adultos, os sanitaristas apresentavam a Peste Branca como patologia ainda mais tenebrosa que a hanseníase. Isto porque, ensinava-se, enquanto os leprosos podiam ser facilmente identificados e subtraídos do convívio comum, o mesmo não acontecia com os tuberculosos que, protegidos pelos discretos sinais produzidos nas primeiras etapas da enfermidade, permaneciam em contato com os sadios, poluindo o ambiente e espalhando propositalmente as sementes da morte.
Considerado como a ‘hidra de mil cabeças’, o Grande Mal foi declarado inimigo maior do tecido social. Exigia-se, assim, de cada indivíduo o compromisso ‘moral e cívico’ de preservar a própria saúde como tributo ao Estado e aos interesses coletivos. A partir do apregoamento de um estilo ‘equilibrado’ de vida, a medicina cobrava dos moradores da urbe ‘idéias sadias’, devendo cada um afastar-se o máximo possível das ‘festas desnecessárias’, das ‘más companhias’ e inclusive do casamento com ‘pessoas duvidosas’ que inexoravelmente resultavam na perpetuação do exército de ‘viciados’ e ‘degradados’ que atentavam contra a existência e o poderio nacional.
A vida comedida e os hábitos e ideais salutares tinham como contraponto educativo a condição existencial dos tísicos, muitas vezes caricaturada por meio de referências biográficas dos personagens da história e da literatura romântica. Longe das análises exaltadoras que vigiam em épocas anteriores, os sanitaristas preconizavam os tipos cultuados no século XIX como doentes dos pulmões que ‘tombaram no verdor dos anos’ em conseqüência dos erros higiênicos cometidos contra o próprio organismo e também contra o ambiente em que viviam. Neste encaminhamento, o médico Américo Netto concluiu que: “Os boêmios românticos foram assim criaturas predestinadas para todo cortejo de extravagância que, com as vicissitudes da fome, levou muitos deles ao túmulo” (Coletânea 8, 1942:101).
Advertia-se também que o principal foco de contágio constituía-se nos próprios indivíduos com os pulmões corrompidos. Mais do que a poeira das casas e das ruas e o leite e as carnes contaminadas, o tísico era denunciado como o agente central da disseminação consuntiva, aconselhando-se a todos guardarem cautelosa distância dos estranhos, pois eles bem poderiam ser os emissários da peste. Nesse sentido, mereciam desconfiança não só os magros que escarravam sangue, mas também o ‘tipo florido’ – versão educativa do ‘aparentemente sadio’ – que, gordo e ágil, poderia ocultar em sua aparência enganosa o ‘germe maldito’.
Reforçando ainda mais o horror à aproximação com os pectários, as mensagens médicas empenhavam-se em exacerbar os medos coletivos por meio da divulgação de tétricas descrições, nas quais o reino da tuberculose se expandia como resultado da negligência alimentada pelos sadios. Muitas páginas da Coletânea foram dedicadas para a minuciosa narração de casos em que a tísica fazia mais e mais súditos, identificando o ambiente da infecção com o espaço e as práticas urbanas.
Assim, o mortal contágio poderia ocorrer tanto no interior de um bonde ou de uma repartição pública, onde as pessoas forçosamente eram obrigadas a permanecer muito próximas umas das outras, quanto na solidão de uma biblioteca, pois, se o volume consultado tivesse sido anteriormente manuseado por um fimatoso, havia boas chances para que o incauto leitor fosse assaltado pelo bacilo de Koch.
A desconfiança e a vigilância recíproca deveriam ser ainda mais intensivas quando a saúde das crianças estivesse em risco iminente. Definida como ‘o Homem de amanhã’ pelos cartazes que a Spes paulista fazia afixar nas salas de espera de todos os Centros de Saúde do estado, alertava-se a população e os pais que ‘protegê-la é nosso dever’.
As mensagens sanitárias, portanto, ganharam maior intensidade ao tratar das possibilidades do contágio infantil, orientando os adultos para exigir a apresentação de Carteira de Saúde de todas as pessoas que mantivessem contato diário com crianças, incluindo professores, empregados domésticos e especialmente as mulheres que serviam como amas-de-leite. Mesmo situações embaraçosas para a harmonia familiar deveriam ser enfrentadas sem receio, quando a saúde infantil estivesse em jogo: caso existisse um tio que denunciasse uma ‘tossezinha nicotínica’, dever-se-ia proibir-lhe o acesso aos pequenos, assim como o ‘danoso hábito’ do beijar ou dormir no mesmo quarto que acomodava os petizes.
A puberdade constituía-se em momento da existência em que eram ampliadas as chances do indivíduo ser assaltado pelo micróbio fimatoso. As alterações físicas próprias desta fase do desenvolvimento orgânico somavam-se ao dispêndio de energia cobrado pelos estudos e pelo início da faina produtiva, debilitando o corpo e tornando-o presa fácil da tuberculose.
Na continuidade das observações, os higienistas pregavam que, bem mais do que estas condicionantes, os novos ‘hábitos’ assumidos pelos adolescentes predispunham à moléstia consuntiva, incluindo neste processo o namoro e o comparecimento diário aos bailes, teatros, bares e cassinos. Encantados com os prazeres da vida, os jovens desarmavam-se das defesas físicas e morais, entregando-se passivamente ao avanço destruidor da moléstia pulmonar, cabendo por isto à educação em saúde dedicar-se com especial empenho no regramento desta parcela imprudente da população.
O romance da tísica
As imagens sobre a doença e o doente do peito frutificaram também na coleção Romances elaborada pela Seção de Propaganda e Educação Sanitária paulista. Ao contrário das outras séries, onde os médicos higienistas praticamente monopolizavam a produção discursiva, as ‘obras ficcionais’ publicadas pelo Departamento de Saúde contavam com a habilidade literária de vários escritores profissionais e de larga aceitação pública, encontrando-se dentre eles Afonso Schmidt, Orígenes Lessa e Galeão Coutinho.
Avizinhados da prosa naturalista do século XIX, os ‘romances’ educativos utilizavam como principal recurso de composição o confronto entre dois personagens, sendo que cada um deles incorporava uma opção moral e um horizonte de vida. Esta estratégia permitia a comparação entre ‘hábitos e comportamentos’ antagônicos, tornando facilmente inteligível a premissa que denunciava as enfermidades como resultado inevitável da vida desregrada.
Apesar de várias peças literárias patrocinadas pela Spes dissecarem a trajetória e os sentimentos de personagens secundários que provavelmente estivessem com os pulmões corroídos, o texto assinado por Afonso Schmidt (c. 1944) intitulado O Gigante Invisivel ganha destaque por se constituir numa obra toda centrada em torno da Peste Branca e seus tributários. O livreto impressiona não só pelo direcionamento imposto à trama, mas também pelas ilustrações desenhadas por Paulo Camiller Florençano.
Diferentemente dos demais volumes da coleção, a capa da peça em questão chama a atenção pelo colorido vermelho forte utilizado em sua composição, opção que ao mesmo tempo lembra a tonalidade sangüínea e o sinal de alerta. O desenho da folha de rosto do ‘romance’ retrata um homem de costas, sugerindo alguma coisa entre o abatimento físico e a displicência frente ao perigo que ronda, sendo este representado por uma mão descomunal com unhas afiadas, oferecendo a dimensão da ameaça que a qualquer instante se apoderará do incauto, roubando-lhe a saúde e a vida.
A ilustração de abertura ganha desdobramento no texto dedicado à descrição da trajetória de Carlos, um migrante que chega à ‘capital’ (que bem pode ser a cidade de São Paulo, informação que nunca é confirmada) ‘esbanjando saúde’ e que imediatamente encontra colocação em um escritório de contabilidade. O fascínio pela agitação metropolitana e a condição de solteiro e sem qualquer compromisso familiar induzem o recém-chegado a obedecer um comportamento desleixado, aceitando abrigo no quarto de uma fétida pensão, onde a qualidade da comida e da higiene em nada garantiam o bem-estar dos hóspedes.
Os cenários de trânsito do migrante desdobram-se no ambiente de trabalho, onde Carlos é identificado inicialmente como ‘bom trabalhador’ e ‘solícito companheiro’ pelos demais escriturários. Em pouco tempo, porém, profundas transformações começaram a ocorrer nas atitudes do novato que, deixando-se seduzir pelas ‘más companhias’ que conheceu nos bares, passou a se alimentar irregularmente, preferindo “enganar o estomago com pasteis e pinga” e gastar as horas noturnas em desatinadas conversas nas esquinas, sempre terminando a madrugada na ‘farra’. Optando por este ritmo de vida, Carlos voltava as costas para a sombria realidade:
a tuberculose é a doença da miséria. Nas nossas grandes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Salvador, a sua multiplicação é rápida, acompanha o pulsar de um relógio. Há, não se sabe onde, um gigante de clava em punho, que não se cansa de desferir golpes sôbre golpes... Tic, tac, tic, tac... Mais um, mais um, mais um, mais um... Esse gigante feroz é invisivel... Chama-se Dom Bacilo... (Schmidt, c.1944:21-22)
A ausência de repouso e de alimentação adequada conjugava-se com a bebida alcoólica e as companhias comprometedoras, levando o migrante a uma situação única: a fraqueza física. Desdenhando dos nítidos sinais da degradação corporal, Carlos manteve-se convicto freqüentador das noites, fato que contribuiu ainda mais para exponenciar os desarranjos que consumiam o corpo, resultando inclusive em contínua irritação e incapacidade para o trabalho cotidiano.
Foi neste contexto de perdição individual que Afonso Schmidt colocou em cena César que, apesar de guardar semelhanças biográficas com Carlos, foi apresentado como a imagem oposta do forasteiro que se deixou impregnar pelos desvarios da ‘cidade grande’. Migrante e destituído de laços familiares, mesmo assim César mantinha uma existência ‘casta’ e ‘equilibrada’ e, na condição de ‘guia dos perdidos’, interessou-se pelo destino do parceiro de escritório, advertindo-o sobre os mortais perigos representados pelos prazeres vendidos nas madrugadas e que pouco a pouco levavam os desajuizados para o túmulo.
Inicialmente, o ‘rapaz perdido’ desdenhou dos conselhos oferecidos pelo amigo, mas, na continuidade do ‘enfraquecimento físico’, Carlos viu-se preso ao leito da pensão, sem forças até mesmo para caminhar até o escritório onde trabalhava. A ausência do funcionário rebelde chamou a atenção de César que, ao visitar o enfermo, percebeu de imediato a presença do ‘Gigante Invisível’.
Com a ajuda do amigo, o tuberculoso passou por um verdadeiro processo de conversão moral, abjurando da antiga ‘vida de estróina’, fato que o levou a freqüentar o gabinete de um médico que, além de lhe ensinar as regras básicas de higiene, informou que a tísica constituía-se em ‘doença curável’, cuja evolução dependia dos ‘sacrifícios’ aos quais o paciente consentisse submeter-se.
A convicção de que o restabelecimento da saúde pulmonar dependia da imediata mudança de ares levou Carlos a buscar residência em uma localidade pouco afastada do burburinho urbano, apresentada como região de qualidades climatoterapêuticas e própria para o repouso prolongado. Amparado pelos donativos feitos mensalmente pelos seus colegas de escritório, o tuberculoso foi gradualmente recuperando a antiga disposição física, fazendo então um juramento ao tisiologista encarregado de seu tratamento:
— Muito obrigado, doutor. Quando eu voltar à cidade e ao trabalho, procurarei fazer pelos outros o que César fêz por mim. Direi a muita gente: cuidado, seus bobos, vigiem constantemente a saúde, não se esqueçam do que ia acontecendo ao Carlos... (Schmidt, c.1944:32)
Pelo menos na literatura, o trabalhador brasileiro fez um juramento muito aproximado àquele preconizado pelo vice-presidente dos Estados Unidos.
Pergunta-se: por que a Peste Branca, apesar do empenho médico e governamental anunciado, não cessava de expandir seu reinado na ‘Chicago sul-americana’? Se a explicação maior era localizada no ‘caráter reacionário das classes produtivas’ em acatar o norteamento médico, a vertente populista inaugurada por Getúlio Vargas inspirou os agentes educativos a detectarem na apatia do grupo dirigente da indústria e do comércio paulista um fator coadjuvante na escalada da tísica.
As mensagens articuladas pela Spes paulista, em alguns momentos, definiram os ‘capitalistas’ como um grupo que, igualmente ao proletariado, carecia de formação moral e sanitária coerente com os princípios norteadores do Estado Novo. Em continuidade, rogava-se que a elite dirigente esbanjasse menos dinheiro na aquisição de ‘caríssimos automóveis’ e ‘finíssimos vestidos elegantes’ e repartisse com o Estado o ônus representado tanto pela assistência aos pectários quanto pela construção de sanatórios. Além disso, a classe patronal foi colocada no banco dos réus por contratar funcionários sem a exigência de apresentação da Carteira de Saúde e, ainda, afastar-se da orientação paternalista consagrada pelo presidente Vargas.
Foi com um certo olhar nostálgico que um sanitarista anônimo apresentou em um dos volumes da Coletânea um texto que diagnosticou a principal lacuna aberta no relacionamento ‘moderno’ entre os capitães da indústria e seus subordinados:
É o caso do patrão generoso que não quer intervir na vida privada do seu empregado de escritório, e o vê chegar sonolento ao trabalho, depois de uma noitada de dansa ou de bebedeira. Quantos aborrecimentos e quantas lástimas não seriam evitados se nesse momento viesse o conselho ou a reprimenda, dados por quem tem força moral para fazê-lo? (Coletânea 1, 1939:48)
Seguindo este encaminhamento, uma vez mais a administração sanitária paulista se colocou à frente da Saúde Pública Federal que, menos produtiva, mostrou-se reticente em assumir um discurso pedagógico abrangente. Os educadores sanitários de São Paulo, por sua vez, buscaram dar sentido universal às mensagens preventivistas, recorrendo a um código informativo que, evitando declarar-se tipicamente paulista, mesmo assim contextualizava a problemática específica da região.
A composição de um discurso cujo locutor postava-se como agente cosmopolita e moderno enfatizava, em gênero, as condições de vida das metrópoles – quaisquer que fossem elas – pontificando a positividade dos valores e condutas que confluíam para a disciplinarização do ‘capital humano’ nacional. A atualização dos corpos e das mentes favoreceria, a um só tempo, a produção e o consumo de mercadorias, dando direcionamento apregoado como ‘racional’ aos comportamentos que, afinal, deveriam consolidar os mecanismos regentes da formação social brasileira.
Uma outra educação: os tuberculosos ‘ricos’
Apesar da ampla divulgação das recomendações educadoras em saúde produzidas pela Seção de Propaganda e Educação Sanitária de São Paulo, é provável que as camadas médias instaladas no espaço metropolitano vissem com certa reticência os ‘conselhos médicos’ direcionados ao proletariado. Afinal, para os grupos que se auto-apresentavam como agentes privilegiados do movimento de modernização econômica e social, pareciam aviltantes as prescrições formuladas pela Spes que, dentre outras coisas, tentavam convencer seus leitores sobre a necessidade de aceitar a ‘pobreza honesta’, evitar que os filhos dormissem na mesma cama que os pais e manter a residência limpa e arejada.
Portanto, quando as campanhas oficiais de educação em saúde foram implementadas, também ganharam consistência os reclamos da ‘elite culta’, pedindo o patrocínio governamental para a maior divulgação de livros que ensinassem as precauções a serem tomadas contra a tuberculose e que também discorressem sobre as possibilidades de cura dos pectários. Sob o discreto rótulo de ‘divulgação scientifica’, os agrupamentos privilegiados ansiavam por melhor conhecimento sobre a Peste Branca, talvez mesmo para saber reconhecer os infectados e excluí-los de seu círculo de convívio.
As oportunidades de encontros com os médicos delineavam-se como momentos privilegiados para a elite se informar sobre os processos patológicos. Nos consultórios particulares, a burguesia queria saber mais, inclusive sobre tópicos que nem sempre era de bom tom perguntar ao médico. No início da década de 40, a Educação Sanitária federal, melhor que a paulista, soube perceber as reticências dos grupos ensimesmados dirigindo-lhes uma coleção de textos que, guardando proximidade com as resenhas acadêmicas, ofereciam aos leitores a sensação de que estavam consultando mensagens exclusivas e, por óbvio, diferenciadas em teor aos conselhos direcionados ao proletariado.
O sentimento de abandono experimentado pelos estratos mais ricos da população explica, pelo menos em parte, o surgimento de publicações sintonizadas com a sensibilidade burguesa, como o paulistano mensário Viver!, definido como revista especializada em ‘saúde, fôrça e beleza’. Colecionando artigos assinados tanto por médicos quanto por jornalistas, o periódico procurava corresponder aos anseios dos seus assinantes, discorrendo longamente sobre a tuberculose, sem, no entanto, incorporar os padrões obedecidos pelos órgãos oficiais dirigidos para a educação sanitária.
Paralelamente, Viver! empenhava-se em fomentar a apologia do modelo sociocultural norte-americano, preterindo as condições de vida do trabalhador brasileiro em favor da descrição meticulosa e ufanista do vigor físico e dos hábitos saudáveis dos astros do cinema, forjados em Hollywood.1
Além das revistas especializadas em discorrer sobre a saúde no contexto da modernidade, a elite nacional passou a dispor de um conjunto de livros que se apresentavam como ‘manuais’ de orientação aos tuberculosos e a todos aqueles dispostos a se inteirar sobre os segredos da Peste Branca.
No Brasil, a tentativa pioneira de elaboração de um guia sobre a tísica data dos anos iniciais do século passado, quando o médico Eloy de Andrade (1906) publicou o primeiro texto apresentado como ‘obra de divulgação científica’ sobre a moléstia dos pulmões. A persistente defesa da concepção segundo a qual a tísica era “perfeitamente curavel” e os inúmeros casos escabrosos mencionados nas páginas do manual – inclusive detalhada descrição do comportamento sexual de “vacas ninfomaníacas”, porque tuberculosas –, parece ter desencorajado a recomendação clínica deste compêndio.
Na ausência de livros orientadores produzidos no Brasil, é provável que a única opção disponível para a elite leiga saber mais sobre a tuberculose constituía-se na recorrência aos alfarrábios estrangeiros. Vários textos redigidos em francês, inglês, italiano e alemão voltados para a orientação dos tuberculosos e de seus familiares foram mencionados em artigos educativos de clínicos brasileiros, sendo que, dentre estes, nenhum outro manual angariou tanto reconhecimento como o elaborado pelo professor da Escola Médica da Universidade de Genebra, Jacques Stéphani.
Proprietário e diretor clínico da estação climatérica e do sanatório de Montana, nos Alpes suíços, o Dr. Stéphani acolheu inúmeros esculápios brasileiros que buscaram especialização tisiológica na Europa e, em 1929, publicou o seu guia para ‘tuberculosos e predispostos’. Em pouco tempo, a obra tornou-se o texto mais recomendado pelos clínicos brasileiros, que passaram a indicá-la – ainda na versão francesa – tanto aos “medicos não especialistas” quanto às “pessôas cultas que amam estar ao corrente de conhecimentos gerais” (Pitanga, 1933).
O livro do professor Stéphani foi publicado em língua portuguesa no ano de 1933, contando com a tradução do escritor Ribeiro Couto que, pectário, rumou para a Suíça, obtendo a cura no sanatório de Montana. No prefácio brasileiro deste guia, o tradutor confessou que a versão nacional do livro do Dr. Stéphani era bem mais do que um trabalho encomendado pela editora, consistindo em tributo de um ex-paciente ao clínico que o salvou da morte certa. Ribeiro Couto acrescentou ainda que o manual representava um indispensável instrumento para os contaminados e os sadios se conscientizarem sobre a desabonadora valoração social da enfermidade, definida como “enorme trama de preconceitos absurdos, da ignorancia e de erros de que, no espirito do vulgo, anda acompanhada esta palavra: tuberculose” (Stéphani, 1933:6).
A partir de então, o livro do tisiologista suíço passou a ser aclamado como o principal recurso esclarecedor sobre a tísica à disposição da parcela culta da população. A aceitação da obra – que contou com sucessivas reedições nos anos subseqüentes ao seu lançamento – incentivou inúmeros clínicos proprietários de sanatórios a comporem obras similares. No entanto, praticamente todos os guias nacionais acomodaram-se em repetir os ensinamentos do manual do Dr. Stéphani, às vezes incorrendo no plágio da obra do médico suíço.
O que ensinava o professor Stéphani para que seu livro fizesse tanto sucesso, a ponto de, no Brasil, contar com edições de luxo e ser alvo de tantas imitações?
Primeiramente, a aceitação deste texto está ligada ao reconhecimento clínico da precariedade do saber acumulado pela medicina sobre o evento patológico. Avesso às ‘certezas’ procuradas pelos seus pares, o Dr. Stéphani confessou para os ‘profanos’ as ‘incertezas’ que atormentavam a prática tisiológica, tachando de charlatães todos aqueles que asseveravam ser o mal consuntivo uma enfermidade ‘perfeitamente curável’. Nesta cirurgia, o clínico de Montana despendeu páginas e mais páginas para recuperar a historicidade das práticas médicas e das imagens creditadas aos infectados para anunciar o caráter provisório do aparelhamento clínico-epidemiológico e o condicionamento cultural dos preconceitos contra os tísicos.
O professor de Genebra descreveu em detalhes o funcionamento do corpo humano sadio, para didaticamente apresentar a noção do trabalho destrutivo do bacilo de Koch, advertindo que “a tuberculose teme o bisturi”. Neste encaminhamento das idéias, o arsenal medicamentoso disponível na época foi considerado de pouca valia no tratamento dos seus pacientes, alegando que a única terapêutica cuja eficácia foi constatada, mesmo sem explicações totalmente convincentes, consistia na reclusão dos contaminados por longos períodos nas regiões de altitude, ensinando que “mais vale o campo que a cidade, mais vale a montanha que o campo”.
Proprietário de uma estação alpina de tratamento, o médico caminhou para a defesa da idéia segundo a qual apenas a presença dos consuntivos nas regiões montanhosas não garantiria minimamente a recuperação da saúde. Para o Dr. Stéphani, as benesses do ‘clima de altitude’ deveriam estar conjugadas à disciplina exigida no ambiente hospitalar, pois a melhora do estado de saúde só poderia ser conseguida por meio da articulação da climatoterapia com a reeducação higiênica e moral dos fimatosos.
O que significava para o autor do Guia do Tuberculoso e do Predisposto a reeducação do consuntivo? Apesar da referência aos exageros do sexo, do álcool e da droga como eventos predisponentes à infecção, para o docente suíço, tais elementos constituíam-se em itens de menor significado para a ocorrência da tísica. Bem mais do que a correção moral, cabia ao médico de sanatório ensinar seus pacientes a manter um novo vínculo com o próprio corpo, instruindo a clientela sobre a necessidade de uma relação equilibrada com o organismo, enquadrando este como uma realidade pautada por múltiplos condicionantes, tais como a resistência biológica individual, a alimentação, a idade, o sexo e as condições materiais de vida.
Nesta operação, o Dr. Stéphani baseou todos os seus conselhos no sutil retoque do modo de vida burguês que, se moderno, deveria ter como elemento norteador o desfrute comedido das novidades trazidas pela sociedade industrial do século XX. Por isso, a própria qualificação do infectado ganhou novas dimensões.
A condição tuberculosa foi despida dos atributos degradantes impostos por outras vertentes de avaliação hipocrática, aflorando como ‘doente perigoso’ exclusivamente aquele que “não cospe numa escarradeira, que atira perdigotos ao se agarrar no interlocutor, que beija toda gente apezar de saber que tem bacillos na bocca” (Stéphani, 1933:76). Ninguém mais. Discursando para o paciente tuberculoso bem mais do que sobre o doente pulmonar, o médico tornou-se uma espécie de amigo solidário e ‘redentor’ dos pectários, inaugurando uma nova conduta de comunicação impressa entre a clínica e os doentes do peito.
Despojado da maligna aura, o tuberculoso – ainda segundo o médico suíço – deveria buscar isolamento em uma estação de cura, não como um castigo mas sim como uma situação transitória e benéfica para si e para os seus familiares. Afinal, o sanatório correspondia a uma variação sofisticada de ‘hotel de luxo’, onde a higiene e as possibilidades de aprimoramento cultural eram ponto de honra, acrescentando Ribeiro Couto, em nota de rodapé, que o próprio Dr. Stéphani dominava variados idiomas, dispondo-se a ensinar a todos os doentes ‘contagiados pelo entusiasmo cultural do mestre’.
Neste encaminhamento, o autor do guia reivindicava o relacionamento ‘sadio e franco’ com os seus pacientes/discípulos, cobrando deles estrita lealdade às suas orientações. Nenhum de seus ‘hóspedes’ poderia se mostrar mais conhecedor dos segredos da enfermidade que o próprio facultativo e a confiança mútua deveria ser tamanha, que nenhum outro clínico poderia ser consultado, sob a pena de exclusão do infectado do recinto sanatorial. A sujeição do tísico deveria ser total, assumindo como suas as prescrições fornecidas pelo tisiologista:
Quanto à cura, não pode ser obtida, na mór parte dos casos, senão associando-se, num commum esforço, a sciencia do medico à boa vontade do enfermo. Mas, aqui, attenção! Nada de malentendidos. O que o medico pede ao doente é um esforço continuo de todo o seu ser para um só objectivo, sempre o mesmo. Não se trata de collaboração, mas antes de hierarchia: um manda, outro obedece. (Stéphani, 1933:186)
Mesmo assim, em diversas passagens do seu manual, o proprietário da estação de cura alpina buscou amenizar a rigidez da normatização clínica, embora ressaltasse que o médico convicto da eficácia de seus conhecimentos não deveria se curvar frente aos desejos do paciente.
No sanatório de Montana – advertia o Dr. Stéphani – tudo era passível de ser matéria de diálogo e moderação, podendo chegar-se a acordos que não resultassem em perdas para o médico ou para o paciente. Os exemplos são significativos: o tenista inconformado com a proibição de praticar seu esporte reclamou da prescrição, conseguindo autorização médica para continuar a jogar diariamente, sob a condição de interromper a partida ao final do quinto game, assim como ao nobre russo foi permitida a utilização paralela de poções curativas tradicionais no seu país, já que estas não afetavam o tratamento ministrado pelo nosocômio.
Pouco, de original, os médicos-autores brasileiros acrescentaram aos enunciados do Dr. Stéphani. A consulta de mais de duas dezenas de manuais para tuberculosos compostos por clínicos brasileiros até o ano de 1945 deixa perceber a contínua reiteração dos mesmos postulados e a menção até dos mesmos exemplos registrados no guia estrangeiro, consagraram as propostas do especialista suíço como regras pouco infringidas pelos autores das brochuras nacionais.
Uma das raríssimas páginas na qual este cômodo compromisso foi quebrado encontra-se no livro do Dr. Valois Souto (1937), diretor-proprietário do Sanatório de Corrêas, instalado nas montanhas fluminenses e que era considerado uma das mais luxuosas casas de saúde do país. Ao indagar sobre a possibilidade do tuberculoso com lesões abertas querer contrair matrimônio, Valois Souto mostrou-se totalmente contrário. Entretanto, imediatamente após a negativa, o autor parece que arrependeu-se, alegando que, afinal, a opinião médica não era assim tão importante, desculpando-se envergonhadamente por se imiscuir na vida privada dos seus pacientes abonados: “mas que fazer quando só se têm em vista razões do coração!...”.
Em nome do Grande Mal foram articulados múltiplos dispositivos disciplinadores, direcionados para grupos específicos da população, infectados ou não. Idealizados como discursos universais e fundamentados em valores que buscavam transcender as diferenças sociais, como solidariedade, família, bem comum, pátria e trabalho, na verdade as orientações higienistas mesclavam tisiofobia e diferenças de classe, resultando na sensação de que a educação sanitária discorria sobre distintas patologias, mais do que sobre tuberculosos ricos e tuberculosos pobres.
No final, o discurso sobre tísica erigiu-se como estratégia de coerção que, direcionada para a ‘retificação’ dos comportamentos individuais, buscava requalificar a vida grupal, estabelecendo os padrões da modernidade que deveriam reger a organização social brasileira. Ficavam claros, assim, os limites das pontificações educadoras em saúde que, calcadas na exploração dos temores grupais, identificaram os fracos do peito como discípulos do mal e da desordem coletiva, traduzindo o tuberculoso como o pobre irrequieto, o rico egoísta, o perverso, o criminoso, o inimigo da pátria, o ‘quinta-coluna’ e tantas outras categorias.
Nesta cirurgia, o ramo educador da Saúde Pública paulista, acompanhando a tendência predominante na literatura nacional das primeiras décadas do século, contribuiu com novas e vigorosas – pois pretensamente científicas – versões diabolizadoras do tuberculoso. Ditando a possível lógica da sociabilidade que deveria vigir nos grandes centros urbanos, a literatura e a medicina, por extensão, definiam os estreitos limites existenciais permitidos para as vítimas diretas do Grande Mal.