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A irmandade dos fracassados

O trem era o veículo que, de costume, conduzia os tísicos para o ‘exílio’ forçado pela doença. Superado o perímetro dos maiores centros urbanos, os doentes iam percebendo a paulatina alteração da paisagem que, quanto mais se aproximava das áreas de tratamento, mais abria espaço para extensas glebas de mata e terrenos de geografia acidentada. Símbolo maior do desterro prometido, os contrafortes da Mantiqueira representavam o selo da exclusão, ganhando o sentido de majestosos portais de entrada para um universo que resistia em devolver a liberdade para os viajantes tuberculosos.

Desembarcados no destino sanitário, os doentes do peito chocavam-se com o fato de serem acolhidos com todas as reticências alimentadas pelo horror ao contágio. Tanto nas prefeituras sanitárias quanto nas áreas avizinhadas dos sanatórios isolados, eram freqüentes os cartazes que alertavam sobre a proibição da presença dos reféns do Grande Mal em muitas lojas, bares, restaurantes, clubes, hotéis, pensões e até mesmo nas chácaras e moradias. De imediato, os tísicos reconheciam que, mesmo no território do confinamento, vigorava um meticuloso conjunto de prescrições que estabeleciam estreitos limites para a existência infectada.

As disposições preventivistas impunham que os hospitais fossem erguidos em vastos lotes protegidos dos caminhos públicos por extensos bosques de eucaliptos ou por muros de segurança. O silêncio e o isolamento exigidos dos doentes e dos funcionários sanatoriais faziam com que a maior parte dos dramas e dos segredos compartilhados nestas instituições fossem vedados ao conhecimento da sociedade mais ampla.

Os sadios, por sua vez, preferiam tomar ciência de detalhes sobre a vida dos pectários por meio do filtro literário e pelas raras notícias e imagens que propositalmente escapavam do sigilo nosocomial para sensibilizar o tecido coletivo e, com isso, garantir as necessárias esmolas para as entidades caritativas. O Abrigo São Vicente de Paulo, por exemplo, vendia ‘cartões-postais’ cujas ilustrações compunham-se de fotos de seus pequenos hóspedes infectados, esperando angariar algum dinheiro com a exposição pública dessas crianças abatidas pela enfermidade pulmonar.

Sob o véu da filantropia ou do declarado interesse econômico, os sanatórios revelavam-se como o que as Ciências Sociais definiram como ‘instituições totais’ (Goffman, 1974). Se em geral os nosocômios cumprem as tarefas de cuidar dos corpos enfermos e corrigir o comportamento dos pacientes, as casas de saúde que acolhiam os tísicos deram nova amplitude a esses compromissos. Territórios panópticos de extremada vigilância, os sanatórios buscavam apresentar-se aos seus pacientes como espaço praticamente fechado ao mundo exterior, tecendo estratégias que objetivavam apropriar-se não só do tempo, mas também dos pensamentos e dos desejos de seus hóspedes, oferecendo elementos que favoreciam a redefinição do ‘eu’.

Representando símbolos anacrônicos da peste, os infectados eram definidos como personagens incapazes de aceitar espontaneamente as orientações prestadas pela clínica e, em continuidade, eram tidos como inimigos mortais da sociedade. Reduzidos a valores estatísticos na maior parte da documentação hospitalar, a frieza dos dígitos de identificação desdobrava-se na face colada ao rosto único imposto aos fimatosos: uma legião a ser tratada do corpo e da moral pela medicina, consolada pela religião e pranteada a distância pelos familiares e pelos amigos.

A situação de confinamento imposta aos tísicos albergados fomentava a existência de um mundo apartado e misterioso, legalizando a funcionalidade das casas de saúde. Refletindo a operação segregadora, era comum os médicos dos sanatórios utilizarem uma terminologia espacial para reiterarem o princípio isolacionista, como aconteceu nas anotações feitas pelo tisiologista que examinou o mecânico Humberto Chiadotto (P. 728): “O passiente tendo uma phistula e andando a se tratar della os medicos fizeram-no examinar dos pulmões que deu positivo, faz dois mezes mas tambem se queixa da perna direita que doi muito ao levantar e tratava-se lá fora”.

A constatação de um mundo ‘lá fora’ – em contraposição ao ambiente hospitalar – definia os limites dos possíveis contatos sociais mantidos pelos fimatosos, asseverando a solidão que, talvez mais do que a própria patologia, abatia-se sobre os fracos do peito. A variedade de disposições médicas que impediam o livre e ininterrupto acesso da maior parte dos enfermos ao ‘mundo exterior’ confirmava o sentimento de exílio que aflorava entre os pacientes consuntivos, fazendo com que, também por isso, os pectários temessem o confinamento nosocomial.

O trauma do internamento

A ronda da morte e a exclusão do convívio com os sadios incitavam os fimatosos a manterem uma atitude contraditória frente ao momento definitivo de ingresso no labirinto hospitalar. A opção pelo isolamento sanitário, mesmo que admitida pelos infectados como única alternativa possível, anunciava-se como uma experiência dolorosa e povoada de medos.

A tuberculosa Raquel Pereira foi uma das depoentes que narrou em entrevista ao autor o drama íntimo vivenciado no dia em que se iniciou a sua primeira internação hospitalar. Mineira de nascimento, Dona Raquel padecia de um ‘resfriado’, até que uma violenta hemoptise fez com que a enferma trocasse sua terra natal pela cidade de São Paulo, onde o Dr. Fleury de Oliveira examinou-a no seu consultório particular, diagnosticando a presença de ‘discretas cavernas pulmonares’. Em decorrência, o tisiologista recomendou que a paciente recebesse tratamento ambulatorial, descartando a necessidade de confinamento hospitalar.

Após o choque gerado pelo diagnóstico médico, deu-se a inevitável reunião familiar para decidir o destino a ser dado à consuntiva, ficando acertado que, em desacordo com a orientação prestada pelo Dr. Fleury de Oliveira, a infectada partiria para a estância climática de São José dos Campos, onde o pecúlio do clã permitiria alugar um leito hospitalar. Mesmo que se mostrasse favorável ao encaminhamento dado pelos seus, foi com a voz embargada que Dona Raquel confidenciou os primeiros instantes de seu isolamento:

Meu tio e meu pai vieram aqui em São José e reservaram um quarto para mim no Sanatório Ruy Dória. Internei-me na manhã do dia 17 de abril de 1943, quando tinha 19 anos de idade. Ao chegar no sanatório eu chorava muito e dizia para minha mãe: ‘me leva embora pelo amor de Deus, eu quero morrer lá em casa, não quero ficar aqui’. Meus pais ficaram desesperados e então meu pai falou: ‘a gente vai almoçar e volta aqui para te buscar’. Aí meus pais saíram, foram embora, não voltaram mais, foram embora...

Os sentimentos de rejeição e abandono familiar rememorados pela depoente foram experimentados por quase todos os tísicos. Desprezados pela maior parte de seus parentes – que viviam a angústia da doença em outra dimensão – os tuberculosos lutavam para se posicionar frente a uma realidade impregnada pela negação da liberdade e da singularidade individual.

O abalo emocional causado pelo internamento freqüentemente gerava atitudes de repulsa à condição de confinado. Apesar das dificuldades para obtenção de um leito especializado, os registros do Hospital São Luiz Gonzaga revelam contínuas situações nas quais os fimatosos permaneciam na casa de saúde por apenas alguns dias – horas, até – para logo em seguida exigirem dispensa. Assim aconteceu com o prático de farmácia Romeu Corniari (P. 713) que, internado na data de 10 de dezembro de 1937, saiu do sanatório do Jaçanã no mesmo dia, protestando que “esquecera de resolver negócios urgentes”.

Caso houvesse a recusa clínica de oferecer alta ao paciente desejoso de deixar o nosocômio, o desfecho da situação poderia ganhar o rumo da fuga. O lavrador Theodoro José de Abreu (P. 1615) partiu do município de Pontal, no extremo oeste do estado, para cuidar de sua saúde na capital paulista, esperando uma vaga hospitalar pelo período de quatro meses. Aceito pelo Sanatório do Jaçanã na manhã de 19 de maio de 1943, no mesmo dia o paciente requisitou alta, mas como seu rogo não foi atendido, o lavrador fugiu, não ficando nem mesmo o tempo necessário para que fosse realizada a anamnese.

O terror inspirado pelas intervenções cirúrgicas mutiladoras era outro motivo para a seqüência dos desligamentos que atingiam os pacientes novatos. Como a linha adotada pelo Hospital São Luiz Gonzaga aconselhava o tratamento operatório imediato para os pectários que apresentassem condições físicas relativamente estáveis, muitos recém-chegados eram prontamente encaminhados para a colapsoterapia, fato que os fazia exigir alta, desculpando-se por desistir do internamento. Duas semanas após dar entrada numa das enfermarias do Sanatório do Jaçanã e já com data acertada para se submeter a uma toracoplastia, Maria de Freitas (P. 3048) requereu dispensa do isolamento, alegando motivo surpreendente para a sua saída: “A paciente informa que não pode mais ficar nem fazer toraco porque o marido mandou avisar que a quer em casa, pois ele não tem quem prepare a comida que leva para o trabalho”.

Em outros momentos, a fuga do isolamento era substituída por comportamentos que beiravam a catatonia. A empregada doméstica Maria da Gloria Moraes (P. 54) e o estivador Ulysses Ferreira (F. s.n.) identificaram-se numa história sobretudo dolorosa. Tanto Maria da Gloria quanto Ulyssses eram fimatosos que descobriram-se infectados logo após terem perdido parentes próximos, também contaminados pelo bacilo de Koch. Internados à força por parentes ou vizinhos, em seus prontuários encontram-se anotações semelhantes: “anamnese prejudicada porque o paciente se nega a responder quaisquer questões”.

Os infectados que reagiam ao isolamento com o silêncio levavam os tisiologistas dos sanatórios filantrópicos a convergirem para a conclusão de que os enfermos que assim se comportavam padeciam de “perturbação mental”, diagnóstico que foi incluído na documentação hospitalar da empregada doméstica e do portuário. Nesse processo, o prontuário de Maria da Gloria ganhou novas informações, pois em momento posterior à primeira observação, o médico registrou que a tuberculosa “é uma doente nervosa e fica muito tempo num canto sem falar quieta e sem vontade de fazer nada”.

O trabalhador portuário desfrutou apenas uma quinzena de tratamento, chegando a óbito no dia 12 de novembro de 1933. A empregada doméstica permaneceu no nosocômio paulistano por mais um ano, sendo expulsa por ‘insubordinação’. É bem provável que durante o período de internamento Maria da Gloria tenha redefinido parcialmente sua conduta, pois a regra adotada pelos hospitais filantrópicos era a transferência dos pacientes diagnosticados como doentes mentais para um pavilhão exclusivo para tísicos no Manicômio do Juquerí.

Tal procedimento tendia a não ser reproduzido nas casas de saúde que atendiam enfermos que pagavam pelo tratamento. Acredita-se que o caráter lucrativo destas instituições e a condição social diferenciada dos seus pacientes constituíam-se em fatores que coagiam os tisiologistas a tentarem estratégias amenizadoras do desespero gerado pelo asilamento, negando o rótulo de doente mental para os contaminados que, num primeiro momento, rejeitavam o enquadramento sanitário.

Uma vez mais recorre-se ao depoimento prestado por Raquel Pereira. A ex-tuberculosa narrou um caso que exemplifica os esforços clínicos para lidar com os hóspedes pagantes contrariados com o estado de confinamento:

O doente às vezes chegava e tinha uma depressão nervosa muito grande. Eu conheci uma moça chamada Lourdes que foi internada, mas não aceitava permanecer no sanatório, sendo desde o início muito agressiva e por isto não pode ficar no meio da gente porque ela estava muito mal da mente. Então, o Dr. Dória tinha uma viúva que trabalhava na rouparia, chamada Dona Júlia. Ela morava dentro do sanatório, tinha um apartamentozinho separado onde vivia com duas filhas tuberculosas. O Dr. Dória chegou e falou para ela: ‘Olha, Dona Júlia, a senhora quer tomar conta da Lourdes? É uma moça muito doente, está precisando muita assistência, muito carinho, e eu sei que a senhora tem condições de fazer isso por ela’. Dona Júlia tratou dela com o maior carinho, deu toda a assistência, como se fosse a mãe dela. A Lourdes passou a chamar Dona Júlia de mãe e o Dr. Dória começou a tratar e conversar muito com ela. E a doente acabou boa da cabeça, ficou uma moça alegre. Aí ela veio para o nosso convívio.

Em decorrência dos esforços promovidos pela casa de saúde particular, a paciente Lourdes pôde superar o trauma causado pela surpresa do internamento, sem ter de se tornar objeto de classificações psiquiátricas que ampliavam ainda mais o isolamento e a carga de estigmas imposta aos fimatosos.

A vida conjunta: a rotina sanatorial

Ainda nos primeiros instantes da presença no sanatório, o recém-chegado tendia a rejeitar a convivência com outros tísicos. As mensagens que alertavam sobre a periculosidade física e moral dos consuntivos induzia os novos hóspedes a tentarem se manter afastados dos seus ‘colegas’ de enfermidade, temendo dar nova e mortal dimensão à sua doença, assim como deixar-se contaminar com os pretensos vícios imputados à condição fimatosa.

Vários depoentes informaram que, na primeira vez que receberam internamento hospitalar, inicialmente se apresentaram pouco receptivos à companhia dos demais pectários, evitando fazer perguntas e dar respostas, principalmente quando a tentativa de conversa tomava a infecção kochiana como assunto.

Mais do que isto, os novatos mostravam-se temerosos em utilizar os recursos oferecidos pelos sanatórios, julgando que a recorrência aos itens de emprego coletivo poderia resultar numa ‘superinfecção’ que conduziria rapidamente à morte. Por isso era comum a existência de um medo indisfarçável dos recém-chegados que, mesmo marcados pela pobreza, esforçavam-se para levar ao abrigo hospitalar o maior número possível de utensílios necessários no cotidiano, tais como talheres, pratos, copos, escarradeiras, pentes, roupas de cama e até mesmo agulhas de injeção.

A sensação de abandono e o cotidiano padronizado impunham a presença coletiva, abrindo oportunidades para o processo de acomodação dos temores individuais e favorecendo os elos de sociabilidade entre os reféns da solidão. Mais do que isto, as ‘mansões da saúde’ – designação institucional fartamente empregada pelos administradores sanatoriais – orientavam a integração entre os enfermos, aplicando sobre seus hóspedes múltiplos dispositivos regulamentadores do cotidiano, todos eles calcados no compromisso de cura e de ‘purificação’ moral dos fimatosos.

O livro de reportagem elaborado pelo jornalista José Dias Leme (1944) e as informações registradas nos relatórios hospitalares oferecem elementos que, somados, permitem a recomposição da rotina diária das entidades de cura. Pai de uma tuberculosa que usufruiu seus últimos anos de vida no Sanatório Vila Samaritana, localizado em São José dos Campos, o jornalista quebrou a regra que mantinha os sãos afastados das casas de saúde especializadas, conseguindo autorização para permanecer longos períodos no nosocômio, acompanhando a lenta agonia da filha valetudinária, situação que favoreceu o conhecimento minucioso do cotidiano institucional.

Segundo as observações deste repórter e das notas computadas na documentação nosocomial, sabe-se que os momentos do dia hospitalar eram anunciados pelos toques de uma sineta, devendo ser respeitados por todos os pacientes que reunissem condições físicas suficientes para deixar a cama. Sendo assim, os asilados eram coagidos a abandonar o leito às 7 horas da manhã, dispondo de 30 minutos para se prepararem para o desjejum e para as preces. O período das 8 às 9 horas era reservado para passeios nas áreas vizinhas do hospital, sendo que, esgotado este tempo, todos os doentes deveriam obedecer repouso obrigatório, permanecendo confinados a cadeiras ou camas até às 11 horas, quando se iniciava o almoço. Após a refeição, novo intervalo de descanso acontecia, seguido de lanche às 15 horas e de atividades de lazer e passeio, isto se não houvesse inspeção médica a ser realizada. No final da tarde, ocorria outro momento de repouso, encerrando-se às 19 horas, quando era servida a janta. às 21 horas, logo após as últimas orações do dia, era exigido silêncio absoluto, sendo que, ao soar o último toque da sineta, todos os consuntivos deveriam guardar leito, até a manhã seguinte.

Condicionada a uma marcha lenta e tediosa, a vida dos tuberculosos era normatizada também por disposições nosocomiais que, idealisticamente, deveriam ser obedecidas igualmente por toda a colônia de enfermos, confirmando os estreitos limites de convívio entre os infectados e destes com o mundo exterior. Dentre a infinidade de artigos principiados com a advertência ‘é expressamente proibido’, os agentes hospitalares arrolavam detalhes padronizadores da existência coletiva, observando que qualquer ato infrator poderia gerar sanções disciplinares que flutuavam entre a admoestação verbal e a expulsão sumária da instituição.

Dentre os atos passíveis de punição, alinhavam-se: escarrar fora do recipiente apropriado, fazer uso de bebidas alcoólicas, dançar sem autorização, jogar a dinheiro, conversar em voz alta ou empregar termos de ‘baixo calão’, abordar assuntos considerados inconvenientes, perturbar o silêncio nos períodos de descanso comum, apresentar-se de pijama fora dos quartos e das enfermarias, visitar cômodos privativos ao sexo oposto, perambular pelas áreas de serviço do sanatório sem permissão superior, invadir o perímetro residencial dos empregados ou o alojamento dos eventuais visitantes, conservar luzes acesas sem necessidade, depredar as dependências ou os móveis de propriedade da instituição e sobretudo ausentar-se do sanatório sem a anuência clínica ou sem contar com a companhia de um funcionário ou de um colega enfermo designado pela casa de saúde.

A estas cláusulas juntavam-se ainda outras recomendações que davam ritmo próprio a cada uma das atividades desempenhadas pelos tuberculosos. Quanto ao banho, por exemplo, os tísicos tinham direito a uma ou no máximo duas oportunidades por semana, as quais deveriam ser breves e com água morna, sob a alegação de que a higiene íntima prolongada ou excessivamente quente ou fria poderia facilitar a ocorrência de resfriados comprometedores da recuperação da saúde. Os horários de banho, como de resto, eram agendados pelos chefes das enfermarias, acrescentando-se que os pacientes perderiam o direito à ablução, caso faltassem ou se atrasassem para o compromisso marcado.

Regras gerais divulgadas nos folhetos de propaganda de praticamente todas as mansões da saúde, a condição de pensionista – isto é, de hóspede pagante – parecia abrir oportunidades flexionadoras do ordenamento imposto. Enquanto os sanatórios que assistiam a pobreza deixavam poucas chances de quebra da mesmice cotidiana, os nosocômios que atendiam tísicos abonados permitiam que seus clientes resguardassem um pouco de sua individualidade.

Nestas circunstâncias, os fimatosos de posses tinham a regalia de fazer-se acompanhar de serviçais ou mesmo dos cônjuges, assim como estas instituições ofereciam alojamentos exclusivos, automóveis e motoristas para que seus privilegiados hóspedes pudessem passear pela cidade e fazer compras, fomentando a fantasia de que a Peste Branca havia pouco comprometido os afazeres diários que animavam a vida anterior ao evento infeccioso. Ainda mais, os pensionistas ricos poderiam desfrutar de shows dançantes, cursos de línguas estrangeiras e de pintura, palestras e excursões turísticas organizadas pelos hospitais, que se esforçavam em trazer dos grandes centros urbanos artistas e intelectuais que, de regra, também compartilhavam da condição consuntiva.

Mesmo quando o regimento hospitalar era declaradamente infringido, as sanções institucionais tendiam a ser amenas ou mesmo inexistentes para os pacientes seletos. O enfermeiro tuberculoso José Antonio Duarte, que prestou serviços em vários sanatórios particulares de Campos do Jordão, informou ao autor que os doentes pensionistas eram “perdoados de muitos deslizes”, inclusive de ausências desautorizadas e prolongadas, sendo que, ao retornarem, eram recebidos sem qualquer admoestação clínica.

Em contraposição, para os tísicos pobres sobravam poucas atividades que pudessem amainar a terrível repetição dos dias. A escassez de verbas e o pouco empenho das casas de saúde filantrópicas faziam com que os tuberculosos usufruíssem de raros motivos para julgar agradável a permanência reclusa.

Além da audição conjunta de rádio, das projeções de películas que eram previamente censuradas pela equipe hospitalar e dos jogos de salão, restava a leitura de revistas cujas ilustrações consideradas ‘excitantes’ eram recortadas pela vigilância hospitalar e a consulta de livros com teor moralista, de intrigas suaves ou de exaltação nacionalista.1 O pouco mais que favorecia a diversidade das tarefas corriqueiras consistia nas festas de confraternização que ganhavam o sentido de solenidade, acontecendo especialmente nas datas de aniversário dos integrantes da equipe médica ou quando um dos pacientes era premiado com a ambicionada alta clínica resultante da recuperação pulmonar.

A agitação também tomava conta dos sanatórios quando corria a notícia que um doente famoso havia sido internado. Assim aconteceu com Paulo Dantas, que percorreu vários sanatórios de Minas Gerais e Rio de Janeiro antes de chegar ao Sanatorinho jordanense e pouco depois ao Hospital São Luiz Gonzaga, período em que já angariara fama de escritor laureado pela Academia Brasileira de Letras e que compunha um segundo livro sobre a vida dos tuberculosos, sendo por isso insistentemente procurado pelos doentes desejosos de confidenciar algum ‘caso’ ocorrido no hospital.

No sanatório paulistano, Paulo Dantas (P. 2670) foi registrado como “autor e publicitário”, recebendo atenção diferenciada inclusive do corpo médico, o que resultou na composição de um prontuário bem mais completo do que aqueles produzidos sobre os pectários indigentes.

Situação semelhante ocorreu com o então jornalista Nelson Rodrigues que, internado como pensionista do Sanatorinho jordanense, ao chegar, foi imediatamente reconhecido como repórter d’O Globo, sendo recepcionado festivamente pelos seus companheiros de enfermaria. Para retribuir a acolhida afetuosa, Nelson tratou de compor sua primeira “peça teatral sem nenhuma seriedade” para ser encenada pelos próprios tuberculosos, advertindo jocosamente que o ‘colega’ que tivesse hemoptise durante o espetáculo pagaria em dobro o preço da entrada. Tanto para o dramaturgo estreante quanto para seus parceiros de tédio, momentaneamente a vida ganhou um sabor especial: “foi uma farra louca”, lembrou o jornalista (Rodrigues apud Paulo Filho, 1986:429).

Os pacientes e seus ‘salvadores’

Os sistemas coercitivos e vigilantes ativados pelas casas de saúde mesclavam-se com as promessas de breve cura endereçadas aos infectados que seguissem à risca o ordenamento sanitário. Entre o acomodamento e a revolta, os pectários entendiam o gerenciamento clínico e institucional de suas vidas sob ótica ambígua, orquestrando avaliações próprias sobre os agentes hospitalares.

Os tisiologistas, inevitavelmente, eram os personagens mais visados pela clientela tuberculosa. A cobrança de fidelidade e submissão dos pacientes para com os especialistas do Grande Mal estreitava os laços de dependência mútua, repercutindo no palavreado dos médicos que, para fugirem da responsabilidade individual no processo terapêutico, evitavam flexionar os verbos na primeira e segunda pessoas do singular para dar realce ao ‘nós’, redobrando o elo compromissado da luta conjunta contra a Peste Branca.

Coube ao tuberculoso Antônio Olavo Pereira (1976:25) lembrar a dimensão imposta à relação entre os doentes do peito e os médicos:

Afinal, o início da vida em comum. Dr. Sampaio lhe dissera uma tarde, usando o plural de confiante intimidade com que tratava os seus pacientes.

— Continuamos progredindo, moço. A partir de hoje, podemos deixar esta cela. Mas, por enquanto, nada de passeios. A não ser até o quintal. Não é preciso completarmos os três meses.

— E banho, já ‘podemos’ tomar?

O médico sorrira levemente encabulado, como quem é surpreendido numa atitude sentimental:

— Você está brincando, mas a vida de vocês é a nossa vida. Nas menores coisas. Nem temos outra, não dá tempo.

Nesta orientação, o facultativo despontava como personagem a ser cultuado, pois seu saber e sua experiência constituíam-se em peças fundamentais no jogo contra a morte fimatosa. Em outro sentido, o clínico era apontado como o principal juiz do cotidiano sanitário, cabendo a ele decidir praticamente tudo sobre a vida dos enfermos, desde a viabilidade do internamento hospitalar e a necessidade de intervenção cirúrgica até a permissão de ‘licença’ – termo emprestado do jargão militar – para o trabalho e a regalia do enfermo casado passar a noite em companhia do cônjuge.

O poder conferido ao médico fazia com que a sujeição cobrada do doente do peito se amalgamasse com um rancor declarado, alimentando comparações e questionamentos sobre as regras impostas pelos doutores. Afinal, se muitos dos tisiologistas e dos seus auxiliares eram doentes dos pulmões, por que eles obrigavam seus pacientes a assumirem uma existência demasiadamente cerceada, na qual quase tudo era formalmente proibido? Se os clínicos tuberculosos trabalhavam intensamente, acumulando prestígio e dinheiro, por que os pacientes deveriam se poupar do trabalho contínuo? Se os médicos e os enfermeiros casavam e desfrutavam do aconchego doméstico, por que a vida familiar era interditada aos isolados? Por que os médicos fimatosos eram apresentados como reservas morais e ‘anjos da guarda’ da sociedade e ‘mártires da ciência’, enquanto eles, os pacientes, eram focados pelas lentes sociais distorcidas pela multiplicidade de estigmas?

A multiplicação dos porquês acabava encontrando resposta fácil nos interesses lucrativos que transformavam o funcionamento dos hospitais especializados e o atendimento em consultório em profícuas fontes de enriquecimento.

O escritor Paulo Dantas, ao mesmo tempo que percorria sucessivos sanatórios e se prestava a contar a história da sua vida e da sua enfermidade aos tisiologistas, também compunha páginas de crítica ferina aos facultativos que atendiam os fimatosos, exigindo mais dedicação e eficiência profissional dos médicos, cujo maior pecado talvez fosse confiscar tantos anos de liberdade de sua clientela infectada.

Tentando canalizar as decepções causadas pelo contato com vários especialistas que praticavam em Campos do Jordão, o ‘romancista’ desabafou:

[Os clínicos] são uns camaradas que não se dedicam às pesquizas. Êles aqui só vêem no individuo dos pés a cabeça um pulmão. E assim mesmo um pulmão como fonte de renda e não como fonte de pesquizas, de estudos cientificos. Veja mesmo o caso do seu médico, o Dr. Aranha, que bem merece o apelido de Dr. Cifrão. O homem de tanto ganhar dinheiro e se meter em negócios já adquiriu até uma semelhança extraordinária com um judeu. Parece um cifrão em pé. Êle é médico, dono de pensão, socio de padaria, alugador de casa, tudo enfim. (Dantas, 1950:107)

Eram freqüentes também as situações em que os pectários buscavam burlar as ordens impostas, encontrando cumplicidade nos iguais na doença, inclusive nos enfermeiros que, recebendo baixíssimos salários, comandavam verdadeiros mercados negros que funcionavam intramuros.

Segundo o depoimento de um antigo funcionário de vários sanatórios paulistas, tudo era motivo de negociação entre os hóspedes das mansões da saúde e alguns enfermeiros: saídas desautorizadas, remédios populares proibidos pela medicina oficial, alimentos, bebidas alcoólicas, tabaco, morfina para aliviar as dores e para o uso dos viciados, roupas, companhia sexual, passes para a entrada em prostíbulos e cassinos e até mesmo mandingas para recuperar a saúde.

Outro depoente informou ainda que um consuntivo que fora levado para São José dos Campos por intermédio do amparo caritativo, tornou-se enfermeiro de um nosocômio especializado e, aproveitando-se desta posição, acumulou uma razoável fortuna vendendo secretamente penicilina aos desesperados tísicos, após tê-los convencido que a droga curava a tuberculose. Em troca do ‘remédio’, o enfermeiro aceitava não só dinheiro como qualquer mercadoria que os doentes pudessem oferecer: aparelhos de rádio, relógios, jóias, ações de companhias, automóveis, enfim, qualquer coisa de valor.

Acredita-se que era grande o número de tísicos penalizados pela quebra dos regimentos, especialmente no contexto dos sanatórios filantrópicos. Entretanto, a documentação analisada evita informar sobre os motivos que levavam a expulsões em série e à aplicação de censuras ‘mais leves’ aos enfermos albergados, recobrindo de sigilo tais acontecimentos.

As angústias acumuladas pelos hóspedes das mansões da saúde parece que os coagiam a exponenciar os momentos de tensão que pontuavam o cotidiano das instituições de cura, colocando em segundo plano os episódios confirmadores da relativa segurança e do conforto proporcionados pelo viver no recinto hospitalar.

Repetindo com poucas variações o que foi denunciado por outras vozes, uma tuberculosa entrevistada por Oracy Nogueira relatou uma situação punitiva testemunhada num nosocômio paulistano não identificado, mas que provavelmente era o Sanatório do Jaçanã:

No hospital foi adotado o regime de colegio. As pobres doentes devem andar sempre de fila, de braços cruzados. Si alguma doente chega atrazada, no refeitório, capela, etc., é admoestada publicamente e, quasi sempre, ou vá a verdade por inteiro, é sempre com palavras bem pesadas. As cartas são censuradas, tanto as que saem como as que chegam. Pobres doentes! Vivem num constrangimento infernal! Eu vi, e alem de pôr isto aqui no papel, si fôr preciso, e si encontrar ensejo para tal, eu direi a qualquer Diretor do Hospital o que vi, e feriu meu coração profundamente. Vi uma sexagenária, de pé, no refeitório frio, muito frio, em frente a um prato de comida... Tudo isso porque chegou atrazada... Absurdo dos absurdos. Isso é deshumano.(1945:55)

As causas resultantes no desligamento dos enfermos aparecem escamoteadas na documentação relativa ao sanatório da Santa Casa, sendo freqüente a localização de fichas individuais que informam que o paciente recebeu “alta a pedido”, enquanto os respectivos prontuários assinalam que o tísico fora punido com alta por “insubordinação” ou “indisciplina”.

A tentativa de decifrar o enigma proposto pelos registros nosocomiais encontrou resposta no depoimento de um tisiologista que atuou no Hospital São Luiz Gonzaga no transcorrer da década de 50. O clínico entrevistado foi um dos poucos personagens que não se recusou a falar ao autor sobre as punições institucionais, esclarecendo que havia uma espécie de “divisão das tarefas punitivas” entre os médicos e as religiosas que serviam como enfermeiras do nosocômio e que pertenciam à Ordem de São José de Chamberry.

Aos facultativos cabia a decisão sobre a exclusão dos pacientes que se negavam a aceitar as opções terapêuticas, principalmente no que se referia às intervenções cirúrgicas, enquanto as filhas de São José eram responsabilizadas pela vigilância, julgamento e punição dos pectários que infringiam os princípios de sociabilidade assumidos pelo Hospital.

Seguindo esta regra, existem evidências documentais que informam que o comerciário Theodomiro da Silva (P. 714) “foi mandado embora” pelos cirurgiões do Sanatório do Jaçanã porque se negou a aceitar a toracoplastia que lhe fora sugerida, enquanto o pintor espanhol Gabriel Fernandes (F. 23) foi afastado do recinto de cura pelas freiras devido o “abuso de alcool”.

Mas, quais ‘desregulamentos’ outros pontuavam o cotidiano desta casa de saúde para fazer com que um em cada grupo de aproximadamente dez tuberculosos tivesse como destino a expulsão? Segundo o mesmo médico depoente, existiam “dois elementos informais” que levavam ao desligamento dos tuberculosos, sendo eles a negativa do paciente em comparecer aos cultos religiosos programados pelas enfermeiras e também a descoberta de encontros secretos entre infectados de sexos opostos.2

Afastados de suas famílias e padecendo com a solidão, era natural que os tísicos tendessem a buscar consolo no ombro amigo dos seus companheiros de isolamento, frutificando em namoros que eram considerados ilegítimos e perigosos pelos agentes hospitalares. O empenho em coibir intimidades maiores, mesmo um simples beijo, encontrava sustentação na idéia de que os pacientes agiam sob comando da exaltação erótica produzida pelo micróbio de Koch, sendo por isso tachados de infratores os tuberculosos que fugiam às proibições. Para estes, aplicava-se uma pena única: o afastamento da instituição de cura.

Clareando o assunto, o escritor e médico Moacyr Scliar assim se reportou à atuação das religiosas na missão de inibir o encontro entre casais de consuntivos:

Quem trabalhou em sanatórios de tuberculosos, como foi o meu caso, conhece a expressão “ouvido de tuberculoso” (...). Também se falava no “tesão do tuberculoso”, o que causava grande aflição nas freiras que cuidavam do sanatório, e que, às vezes, passavam a madrugada vigiando as portas que separavam as alas masculinas e femininas. (1992:11)

O peso da imagem do fimatoso como um indivíduo sexualmente pervertido animava os médicos, os religiosos e mesmo os pacientes a unirem esforços para localizar e punir os eventuais transgressores de uma ordem que fundia num só caldo puritanismo moral e chances de recuperação da saúde. É Dona Raquel quem narra um caso em que a delação acionada por uma enferma somou-se ao rigor punitivo do médico e proprietário do Sanatório Ruy Dória:

Havia muita relação sexual escondida no sanatório; as pessoas saíam e iam se relacionar no lugar certo, no hotel ou no mato... Uma vez houve um caso entre um homem casado, vindo de São Paulo, e uma moça bonita e solteira. Ele se apaixonou por ela, foi uma paixão violenta. A moça repartia o quarto com uma outra doente e, numa madrugada, esta companheira acordou e viu o casal junto, na cama. Imediatamente o homem pulou a janela do quarto – que ficava sempre aberta – e a enfermeira de plantão não viu nada. Na manhã seguinte, nossa!, foi um escândalo. A colega que viu tudo foi cedinho no consultório do Dr. Dória e contou tudo, exigindo que o doutor fizesse alguma coisa. O Dr. Dória ficou tão brabo que na mesma hora mandou chamar os dois namorados e deu um prazo de 24 horas para eles abandonarem o sanatório, dizendo que enquanto eles não saíssem, ele não cuidaria de mais ninguém que estivesse internado lá. A moça começou a chorar muito e o moço pediu pelo amor de Deus para que o Dr. Dória não fizesse aquilo. Aí o Dr. Dória falou: ‘Não, eu não posso deixar vocês ficarem, eu acho que vocês foram ao extremo. Se vocês quiserem continuar o tratamento comigo, pode, mas só no consultório; morar aqui, nunca mais’. Aí os dois saíram, foram morar numa pensão e continuaram o tratamento com o Dr. Dória. No final, ele morreu e ela sarou e casou com outro.

A seqüência de casos de exclusão contribuía ainda mais para sustentar os antagonismos que impregnavam os ambientes de cura, ditando os limites da convivência entre os doentes do peito e destes com os profissionais da saúde. Em resposta ao ordenamento institucional, os tísicos tendiam a burlar os aparatos de vigilância, identificando os médicos, os enfermeiros e os religiosos que serviam nos sanatórios como responsáveis exclusivos pelas exigências muitas vezes destituídas de valia para o processo terapêutico. Ao mesmo tempo, a ambição pelo restabelecimento da saúde coagia os enfermos à passividade frente ao norteamento clínico, conferindo intensidade às contradições que marcavam a relação entre os pacientes e os funcionários dos nosocômios.

O martírio da monotonia

Que sentido tinha o cotidiano para os tuberculosos que precisavam, segundo o palavreado clínico, ‘fingirem-se de mortos para recarregar as baterias’ Como os asilados superavam um dia após o outro, chafurdados numa mesmice que acima de tudo significava a não vida, cadência cruel para aqueles que, tudo sugeria, estavam com o tempo de existência próximo do esgotamento?

Os passeios realizados nas horas matinais e no momento em que o sol se punha, os amenos jogos de salão, os namoricos estritamente contidos, as reuniões em torno do aparelho de rádio, todos estes pequenos afazeres diários acabavam esvaziados de sentido pela repetição padronizada no cotidiano. Mais do que isto, o ritmo da vida sanatorial acentuava a paralisação grupal, reiterando o receio de inutilidade compartilhado por muitos homens e mulheres que, até o momento da descoberta dos pulmões contaminados, confundiam suas vidas com o trabalho árduo e contínuo.

Mesmo que as casas de saúde não incentivassem o trabalho dos seus pacientes – pouco se importando com as possibilidades laborterápicas – a busca de atividades produtivas tornou-se prática corrente entre os tísicos. Nos sanatórios que dispunham de poucos recursos, os fimatosos em melhor estado de saúde recebiam autorização para participarem das tarefas de apoio ao funcionamento hospitalar, ocupando no máximo duas horas diárias com serviços que variavam desde o auxílio aos médicos e enfermeiros até as funções de faxina, jardinagem e alimentação dos animais pertencentes ao nosocômio.

Muitas vezes os próprios infectados encarregavam-se de motivar seus companheiros para a realização conjunta de trabalhos que demandassem pouco dispêndio de energia. No Sanatório Ruy Dória, por exemplo, um depoente informou que os elogios dirigidos a algumas tuberculosas que tricotavam cachecóis e pulôveres para presentear os médicos da casa resultaram na montagem de uma espécie de linha de produção de roupas. Com isso, as vestimentas passaram a ser vendidas à comunidade joseense, não sem antes percorrerem um criterioso processo de esterilização.

A limitação do tempo diário para a realização de tarefas gratificantes fazia com que os prisioneiros das mansões da saúde contassem ainda com muitas horas livres a serem preenchidas de algum modo. Nestes longos períodos de espera da cura ou da morte, pouca coisa podia ser feita, determinando que os doentes do peito se empenhassem em driblar o tédio por intermédio da minuciosa verificação do cenário natural e do ambiente social que os circundavam.

O regulamento institucional que impunha seguidos períodos de silêncio fazia com que os tísicos flutuassem entre as recordações de um passado no qual a doença não existia e a veneração dos eventuais transeuntes sadios. Talvez ninguém melhor que o poeta tísico Rodrigues de Abreu tenha anunciado o voyeurismo que reinava entre os infectados. Confinado às galerias de cura dos distritos sanitários, o escritor compunha versos que se prolongavam na contínua repetição de quem passivamente observa a vida:

A brasa do sol que caíu na montanha

accendeu o cachimbo de um deus solitario.

Vêm de lá espaçadas baforadas,

nuvens leves que se vão diluindo no ar. (1933:73)

Na seqüência de suas composições, o ‘poetinha’ – como Rodrigues de Abreu era chamado pelos colegas modernistas – enriqueceu o foco de atenções, refletindo a fascinação dos consuntivos pelos corpos belos, pois sadios:

Na manhã de Domingo

pela estrada illuminada

passa uma menina loura. (...)

Fico a olhá-la, feliz, curvando-me da grade.

Como é linda a menina loura!

Ella não tem receio algum dos pobres tísicos,

pois sabe que os pobres tísicos

é que dão vida a esta villa sombria.

Ainda de longe ella volta a cabeça e me espia.

Faz o gesto do adeus esquecido ainda ha pouco...

Linda menina loura!

Moeda doirada de saude,

fulgindo ao meu olhar cubiçoso de doente!

Ao mesmo tempo que verificavam a paisagem e os caminhantes à distância, os exilados tentavam rememorar os momentos da vida que um dia fora saudável, lembrando das pessoas amadas, dos amigos que viraram as costas ao saber da presença tuberculosa e também daqueles que surpreenderam pela troca da apatia pela repentina solidariedade ao serem informados sobre o estado contaminado de um conhecido.

Paulo Dantas, Paulo Setubal, Nelson Rodrigues e Antônio Olavo Pereira, dentre outros entisicados, formam o grupo de memorialistas que narraram as doloridas divagações que assaltavam os fracos do peito nas horas de inércia passadas nas cadeiras de lona e nos leitos das enfermarias, forçando os infectados a uma solidão que era difícil de ser quebrada até mesmo pela companhia de outros colegas de desgraça.

A dificuldade de compartilhar os dramas e os medos mais íntimos incitava os doentes a adotarem mascotes como queridos e cômodos confidentes. A presença de cachorros, gatos e passarinhos é um referência constante nos depoimentos dos antigos pectários, sendo que os animais eventualmente podiam ser substituídos por objetos que favorecessem o resgate da ‘condição humana’ negada às vítimas da Peste Branca.

No Sanatório Vila Samaritana, por exemplo, a proibição das visitas infantis fez com que uma tuberculosa assumisse um casal de bonecos como filhos, fato que logo cativou todo o pavilhão de mulheres que passou a disputar com a doente Madalena – ‘mãe legítima’ de Rubinho e Juditinha – o direito de mimar as ‘crianças’, dando oportunidade para que o jornalista Dias Leme registrasse cenas pungentes como as seguintes:

Andam de cama em cama, os doentes fazem-nas dormir, dão-lhes banhos, ralham com elas e, às vezes surgem brigas e rusgas na ‘Dorcas’ por causa das reinações das crianças.

Madalena se desvela com seus filhos. Pudera! É mãe! Se uma doente está passando melhor e pode levantar-se, vai logo carregar o Rubinho. Outras doentes protestam contra o desdém que estão votando à Juditinha. Madalena diz que não quer que façam distinção entre os filhos, para êles não crescerem cheios de... vontades.

E quando discutem as doentes? Não tarda a surgir a mãe das bonecas a reclamar silêncio, porque as crianças estão dormindo. (...) E na hora do repouso absoluto, dá gôsto ver aquela mulher gorda, corada, de seios fartos, estendida em seu leito, apertando nos seus braços roliços o Rubinho e a Juditinha, que dão a idéia exata de duas criancinhas dormindo sossegadamente, ao passo que ela as afaga com tanto desvêlo, entoando baixinho uma canção que mais parece um gemido de rôla. (1944:59)

Paralelamente às divagações solitárias, os tuberculosos tentavam se ajudar mutuamente, centrando as conversas na experiência coletiva com o Grande Mal. O contato estendido no tempo incitava o compartilhamento dos destinos, solidarizando-se na confissão dos medos e das esperanças aqueles que se sentiam filhos da morte.

A ameaça do esquecimento familiar e do fim solitário coagia os enfermos a falarem sobretudo do que a medicina sanatorial tentava coibir: a doença e suas conseqüências para a existência dos infectados. Nestes encontros, os indivíduos aproximados pela Peste Branca trocavam informações, comparavam as habilidades dos clínicos e a eficiência das estratégias terapêuticas, tornando-se a tal ponto íntimos da nomenclatura tisiológica que, passados tantos anos desde a experiência pessoal com a enfermidade, ainda hoje os sobreviventes empregam os jargões médicos sem cair em enganos.

Nesses diálogos também se faziam presentes os fatos que agitavam o universo hospitalar. A recordação oral ou escrita de casos que chamaram a atenção dos doentes do peito sugere que tais eventos tenham sido contados e recontados, permitindo que os detalhes das tramas não fossem relegados à penumbra do esquecimento.

As referências à imperfeição moral dos fimatosos são uma constante instrutora das estórias guardadas na lembrança dos pectários, fazendo das debilidades humanas as grandes personagens das narrativas. Neste processo, Nelson Rodrigues fez questão de incluir em suas memórias o fato da morte de um infectado ter sido despudoradamente comemorada pelo irmão do falecido que, também tuberculoso, ambicionava tomar posse das roupas elegantes que o finado havia trazido para o sanatório.

A descrição deste caso delimita as situações aberrantes que ganhavam o interesse dos asilados:

Oswaldo foi enterrar o irmão e voltou correndo do cemitério. Eu o vejo chegar, com as ventas arregaladas. Arremessou-se para as roupas do morto e as possuiu, ali mesmo, à nossa vista. Atracava os paletós, as calças, as camisas, como um sátiro brutal; e dizia: — Foi Deus que mandou meu irmão para cá. Eu estava sem roupa. Andava de calça furada. Virou-se e mostrou os fundilhos. O remendo aparecia, deslavado. (Rodrigues, 1967:150)

Acompanhando esta tendência, a pesquisa realizada pela professora Nelly de Toledo Cesco (1992) colecionou depoimentos de antigos contaminados, sendo que os casos quase sempre deságuam na vala da ingratidão e do egoísmo imputados aos consuntivos. Um dos casos mencionados envolve um capixaba que se transferiu para o Sanatório Vicentina Aranha em conseqüência da tuberculose que corroía seus pulmões.

Na condição de pensionista da mansão da saúde, o enfermo exigiu que sua esposa, mesmo que sadia, permanecesse residindo no hospital e inclusive partilhasse de seu leito, fato que em pouco tempo resultou no contágio íntimo. Quando o marido viu-se livre da infecção, ele abandonou a mulher, partindo para destino ignorado, pouco depois de ter solicitado a transferência da companheira para o pavilhão dos indigentes, local onde a paciente encontrou a morte, sem ter qualquer notícia sobre o paradeiro do marido.

Para além da rememoração dos acontecimentos atribuídos à deformação dos sentidos produzida pela tuberculose, as conversas entre os doentes do peito ganhavam prolongamento quando alguém passava a enumerar as curas milagrosas de pectários que haviam sido diagnosticados como “casos perdidos” pela perícia hipocrática. A fragilidade do arsenal tisiológico e os óbitos seriados fazia com que os consuntivos buscassem amparos e esperanças nos ensinamentos religiosos, sendo que os próprios servidores dos sanatórios incumbiam-se de fomentar o culto e as novenas em louvor aos santos que haviam padecido da moléstia pulmonar.

A condição ‘liminar’ imposta aos tuberculosos permitiu que alguns deles fossem reconhecidos como santos, tornando-se alvos de veneração pública e especialmente dos infectados. Alguns entrevistados lembraram-se que, nos anos 30 e 40, ganharam intensidade as romarias ao túmulo de José Ezequiel Freire, localizado na cidade vale-paraibana de Caçapava.

Poeta, jornalista e professor da Faculdade de Direito de São Paulo, Ezequiel Freire abandonou suas múltiplas atividades na capital dos paulistas para tentar a recuperação da saúde na Serra da Mantiqueira, falecendo no ano de 1891. Enterrado à sombra de um salgueiro, a árvore começou a verter água, atraindo as primeiras atenções para o túmulo do poeta. Anos mais tarde, quando a família mandou erguer uma lápide marmórea junto ao túmulo, esta também começou a ‘chorar’, resultando na ‘santificação’ popular de Ezequiel Freire, consagrado como protetor dos tuberculosos.

Apesar da fama milagrosa alcançada por Ezequiel Freire, ninguém destacou-se mais que o menino Antonio da Rocha Marmo que, apesar de nunca ter sua santidade reconhecida pela Igreja Católica Romana, constituiu-se no principal e mais duradouro alvo nacional das prédicas dos tuberculosos. A ampla aceitação do poder miraculoso do ‘santinho’ propiciou a continuidade do culto em sua homenagem, sendo que a versão popularizada da vida do ‘virtuoso servo de Deus’ era assunto de referência obrigatória durante os encontros que aproximavam os hóspedes das casas de saúde.

O que guarda de peculiar a biografia do Santo Antoninho para colocá-lo como vulto cristão adorado pelos infectados? Antonio da Rocha Marmo veio à luz no dia 19 de outubro de 1918, em um sobrado localizado no centro da cidade de São Paulo. A sobrevivência da mãe e do recém-nascido parecia incerta, ainda mais porque o parto aconteceu prematuro e não havia facultativo disponível na Paulicéia que, naquele período, lutava contra uma epidemia gripal que vitimara não menos do que duas terças partes dos habitantes da urbe.

Na confusão produzida pela crise sanitária, um médico bateu por engano na porta da residência da família Marmo, salvando a vida da parturiente e de seu fruto, assim como socorreu alguns vizinhos que tinham sido assaltados pela ‘gripe espanhola’. Este foi o primeiro milagre creditado ao menino santificado (Barata, 1938).

A infância de Antoninho foi marcada por acontecimentos surpreendentes. Paralelamente a um conjunto de enfermidades que colocaram em risco a vida da criança franzina, o menino demonstrava profundo apego religioso, tornando-se íntimo de várias ordens religiosas, inclusive daquela que agregava as freiras que atuavam como enfermeiras nos hospitais administrados pela Santa Casa de Misericórdia paulistana.

Aos 5 anos de idade, uma nova provação marcou a trajetória do pequeno: a tuberculose. Por exigência do pai – que ocupava o cargo de chefe da polícia política de São Paulo – Antoninho foi assistido por médicos em sua própria residência, decisão que perdurou até 1925, quando o infectado foi proibido de comparecer às aulas no Grupo Escolar Prudente de Morais. Na seqüência, o tísico foi enviado para continuar o tratamento no município de São Roque e, logo depois, para a cidade de Santos, sendo que o agravamento de seu estado de saúde tornou inevitável o isolamento nas estações de cura de Campos do Jordão e São José dos Campos.

A permanência de Antoninho nas estâncias climatoterápicas contribuiu para a vulgarização das qualidades singulares que seriam exploradas para justificar a santidade do fimatoso. Mesmo padecendo com o contínuo depauperamento do físico, o menino nunca se queixou do desconforto produzido pela consunção, preferindo ocupar seus últimos anos de existência pregando o nome de Deus, visitando os tísicos, amparando os indigentes, diagnosticando casos de tuberculose inaparente, aconselhando os desesperados, servindo de advogado aos réus destituídos de defensores, predizendo o futuro, localizando pessoas e objetos perdidos, encenando a celebração de missa e sobretudo adorando a Deus e ao Papa Pio XI, que do Vaticano comandava os rumos da comunidade cristã.

Seguindo o encaminhamento biográfico calcado na trajetória de vários santos e mesmo na de Jesus Cristo, dizia-se que o menino analfabeto fizera-se mestre, corrigindo e ensinando a todos, inclusive aos tisiologistas que aprenderam com o ‘prodigioso doentinho’ diversas maneiras de identificar precocemente os casos de infecção kochiana. Mesmo que soubesse da brevidade de sua existência e da incapacidade médica em resgatá-lo das garras da morte, o ‘santo heróico’ submetia-se passivamente à orientação clínica, sem nunca se indispor contra a junta de especialistas recrutada para prolongar-lhe a vida.

A morte por caquexia colheu Antonio da Rocha Marmo no dia 22 de dezembro de 1930, momento em que já estava estruturado o culto em louvor do pequeno tuberculoso. Como modelo comportamental, a biografia idealizada para o Santo Antoninho mostrava-se conveniente para aceitação tanto pelos médicos quanto pelos enfraquecidos do peito.

Os profissionais da saúde instigavam a devoção ao menino inclusive porque Antoninho servia de paradigma do ‘bom paciente’, sabendo perdoar as lacunas médicas e, mais do que isto, seguindo com rigorosa obediência os ensinamentos sanitários que evitavam a disseminação do bacilo de Koch.

Os tísicos, por sua vez, uniam-se na adoração do ‘mártir da peste’, sobretudo porque a trama de vida do santo aflorava como uma das raras histórias em que o tuberculoso não despontava como fruto pervertido e perversor da sociedade, mas sim como um ‘puro’, que pela dor ganhou sublime dignidade. Num ambiente no qual o próprio Papa Pio XI insistia em proclamar a enfermidade como forma divina de punição aos pecadores, a constante invocação dos feitos do Santo Antoninho apresentava-se como um dos poucos consolos aos contaminados, sendo que o culto ao ‘santinho’ ramificou-se tanto nas capelas da cristandade quanto nos centros espíritas.

No ambiente ferido pela solidão, pelos temores e pela fé coletiva, a tuberculose tendia a ser redefinida como uma entidade lúdica, passível até mesmo de abordagens humorísticas. Os doentes que ‘viviam escarrando os pulmões a prestações’ riam da doença e da morte para exorcizar o sentimento de exclusão e o terror ao fim dolorido.

Nos momentos em que a euforia tomava os recintos de tratamento, a ‘bruxa chupada’ era empregada como tema inspirador de paródias que faziam as lágrimas cederem vez ao sorriso encabulado. Nestes instantes, os versos lamurientos e desesperados dos fimatosos Auta de Souza e Augusto dos Anjos eram substituídos pela ironia improvisada e cantada em grupo. O estatístico Tulo Hostílio Montenegro (1971), membro de uma família dizimada pela Peste Branca, preservou os seguintes versos de autoria coletiva:

Cidade tuberculosa,

Cheia de micróbios mil,

Cidade tuberculosa,

Sanatório do Brasil.

A alegria postiça instigava os compositores de ocasião a apurarem ainda mais suas ousadias, dando versão surpreendente à letra de um conhecido tango argentino:

Besame, besame mucho, pero aquí en la frente,

No, no, ne la boca no mes beses no!

Quiero que vivas aunque yo me vaya,

Quiero que vivas, aunque muera yo.

O medo e a dor, quando vividos continuadamente, acabaram sendo requalificados como sinistros e inevitáveis companheiros dos pectários.

A ronda da morte

O cotidiano hospitalar tinha como gerador máximo de tensão as ocasiões de visita do Ceifeiro Implacável. Nestes instantes, tornava-se impossível para os médicos encenarem otimismo, assim como as relações jocosas que buscavam animar o exílio dos infectados ganhavam as cores do mau gosto. O silêncio que imperava nestas horas de desespero dava vez para que o valetudinário revelasse todas as suas dores físicas e morais, por meio de palavras desencontradas e dos gemidos que denunciavam a agonia feroz proporcionada pela respiração deficiente e pelo dilaceramento do tecido pulmonar.

O medo da morte prometida aos fimatosos encontrava como elemento dissimulador os reiterados pedidos feitos aos médicos e aos enfermeiros para que falassem um pouco mais sobre o estado dos pulmões do interpelante. A piedade exigida pela profissão da saúde impunha que as respostas convergissem irremediavelmente para as “boas possibilidades” de cura do paciente, principalmente quando o avalista fosse ele próprio vítima da Peste Branca. Foi com estas palavras que o enfermeiro Duarte tentou iludir uma paciente que, próxima da morte, suplicava algumas sentenças de conforto:

A senhora tenha paciência, a senhora vê, eu também sou doente e estou me recuperando. A senhora vai ficar boa e voltar a viver com sua família. Tenha coragem, muita coragem... Nossa Senhora vai ajudá-la a sarar...

A suspeita de que os profissionais da saúde falseavam as respostas pedidas pelos tísicos incitava os asilados a elaborarem avaliações próprias sobre o estado em que se encontravam suas cavernas pulmonares, buscando indícios comprovadores da marcha infecciosa. A insistente presença de tuberculosos nos recintos onde permaneciam engaiolados os animais que serviam como cobaias revelava-se como estratégia tranqüilizadora dos doentes que queriam saber se não estavam sendo enganados pelos especialistas na doença pulmonar.

A inspeção contínua e apaixonada das cobaias era prática corriqueira entre os enfermos que torciam para que os indicadores vivos não apresentassem sinais da infecção, pois o óbito do animal era o mais flagrante alerta de que a morte rondava os tísicos. A depoente Raquel Pereira retratou vivamente a ansiedade que tomava conta dos pacientes que visitavam os laboratórios, ambiente que formalmente era privativo dos técnicos sanatoriais:

A gente fazia exames de inoculação na cobaia. Extraíam da gente suco gástrico e inoculavam a substância nos bichinhos. Se a cobaia não morresse dentro de três meses, os médicos matavam a cobaia e a examinavam. Se a cobaia estava boa de saúde, então a gente estava praticamente curada. No começo eu inoculava cobaia e elas morriam em pouco tempo. Era porque o bacilo de Koch estava presente. Eu ficava desesperada...

O sentimento de salvação também encontrava fundamentos na reação do animal utilizado nos testes:

Eu fiz o suco gástrico, inocularam a cobaia e ela foi engordando, ficando bonitinha. A gente já sabia antes do médico que a gente estava melhor. Eu e minhas amigas íamos muito visitar nossas cobaias, isto é, os bichinhos que tinham recebido nosso material. Se a cobaia continuasse normal, comendo direitinho, engordando, era porque a gente estava negativo. Minha última cobaia estava bonitinha. Ela corria na gaiolinha, assim, disposta e gordinha, comia bem tudo o que era dado... Daí eu fiquei convencida que tinha sarado. No fim dos 3 meses mataram a cobaia e ela e eu estávamos negativo...

A constatação do desaparecimento do germe tuberculoso no corpo do paciente não afastava de todo o temor do fim iminente. A consciência de que a Peste Branca era ‘doença caprichosa’ alimentava o sentimento de insegurança de todos os enfermos. A qualquer instante, o curso da enfermidade poderia reverter marcha, arrebatando inesperadamente a vida.

Se a anorexia progressiva deixava claro que o óbito ocorreria em breve, a hemoptise repentina e mortal poderia ganhar espaço, mesmo naqueles que a tisiologia diagnosticava como próximos da cura. As anotações clínicas e a lembrança dos infectados acumulam registros semelhantes ao que aconteceu com a pectária Laura Peres (F. 343): “Quando se pensava que o caso ia ter desfecho favoravel, teve hemoptyse fulminante, fallecendo em 5 minutos, na manhã de 27 de novembro de 1935”.

Nesse ambiente contaminado pela morte, os sanatórios criavam situações dissimuladoras da agonia dos pacientes terminais, fazendo uso de um conjunto de artifícios que tentavam minimizar a série contínua de óbitos. Principalmente nas casas de saúde que acolhiam os tísicos mais abonados, existiam grupos de servidores especializados em retirar dos quartos os pacientes em estado agônico ou já falecidos, numa discrição tal que muitos enfermos nem se davam conta do ocorrido, fechando silêncio sobre o súbito desaparecimento do hóspede adoentado.

Se a engenharia hospitalar aconselha até hoje que os necrotérios devem ocupar espaço isolado na planta dos nosocômios, a arquitetura sanatorial levava esta orientação ao extremo, posicionando as morgues e os pavilhões para os valetudinários em áreas muito afastadas dos centros de vivência dos infectados. Sob a alegação de que a morte de um dos fimatosos ampliava os medos e agravava o estado da saúde dos demais tuberculosos, os hospitais chegavam até mesmo a proibir a presença dos pectários nas cerimônias fúnebres em memória dos seus colegas, impedindo que se prestasse as últimas homenagens ao falecido. Solitários em vida, mesmo depois do óbito os consuntivos sofriam da dolorosa ausência de companhia.

Mais uma vez é Dona Raquel quem fala sobre o encaminhamento da morte na mansão da saúde capitaneada pelo Dr. Ruy Dória:

A gente ficava triste quando sabia que uma amiga estava mal, que não tinha mais condições para sobreviver. Então um dia, quando chegava a ponto que tiravam aquela pessoa do convívio da gente, porque o Dr. Dória não queria que a gente visse ela morrer. Então, eles levavam a pessoa para um pavilhão que ficava bem no fundo do terreno do sanatório, onde a gente nunca podia entrar. O pavilhão tinha até um apelido que não era muito agradável: ‘Vai’. Quem ia para lá, ia mesmo. Vai... ‘Ah, fulano foi para o Vai’. Então a gente sabia que a pessoa ia morrer. A gente ficava muito triste...

Porém, a escassez de equipamentos e funcionários e a exigüidade das acomodações – características das casas de saúde mais pobres – permitia que freqüentemente o óbito se desse em espaços coletivos dos sanatórios, sendo presenciado por todos os doentes.

A progressão da moléstia pulmonar fazia com que, eventualmente, os grandes vasos sangüíneos fossem dilacerados, abrindo possibilidades para que o enfermo se engasgasse pela continuidade dos vômitos vermelhos. Nestas ocasiões, medo e solidariedade, tristeza e repugnância, angústia e nojo se confundiam, dando forma ao comportamento das desesperadas testemunhas que receavam estar presenciando o que – mais dia, menos dia – a tísica lhes estava reservando.

Um longo trecho assinado por Nelson Rodrigues (1967:192) relata os momentos de agonia e morte de um cantor de tango que, nascido em Jaboticabal, tornou-se famoso nos bordéis do cais santista. Contaminado pela tuberculose, o artista perdeu tudo, da voz à esposa, encontrando a morte no Sanatorinho jordanense:

Uma noite, ouve-se o seu grito: — Sangue, sangue. Alguém acende, rápidamente, a luz. Era a hemoptise. Veio o médico de plantão. Ainda me lembro do ôlho enorme do mêdo. (...) E, súbito, começou a odiar a mulher. Cachorra, cachorra. Xingou-a de todos os nomes. Era terrível de se ver a sua agonia pornográfica.

Quiseram levá-lo para o isolamento. Reagiu, babando sangue — Morro aqui, aqui. Queria morrer no meio dos outros, olhando alguém, alguém. E, então, foi deixado em paz. Horas antes de morrer, deixou de odiar a espôsa. Agora o ódio era um desejo triste, tardio, inútil. A enfermaria tôda, numa unanimidade homicida, queria a sua morte. Nenhuma pena e só irritação. E o que assombrava era que ainda tivesse sangue para jorrar no balde.

Eu me lembro de sua última manhã. Só os olhos viviam, só os olhos vazavam luz. Cêrca de umas nove, dez horas, entra a crioula, baiana, d. Maria, que tôdas as manhãs varria a enfermaria. O médico e o enfermeiro tinham acabado de sair. Os outros doentes estavam na varanda, tomando sol nas pernas. E, na enfermaria, o moribundo levantava-se do fundo de sua agonia. Via a preta (magra e velha), varrendo, mudando os lençóis e as fronhas. Saltou da cama e veio, cambaleando, atropelar a criada. Esta pula para trás, desprende-se, uma fúria. As canelas finas e espectrais não sustentam mais o moribundo. Quando os outros entram, viram no chão, a ossada aluída. Era, sim, apenas uma ossada com uma pele diáfana por cima.

A baiana apanhara a vassoura, a mãos ambas, e ia fender-lhe o crânio. Os outros carregaram o homem de Jaboticabal, enquanto a arrumadeira esganiçava palavrões. E, ali, morreu o cantor agarrado ao seu último desejo.

Selando o destino da irmandade

O ‘exílio’ conjunto machucava cada um dos tísicos ao mesmo tempo que incitava os infectados a organizarem um espaço de sociabilidade próprio. A tendência ao rompimento dos laços familiares – que muitas vezes não eram cultivados nem mesmo por meio da troca de correspondência – assim como a marca dos múltiplos estigmas favorecia a consolidação de um ‘espírito de corpo’, determinando que os próprios tuberculosos se definissem como membros de uma ‘irmandade’ cuja condição ultrapassava o estado infectado para se constituir na desoladora imagem do ‘fracassado’.

A reiteração destes termos, inclusive nos depoimentos prestados aos clínicos do Hospital São Luiz Gonzaga, fazia com que os pectários cobrassem a existência de um espaço geográfico e social exclusivo para eles próprios. O cerceamento da liberdade dos fimatosos de peregrinar pelas áreas presumivelmente habitadas pelos sadios resultava em constantes conflitos. No bairro paulistano do Jaçanã, um depoente informou que eram corriqueiras as reclamações dos moradores da região que, apesar de terem suas residências distanciadas por quilômetros do sanatório da Santa Casa, mesmo assim protestavam junto à diretoria do nosocômio, exigindo que os enfermos fossem mantidos presos no terreno hospitalar.

Parece que a situação era ainda mais tensa nas prefeituras sanitárias. Neste contexto, os fracos do peito contrapunham-se aos moradores sadios e aos turistas que freqüentavam as estações de cura, estabelecendo os limites de interação entre o ‘nós’ e os ‘outros’. Refletindo estes contrastes, uma consuntiva internada em um hospital localizado na Serra da Mantiqueira assim se referiu à questão quando questionada pelo pesquisador:

Eu sinto isto aqui como uma coisa nossa. Tenho a impressão de que aqui o doente nem tem obrigação de tomar o cuidado que tem lá em baixo. Para mim, a pessôa sã que vem a Campos do Jordão não tem nenhum direito de exigir cuidado da parte dos doentes. Si elas têm medo por que vêm aqui? Isto aqui é nosso. Aqui o doente se sente à vontade, como se estivesse em casa.

Na mesma perspectiva de contraste, outro tísico acrescentou: “Algum dia ainda vamos vêr, por aquí, doente meter faca na barriga de gente sã!” (Nogueira, 1945:32)

A consolidação da identidade grupal colocava em confronto mesmo os tuberculosos que ocupavam diferentes lugares nas malhas sanitárias. Um antigo fimatoso que recebeu tratamento em vários sanatórios localizados nas estâncias climáticas de São Paulo afirmou que somente nas casas de saúde filantrópicas é que verdadeiramente reuniam-se condições para a cura dos pulmões. Isso porque, enquanto as normas eram ‘rigidamente seguidas’ nos hospitais para indigentes, nos ‘sanatórios para ricos’ – e neste ponto ele citou o joseense Sanatório Ezra, mantido pela colônia israelita – a vida era tão agitada como se os doentes vivessem em um ‘hotel de grã-finos sadios’, não oferecendo oportunidade para o necessário repouso dos pacientes.

Seguindo a mesma orientação, outro informante confidenciou que as pensões que acolhiam os tuberculosos eram “verdadeiros clubes de cafajestes”, concluindo que os hóspedes destas casas “não levavam a sério qualquer tipo de ordem médica, fingindo-se de sadios para se divertir na cidade”.

Dando continuidade à operação classificadora dos vários segmentos que compunham a irmandade, os consuntivos buscavam ainda se distinguir dos demais núcleos de infectados por meio da divulgação de intensos elogios ao tisiologista responsá-vel pelo tratamento dos pacientes de um determinado sanatório. A dependência nutrida pelos doentes em relação aos seus médicos frutificava em louvores que convergiam para a qualificação do facultativo como ‘o melhor de todos os especialistas’ atuantes na região (senão do país) e que ele estava realizando pesquisas que um dia resultariam na descoberta do agente curativo da tuberculose.

Esse tipo de falatório atingiu inclusive o Dr. Ruy Dória. Logo após a capitulação italiana na Segunda Guerra Mundial, este médico visitou a cidade de Nápoles, onde estagiou em vários hospitais e aprendeu a técnica de aspiração endocavitária, recurso clínico desenvolvido a partir do ano de 1938 pelo médico Victorio Monaldi. Ao regressar a São José dos Campos, o Dr. Dória deu início à prática de drenagem com aspiração das cavernas pulmonares, fato que permitiu que muitos dos seus pacientes atestem até hoje que o tisiologista brasileiro inventou tal intervenção, contribuindo definitivamente para o esforço mundial de cura da Peste Branca.

Apesar das tensões e conflitos que agitavam a irmandade dos fracassados, a idéia de agrupamento diferenciado prevalecia, dando consistência ao universo dos tuberculosos. A perda diária de membros e a incorporação de novos ‘irmãos’ não impedia a vigência de uma espécie de código ético entre os infectados, favorecendo inclusive a composição de uma infinidade de gírias que tornava o diálogo travado entre os fimatosos quase totalmente fechado para os ‘outros’, isto é, para os personagens que não estivessem diretamente envolvidos com o cotidiano dos infectados.

A consulta à pesquisa elaborada por Oracy Nogueira (1945) e a conversa com antigos pacientes de sanatórios permitiu o acesso a cerca de uma centena e meia de gírias empregadas pelos pectários. Mais do que um código que permitia o sigilo das conversas mantidas entre os doentes do peito, percebe-se o temor dos tísicos em pronunciarem o nome de tudo o que se referia à condição enfermiça, como se a anulação das referências diretas à doença e aos seus desdobramentos tornasse mais leve a pena imposta pela corrupção pulmonar.

Nas conversas entre os fimatosos ‘micuim’ ocupava o lugar de bacilo de Koch, ‘arriar a asa’ ganhava o sentido de fazer toracoplastia, ‘mariquinha’ era referência preferida para escarradeira de bolso e ‘curado’ servia como sinônimo de morto.

Parece que os pectários evitavam a todo custo chamar a doença do peito e o estado enfermiço pelas suas designações próprias, substituindo-as por uma pluralidade de expressões. A doença, doença ruim, doença que não se fala o nome, a filha da puta, o mal, insidiosa, lolose, magrinha, meu xodó e brasileirinha eram alguns dos nomes emprestados à tuberculose.

O adjetivo tuberculoso, por sua vez, ganhava ramificações surpreendentes: avenca, baleado, bichado, bicicleta, bombardeado, cabide, cagado, carunchado, cavernoso, chumbado, chuveiro, colega, companheiro, condecorado, comunista, derrotado, doente, dragão, estegomia, fariseu, fibroso, ficho, fracassado, fundo, granfino, guarda-chuva, girassol, goiaba, imprestável, inocente, irmão, jacobino, metralhadora, nazista, pêssego, palito de fósforo, patrício, pinhão chocho, pinhão cozido, réco-réco, spitfire, ter somente o chassis, tepê, trinta e três e turista.

As consuntivas consideradas bonitas e volúveis recebiam ainda uma outra designação: Vivien Leigh. E isto porque, segundo um depoente, a atriz norte-americana estava no “auge da infecção quando atuou esplendidamente em ...E o Vento Levou”, sucesso cinematográfico no ano de 1939.

Neste contexto, os contornos da irmandade ganhavam dimensão nova, fazendo de todos os sanatórios a nação dos fracassados que trocavam informações e angústias. A rotina da busca da saúde impunha que um mesmo enfermo percorresse seguidos hospitais especializados, até que a morte, a cura ou o desânimo colocasse fim à sofrida peregrinação.

As imagens igualadoras dos consuntivos resultavam na concepção da existência de um território descontínuo no espaço, mas abrangente como rede. Isso permitia que, independentemente das trajetórias sociais e das reações individuais frente à moléstia, os infectados vislumbrassem a participação em um grupo uniforme, composto sob a égide da peste:

Um tuberculoso é um elemento sem pátria, nem fronteiras (...). Um ladrão chinês é um ladrão chinês, diferentíssimo do ladrão turco, brasileiro, norte-americano, a começar pelas coisas que furta, como furta, etc... Um sujeito honesto é também diferente em cada país, como o gigolô, o político, o funcionário público, o vendedor ambulante. Mas um tuberculoso é o mesmo em qualquer parte do mundo, internacionalizado pelo mesmíssimo bacilo. (Alphonsus, 1976:220)

Definia-se assim o dia-a-dia da ‘irmandade dos fracassados’. A sujeição ao isolamento sanitário moldava o cotidiano dos pectários, estabelecendo os limites da existência de uma parcela dos tuberculosos. Aglutinados em sanatórios isolados ou nas prefeituras sanitárias, os doentes do peito viviam a ‘aventura’ da enfermidade, criando dispositivos para preservar um mínimo de individualidade frente às imposições institucionais que visavam à transparência e à fiscalização dos atos de cada um dos hóspedes do confinamento sanitário.

Nestas circunstâncias, ganha maiores evidências o posicionamento negador do doente como ‘vencido’. Apesar dos próprios enfermos apresentarem-se como ‘fracassados’, eles reagiam frente à doença, à perda de privacidade e à estigmatização que persistia inclusive nos ambientes de cura. É certo que tanto os movimentos individuais quanto os coletivos eram pautados por indecisões e ambigüidades, fato que, antes de desqualificar, conferia sentido próprio à trajetória das vidas contaminadas.