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Os caminhos da vida e da ciência

Desde o momento em que o tuberculoso era assumido pelas malhas do isolamento, ficava patente para ele que o tempo perdera o valor de grandeza matemática para se equiparar a uma estranha espécie de medida biológica, na qual a aparência radiológica dos pulmões e a quantidade de bacilos contados em cada amostra de escarro analisada constituíam-se em índices determinadores do período em que a vida permaneceria estancada pelas normas sanitárias.

Dependentes do parecer médico, os pacientes vislumbravam a alforria institucional não só quando a cura ou o controle da infecção eram anunciados pelos especialistas, mas também quando o caso era avaliado como ‘clinicamente perdido’. Isso porque a condição de doente terminal coagia as autoridades hospitalares a ganharem súbito ar de condescendência, abrindo oportunidade para que os moribundos – ou seus responsáveis – optassem entre a mudança para o pavilhão exclusivo dos ‘quase-mortos’ e a transferência para o aconchego doméstico.

A decisão de empenhar os últimos momentos da existência em local distante do ambiente sanatorial é uma constante anotada em numerosos prontuários de fimatosos que certamente estavam cientes do pouco tempo de vida que lhes restava. Assim aconteceu com o operário Jairo Lemes Amaro (P. 874), um consuntivo de 22 anos de idade que permaneceu durante trinta meses na enfermaria de indigentes do Hospital São Luiz Gonzaga.

No transcorrer do período de isolamento, Jairo viu seu corpo minguar pouco a pouco: os boletins elaborados pela equipe de enfermagem registram que o paciente perdia peso, chegando a apenas 30 quilos, o que impunha uma imagem demasiadamente arruinada ao seu corpo, que atingia 1,76 metro de altura. Mais ainda, o tísico queixava-se diariamente de atrozes ‘pontadas no peito’ que não o deixavam dormir, sendo de pouca valia as injeções de morfina recomendadas pela clínica. Nestas condições, o enfermo percebeu que sua vida estava por um fio e, por isso, no dia 5 de abril de 1940, pediu alta “para falecer em sua casa em Jacareí”, sendo seu rogo imediatamente atendido pelo Dr. Alvaro de Lemos Torres, diretor da casa de saúde do Jaçanã.

A mesma presteza institucional não tinha lugar quando o enfermo estava em vias de alcançar a cura ou pelo menos a estabilidade do processo patológico crônico. Contrariando os pedidos de dispensa formulados pelos pacientes em fase adiantada de recuperação, os tisiologistas tentavam estender o tempo de internamento, lembrando aos consuntivos que a condição sinuosa da Peste Branca aconselhava que mesmo os curados deveriam permanecer alguns meses sob observação hospitalar, para que ficasse comprovado o pleno equilíbrio das funções pulmonares.

A demora médica em conceder alta incitava os hóspedes convalescentes das mansões sanitárias a insistirem contra o prolongamento da reclusão. O lavrador Raphael Alexandrino da Silva (F. 2669) foi um dos tuberculosos assistidos pelo sanatório paulistano da Santa Casa que pediu dispensa logo após ser informado que estava próximo da cura, fato que justificou a seguinte nota clínica: “O doente não quiz permanecer por mais tempo no Hospital razão pela qual não se preve a durabilidade da cura”.

Retomar a vida livre e afastada dos ambientes ‘entisicados’ era o desejo comum a todos os pectários. Mas, seria isto viável para aqueles que momentaneamente haviam vencido o Grande Mal? A marca aviltante da moléstia levava as famílias dos enfraquecidos do peito a se mostrarem reticentes na hora de admitir o regresso do enfermo para o recinto doméstico. O receio de que o convalescente pudesse contaminar e corromper moralmente os sadios unia-se à duvidosa capacidade do infectado ganhar seu próprio sustento, resultando no adiamento máximo possível da reincorporação dos fimatosos nos seus círculos de amizade e parentesco.

É certo que os asilados, ao se desligarem dos sanatórios, já antecipadamente sabiam das dificuldades produzidas pela decisão de reingresso no universo dos sadios. As enfermarias estavam repletas de tísicos crônicos cujas histórias eram pontuadas pela frustração de pessoas que se viram rejeitadas pelos seus familiares, resultando em pedidos de readmissão hospitalar.

Dentre tantos casos semelhantes, encontra-se o da paciente Zulmira Gonçalves (P. 322) que, após ter sido premiada com alta clínica em “estado muito melhorado”, voltou a residir com o marido e os filhos, no bairro de Pirituba. Porém, dois meses após ser liberada, Zulmira voltou ao Hospital São Luiz Gonzaga, informando que “sentia-se bem”, mas que desejava retomar seu leito na enfermaria porque “seu marido achou por bem mante-la afastada dos filhos menores”.

Os constrangimentos gerados pela experiência íntima com a enfermidade e as desconfianças nutridas pelos sadios em relação aos infectados exigiam que os pectários buscassem escamotear o pretérito de doente do peito. O tuberculoso Antônio Olavo Pereira (1976) – irmão do editor José Olympio – depois de abandonar Campos do Jordão, evitava manter contato social com os seus antigos ‘colegas’, negando-se veementemente a declinar o nome da prefeitura sanitária onde permanecera por vários anos.

O empenho em atenuar as marcas da enfermidade impregnava também o cotidiano de Manuel Bandeira. Auxiliado por seu amigo e tisiologista Aloysio de Paula, o poeta aprendeu a realizar uma meticulosa ‘toalete brônquica’, momento no qual tentava expelir o catarro acumulado nos pulmões fibrosados pela tísica. Com esta prática que se repetia todas as manhãs, Manuel Bandeira sentia-se livre para sair à rua, sem receios de ser vitimado pela tosse copiosa que colocava em alerta seus parceiros de jornada intelectual (Paula, 1989).

Porém, não era fácil esconder a condição de quem um dia fora tributário da Peste Branca. O ditado popular que alertava “uma vez tuberculoso, sempre tuberculoso” colocava em suspeita todos aqueles que guardavam as marcas da corrupção pulmonar.

Uma depoente, que exigiu sigilo sobre sua identidade, lembrou com lágrimas nos olhos a situação que viveu na infância, quando sua mãe recebeu alta de um sanatório jordanense. Ao retornar para sua residência, na cidade de São Paulo, a convalescente soube que seu marido havia fugido logo após receber o telegrama que informava sobre sua volta ao lar, deixando a filha do casal aos cuidados de uma vizinha.

Nesta condição, a enferma transferiu-se com sua criança para a cidade de Atibaia, onde alugou uma casa de fundos e passou a viver como empregada de uma fábrica local. Tudo corria bem para a consuntiva e sua filha até o instante em que um dos vizinhos especulou a menina sobre o passado materno, sabendo então que a inquilina havia vivido durante dois anos em Campos do Jordão. Ato contínuo, o temeroso indivíduo reuniu os moradores das proximidades, exigindo que a infectada abandonasse o bairro no prazo de 24 horas.

A verificação, no cotidiano, de situações como esta fazia com que os tísicos tentassem se proteger das eternas suspeitas por meio da apresentação de um documento comprovador do atual estado de saúde do fimatoso. O lavrador Pedro Celestino Filho (P. 1717), que em agosto de 1943 havia recebido alta, retornou ao Sanatório do Jaçanã para pedir um atestado clínico, alegando que carecia do relatório por ter se defrontado com “algumas dificuldades” para conseguir emprego. Em resposta, o Dr. Octavio Nebias redigiu a seguinte declaração: “Atesto que o Sr. Pedro Celestino Filho se encontra em recuperação pulmonar e apresenta uma imagem de condensação, tendo sido negativas as provas de laboratorio para diagnostico de tuberculose”.

A posse de uma carta confirmadora de que o portador encontrava-se ‘curado’ ou ‘em recuperação’ da tísica não representava qualquer garantia de colocação no mercado de trabalho. A desvalorização da mão-de-obra com passagem sanatorial resultava na convergência dos pectários para empregos com salários reduzidos, exigindo-se destes funcionários redobrados esforços produtivos em retribuição ao ‘favor’ que o patrão estava fazendo em contratar um doente do peito.

Cobrado talvez mais do que os seus companheiros sadios, o operário consuntivo via-se pressionado a aceitar qualquer proposta de emprego, mesmo nas atividades que eram desaconselhadas para os convalescentes que, em geral, deixavam de ser preparados pela medicina para retornar à rotina do trabalho em atividade compatível com seu estado de saúde.

Paralelamente aos arranjos que provessem as necessidades básicas, os egressos do sistema hospitalar aproveitavam a relativa liberdade de ir e vir para percorrer diferentes lugares à procura do remédio ou do milagre que os libertassem de vez do fantasma consuntivo. A confiança oscilante, às vezes rota, na capacidade médica de vencer a Peste Branca, coagia muitos enfermos a tentarem outras formas de tratamento pulmonar, sem, no entanto, abandonar as propostas terapêuticas fomentadas pela tisiologia.

Um antigo tuberculoso crônico confidenciou que, logo após receber alta de um sanatório jordanense, permaneceu por dois anos visitando médicos alternativos, farmacêuticos, massagistas, naturalistas, ervanários, padres, pais e mães de santo, benzedeiras, curadores e líderes espíritas, sempre buscando a mesma coisa: a ‘cura definitiva’ das cavernas pulmonares.

Neste contexto, talvez seja o momento ideal para a pergunta: além da assistência prestada pela medicina alopática e da pálida esperança da ocorrência da ‘cura espontânea’ alardeada pela clínica, quais eram as demais modalidades terapêuticas colocadas à disposição dos fimatosos, principalmente quando estes estavam distantes da vigilância nosocomial?

A primeira referência mencionada por vários entrevistados foram os almanaques distribuídos gratuitamente pelas farmácias e que alardeavam diferentes remédios contra a ‘fraqueza pulmonar’. Nesses livretos, bem mais publicitários do que educativos, anunciava-se uma quantidade surpreendente de remédios curativos ou que pelo menos garantiam a energia suficiente para que os infectados superassem a anorexia produzida pela moléstia pulmonar: Biotônico Fontoura, Peitoral de Cereja do Dr. Ayer, Peitoral Anancahuita, Bromil, Sangue de Cavalo, Ferro Concentrado e Emulsão de Scott eram alguns dos produtos apresentados como ‘poderosos auxiliares’ no tratamento da tísica.

Junto aos exemplares nacionais, os almanaques estrangeiros também ganhavam aceitação, sendo que o Almanach Hachette, (1941:146) alardeou que a “cura certa da tuberculose” poderia ser alcançada mediante o uso de uma droga secreta, mas tão secreta que até mesmo o seu nome não podia ser declarado nas páginas do catálogo.

A certeza de que quanto mais remédios fossem utilizados, maior seriam as chances de recuperação da saúde impunha que os doentes buscassem novas esperanças nas práticas médicas atualmente consideradas alternativas. A homeopatia despontava como possibilidade enfaticamente lembrada pelos tributários da Peste Branca, inclusive porque eram freqüentes os pronunciamentos clínicos que pontificavam que a doutrina criada por Hahnemann reunia recursos suficientes para promover a “cura rapida de todos os tuberculosos”.

Dentre os vários específicos homeopáticos ministrados contra o Grande Mal encontravam-se a Pulmonina, do Dr. Alberto Seabra, assim como alguns preparados como o Phosphorus e a Calcarea carbonica, estes últimos indicados para a moléstia consuntiva desde o momento constitutivo do ideário homeopático.

A multiplicação de práticas alternativas expandia numericamente as promessas de cura, as quais eram vulgarizadas por meio de livretos preconizadores do princípio segundo o qual a tuberculose não era uma doença tão letal quanto a alopatia proclamava. A perspectiva negadora da veiculação microbiana da tísica tornou-se fonte de inspiração para vários estudiosos que, mesmo escrevendo no estrangeiro, encontravam ampla receptividade no Brasil.

Dentre tantos nomes invocados pelas testemunhas deste período, encontram-se os do chileno Manuel Lazaeta Acharan (1933) e do argentino Jaime Scolnik (1940). No decorrer dos anos 30, estes personagens apresentaram-se como articuladores de novas doutrinas que, no final das contas, constituíam-se em cópias mal ajambradas do ideário vitalista vigente no início do século XIX.

Tanto para Lazaeta quanto para Scolnik, a causa primeira da enfermidade pulmonar encontrava-se na deterioração da parcela de alimentos ingerida mas não absorvida pelo organismo humano. O ‘apodrecimento’ das substâncias não aproveitadas produzia uma ‘inflamação intestinal’ que repercutia no funcionamento precário de todo o corpo e em especial do aparelho respiratório, podendo resultar inclusive no fenômeno que a medicina erroneamente denominava de tísica. Assim, para a cura da tuberculose sin médico ni farmacia, prescrevia-se uma dieta alimentar vegetariana que, baseada em frutas cítricas, nozes e avelãs, favorecia a rápida absorção orgânica da comida, purificando o sangue ao mesmo tempo que inibia qualquer disfunção pulmonar.

A aceitação das propostas curativas importadas incitou diversos estudiosos brasileiros a ‘descobrirem’ a solução final para o enigma sanitário. Dentre os vários pesquisadores nacionais que divulgaram versões explicadoras do mecanismo patológico, encontra-se o engenheiro e filósofo Roberto de Souza (1941-1947) que, ostentando diplomas expedidos pela Escola Politécnica e pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ambas da Universidade de São Paulo, compôs uma série de relatórios sobre a Peste Branca, textos estes que, ainda nos anos 40, foram reunidos em livro.

Seguindo as conclusões da clínica alopática, Roberto de Souza informou que o bacilo de Koch constituía-se em um germe altamente infeccioso, mas pouco patógeno, daí estar presente na maior parte dos seres humanos, sem contudo produzir a moléstia em todos os contaminados. A diferenciação entre ‘indivíduo infectado’ e ‘indivíduo enfermo’ permitiu ao engenheiro filósofo repetir o velho jargão segundo o qual “só é tuberculoso quem quer”, oferecendo a partir daí encaminhamento próprio para a terapêutica eficaz tanto para a moléstia consuntiva quanto para a terrível hanseníase. Eis o segredo do pesquisador Souza: uma ‘alimentação racional’, baseada em sais minerais, vitaminas essenciais, ácido fólico e extrato hepático garantiria vigor orgânico suficiente para a produção de anticorpos capazes de bloquear a invasão bacilar e também de expulsar as colônias bacterianas que povoavam o corpo dos consuntivos e dos leprosos.

As propostas que reduziam o Grande Mal à condição de doença de fácil prevenção e cura seduziam a população, tornando-a vítima indefesa dos aventureiros que queriam lucrar com o império da tisiofobia. Os esforços despendidos pelos vendedores ambulantes que comercializavam em praça pública compostos apresentados como restauradores da saúde pulmonar chegavam às raias do humor negro. Em um destes casos, o paulistano jornal Folha da Noite, de 14 de outubro de 1932, convocou a polícia para dar voz de prisão a um “camelot” que passava os dias nas calçadas da Avenida São João, anunciando em altos brados as qualidades medicinais do sabão inglês produzido por um certo Dr. Rolls Royce, sendo que, segundo o vendedor, tal mercadoria curava “desde callos até tuberculose galopante”.

Além das drogas fornecidas pelas diversas vertentes médicas e também pelos exploradores dos medos coletivos, a tragédia íntima da tuberculose impunha que os fimatosos buscassem alcançar a pureza do corpo e da alma por meio da intervenção divina. A aproximação histórica entre o espiritismo e a homeopatia situava a tenda espírita como extensão do gabinete hahnemanniano, fazendo com que o credo religioso e a medicina alternativa afluíssem para a promessa de cura rápida de todos os pectários conversos a um só tempo às prédicas de Allan Kardec e aos ensinamentos de Samuel Hahnemann.

A doutrina católica romana, bem mais do que o espiritismo, pregava que a cura dos tísicos poderia ser alcançada por intermédio da misericórdia de Jesus Cristo e de todos os santos. Em resultado, o estado de São Paulo contou com inúmeras capelas para onde se dirigiam os infectados à espera do milagre salvador, ganhando prestígio a ‘igrejinha’ construída por ordem de Antonio da Rocha Marmo, em terreno adquirido por seus pais, em São José dos Campos. Um informante esclareceu que a existência de um santuário em homenagem ao menino Antonio tornou regra que os doentes que rumavam para a prefeitura sanitária do Vale do Paraíba se detivessem por alguns instantes no pequeno recinto sagrado, “limpando a alma para buscar a melhora da saúde com os médicos”.

Apesar da proliferação dos centros religiosos paulistas que atraíam a presença dos fracos do peito, nenhum outro local granjeou tanta fama quanto a igreja matriz da vila de Poá, área então pertencente ao município de Mogi das Cruzes e localizada a cerca de 35 Km da cidade de São Paulo.

No ano de 1935, o sacerdote holandês Eustáquio Van Lieshout foi designado para coordenar os serviços pastorais naquela comunidade, imediatamente ganhando prestígio como médico e farmacêutico improvisado que curava todos os adoentados que o procuravam. A declarada devoção do padre Eustáquio à Nossa Senhora de Lourdes – santa de invocação contínua por parte dos consuntivos – estimulou os boatos que apontavam o filho da Ordem do Sagrado Coração como responsável pelas ‘curas milagrosas’ de diversos pectários, fato que instigou ainda mais a presença de tuberculosos na pequena Poá.

A agitação que tomou conta do núcleo religioso chamou a atenção da polícia getulista que, no final da década de 30, designou o médico Aguiar Whitaker (1944) para averiguar de perto o que vinha acontecendo na paróquia comandada pelo padre holandês. O Dr. Whitaker, por sua vez, convocou meia dúzia de ‘secretas’ para o acompanharem até o local dos acontecimentos, misturando-se aos peregrinos para descobrir a verdade sobre os milagres.

As descrições elaboradas pelo médico da polícia são impressionantes: a vila que contava com pouco mais de uma centena de habitantes era tomada diariamente por cerca de 10 mil visitantes, sendo que a região transformara-se em um “acampamento de barbaros”, onde paralíticos e portadores de moléstias infecto-contagiosas engalfinhavam-se na disputa pela água benzida pelo padre Eustáquio.

Curioso para saber com precisão o número de tísicos que cotidianamente compareciam àquele centro de milagres, o Dr. Whitaker manteve-se indeciso, resignando-se em tecer um paralelo entre a matriz de Poá e a basílica francesa de Nossa Senhora de Lourdes, assinalando que, no caso do santuário europeu, pelo menos um terço dos peregrinos era composto por doentes pulmonares.

Rejeitados por muitas das pessoas íntimas, aviltados no emprego e espreitados pela polícia, muitos convalescentes sentiam-se verdadeiros mendigos que esmolavam solidariedade e saúde. Não, não era tarefa fácil o retorno e permanência dos pectários para o mundo que lhes fora minimamente acolhedor até o momento em que a ‘magrinha’ se apoderara de suas existências. “Oh! desespero das pessôas tísicas...”, esta sentença de desabafo foi pronunciada na segunda década do século passado pelo fimatoso Augusto dos Anjos e ajusta-se com perfeição ao sentimento de muitos personagens consuntivos que tentaram reingressar na pátria dos sadios, resultando no acréscimo de novas mágoas às biografias dos tísicos.

Como resultado da discriminação que feria os tuberculosos que haviam abandonado o isolamento, um número significativo de doentes optou pelo regresso ao hospital no qual haviam tratado dos pulmões ou pelo estabelecimento de residência definitiva nas estações climatoterápicas do estado de São Paulo.

Uma consuntiva que, no início da década de 40, foi dispensada de uma casa de saúde joseense, comemorou o fim do cativeiro rumando para o interior de Minas Gerais, onde residiam seus familiares. Transcorridos poucos meses do regresso ao seu município de origem, a fimatosa decidiu retornar à prefeitura sanitária do Vale do Paraíba, esclarecendo em seu depoimento oral que:

Lá em casa em fiquei sozinha num quarto e continuei com os mesmos regulamentos do sanatório: guardava repouso, tomava remédios, deixava as janelas abertas e fazia boa alimentação. Mas eu não me sentia bem, nem física, nem moralmente. As amigas que eu tinha antes de vir para São José, elas se afastaram de mim. Quando eu saia à rua e elas me viam, essas amigas me cumprimentavam de longe, trocavam de calçada porque não tinham coragem de se aproximar. Eu me sentia muito isolada. Depois de ver tudo isto, eu resolvi voltar para o convívio dos doentes pois aqui em São José eu me sentia bem, tinha muitas amizades. O sanatório era minha casa, onde eu gozava de toda liberdade, ninguém tinha medo de ninguém. De tanto insistir, papai me trouxe de volta e eu nunca mais saí de São José.

O convívio íntimo com a Peste Branca e o tratamento discriminador promovido contra os fimatosos permitiu que se processasse uma surpreendente inversão de expectativas na trajetória dos infectados. Primeiramente, a reclusão sanitária era percebida como estratégia confiscadora da autonomia individual, levando os pectários a se sentirem prisioneiros das instituições médicas. Em seguida, a alta clínica era aguardada ansiosamente, pois sob esta rubrica encontravam-se as duas maiores ambições acalentadas pelos fimatosos: a melhora ou mesmo cura dos pulmões e o encerramento do tempo de exílio. Por fim, as malogradas tentativas de recolocação dos consuntivos na rotina dos sadios fazia com que os infectados se reconhecem definitivamente como agrupamento diferenciado.

Em conseqüência, para muitos dos tuberculosos, a condição de liberdade só poderia existir entre os iguais na doença, nos estigmas e nos sonhos. Desdobramento natural desta decisão era a escolha das áreas de concentração dos tributários do Grande Mal como espaços próprios para a reorganização das vidas para sempre marcadas pela Peste Branca.

As histórias que seguem constituem versões possíveis da (re)invenção da vida sob a égide da tuberculose.

Donato: a vida no isolamento

O Hospital São Luiz Gonzaga entrou em funcionamento a partir da manhã do dia 3 de julho de 1932. Quatro dias depois, um homem de estatura mediana e com peso pouco abaixo do ideal bateu à porta do sanatório, buscando tratamento para a tuberculose fibro-caseosa que se disseminara pelos seus dois pulmões e que o atormentava há “um ano e pouco”.

Admitido como hóspede indigente do nosocômio, o pectário deixou os dados necessários para o registro: seu nome era Donato Visosky (P. 738; 3466; 6673; 11886), nascido na Lituânia, no ano de 1902. Depois de perder o pai na Grande Guerra e ele próprio ter quase morrido durante a pandemia gripal de 1918, o paciente migrou com parte de seu clã para o Brasil, encontrando emprego de colono numa fazenda localizada no oeste bandeirante. Foi no eito que pela primeira vez Donato percebeu os sintomas iniciais da tísica:

depois de estar bastante suado pelo trabalho de enxada, apanhou chuva. Começou a sentir dores em todo o torax, tossindo muito com escarro que era a principio branco e depois amarelo. Teve uma hemoptise; saiu-lhe pela boca sangue de côr vermelha; acha que saiu mais ou menos um litro de sangue. Emagreceu gradualmente, sentindo tambem suores nocturnos.

A fraqueza que se instalara no corpo enfermo exigiu que o imigrante suspendesse suas atividades no campo e rumasse para a cidade de São Paulo, onde encontrou assistência na 5a Enfermaria da unidade central da Santa Casa de Misericórdia, pavilhão onde eram isolados os pacientes portadores de patologias infecto-contagiosas. O tuberculoso permaneceu internado na casa de saúde por cerca de cinco meses, sendo que no final deste tempo pediu “alta por conta propria”, vivendo a partir de então “muitos mezes fora do hospital”.

O intervalo de tempo que o pectário permaneceu afastado do isolamento sanitário não ficou claro, supondo-se não ter sido superior a um ano. Neste período, o tuberculoso buscou encaixar-se nas malhas da metrópole, encontrando trabalho em uma fábrica de vidro e alugando uma vaga numa pensão localizada no bairro do Brás. Mas, mesmo apresentando “estado bem disposto e corado”, Donato preferiu voltar para o abrigo hospitalar. O que teria acontecido para que o operário escolhesse este encaminhamento para sua vida? Ninguém sabe, mas provavelmente o fimatoso, como muitos outros, não suportou o peso da tuberculofobia que impregnava os comportamentos coletivos, encontrando no sanatório um refúgio amenizador da solidão imposta aos doentes do peito.

Os exames clínicos aos quais foi submetido o paciente Donato Visosky logo comprovaram que ele pertencia ao grupo dos tísicos crônicos, sendo que seus exames de escarro e de suco gástrico indicavam uma sucessão de “negativos” e “positivos” que, ao mesmo tempo que confundiam as conclusões clínicas, também ofereciam um rumo indefinido para a vida do operário lituano. Em conseqüência, o paciente alternava extensos períodos de equilíbrio orgânico com momentos críticos, ora sendo consumido por “abundante hemoptise”, ora padecendo de “sufocação por falta de ar”, ou ainda por “punhaladas no pulmão direito”.

Neste clima de incertezas, Donato encontrou ocupação no sanatório, tornando-se auxiliar de laboratório a partir de junho de 1933. O cotidiano do pectário parece que acompanhou a morosidade típica dos ambientes de cura até outubro de 1937, quando o doente foi convocado para o exame dirigido por uma junta de tisiologistas composta pelos Drs. Fleury de Oliveira, Octavio Nebias e João Grieco. Realizada a perícia, os especialistas anotaram no respectivo prontuário que o paciente apresentava “melhora radiologica discreta”, fechando o relatório com a seguinte observação: “vai continuar na mesma”. Continuar na mesma: estranha sentença premonitória. Quando em fevereiro do ano seguinte Donato recebeu alta clínica, ele já havia feito acertos para permanecer residindo no sanatório, não mais como paciente, mas sim como funcionário da Santa Casa. Estabelecida estratégia própria para fugir às dificuldades de permanência em um hospital sempre carente de leitos, o infectado continuou a ocupar uma vaga na enfermaria dos indigentes, mantendo-se assim pelos anos seguintes e sempre apresentando resultados contraditórios nos exames avaliadores da presença do bacilo de Koch em seu organismo.

A rotina diária obedecida por Donato começou a sofrer alterações a partir dos primeiros meses de 1947, quando o pectário – já classificado como ‘técnico de laboratório’ – passou a se queixar de uma “dor de estomago” que teve continuidade na “perda do apetite e emagrecimento acentuado”.

Passados 15 anos desde sua entrada no Hospital São Luiz Gonzaga, o fimatoso tornou-se titular de um novo prontuário, documento no qual foram registrados momentos cruciais da vida do tuberculoso. Isto porque, no mês de junho, Donato foi submetido a uma apendicectomia e logo em seguida a uma outra operação, desta vez para amenizar o desconforto provocado por úlceras intestinais. Colocado em repouso na enfermaria, o paciente “tossiu durante 3 dias”, fato que levou ao rompimento dos pontos cirúrgicos e à abertura do corte operatório, dando início a uma eventração. Muito mais do que a tísica, a associação destes eventos colocou Donato bem perto da morte.

Apesar do acidente pós-operatório, o lituano recuperou-se em pouco tempo, reassumindo as tarefas de funcionário do nosocômio em setembro de 1947 e permanecendo nesta categoria por quatro anos consecutivos, quando uma “forte gripe acompanhada de escarros com laivos sanguineos” fez com que o consuntivo voltasse à posição formal de hóspede da mansão da saúde. Naquele momento, Donato Visosky já havia recebido um grande número de unidades de estreptomicina, mas nem mesmo tal medicamento conseguiu restabelecer a saúde do técnico de laboratório que, somando 49 anos de vida, passou a reclamar com maior insistência das dificuldades respiratórias causadas pela moléstia pulmonar.

O novo período de tratamento do enfermo prolongou-se até fevereiro de 1953. Alguns meses antes, o paciente/funcionário havia sido requalificado pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários – órgão que mantinha convênio previdenciário com os servidores da Santa Casa – como “sócio aposentado por invalidez”, fazendo jus ao benefício mensal correspondente a 75% do valor do salário mínimo vigente. Um novo momento de tensão se abria para o tuberculoso: aposentado do serviço hospitalar e próximo de receber alta médica, qual seria o encaminhamento a ser dado a sua pessoa?

As anotações e bilhetes que foram preservados junto ao terceiro prontuário com o nome de Donato Visosky oferecem algumas pistas sobre as tentativas engendradas pelo setor de Serviço Social da Santa Casa para encontrar colocação para o paciente diferenciado. O registro em uma folha avulsa do número do telefone de uma sobrinha do pectário abre a possibilidade para se pensar que o nosocômio buscou aproximar o tísico de seus parentes mais próximos, hipótese que talvez ganhe comprovação numa frase lançada no mesmo documento: “o Donato não quiz se aproximar de seus familiares e raramente sai deste Hospital”.

Nesse contexto, parece que os próprios médicos da Santa Casa mantinham relações amistosas com o hóspede mais antigo do sanatório. O tratamento “o Donato” repete-se em vários registros, insinuando os laços de familiaridade que uniam o tuberculoso à equipe hospitalar. Coube aos próprios clínicos decidir o destino de Donato, permitindo que o doente continuasse vivendo na casa de saúde do Jaçanã, ainda sob a condição de funcionário da instituição. Para tanto, o Dr. Octavio Nebias redigiu o seguinte bilhete, destinado ao tisiologista encarregado do tratamento do técnico de laboratório: “Ayrton! Pode dar alta regular pois o Donato volta outra vez a ser empregado do Hospital. Envie ao serviço de triagem para matricular”.

Os acertos destituídos de formalidade burocrática permitiram que o tuberculoso continuasse hospedado no Sanatório do Jaçanã pelo resto da sua vida. Em fevereiro de 1962, quando ainda seus exames mostravam-se positivos para o bacilo de Koch, Donato sofreu uma nova crise respiratória, agravada pela existência de “úlceras duodenais sem possibilidade cirurgica”. Recolocado na teia hospitalar como paciente financiado pelo IAPC, o tísico passou a ocupar oficialmente uma cama na enfermaria do nosocômio, aí permanecendo até a manhã do dia 22 de novembro de 1964, quando chegou a óbito, sendo declarado como causa mortis um “processo ulceroso crônico”.

Donato Visosky viveu 62 anos, sendo 32 deles como hóspede do Hospital São Luiz Gonzaga. Sua história registrada em quatro prontuários diferentes constitui-se em caso extremo do infectado que não suportou retornar ao território dominado pelos sãos, optando pelo prosseguimento da vida em companhia de seus iguais na enfermidade. O isolamento voluntário fez do sanatório o lar definitivo do contaminado, assim como os personagens institucionais ocuparam o espaço deixado em branco pelos parentes do lituano. Como resultado, a história de vida do paciente confundiu-se com a história do hospital especializado da Santa Casa, que sobreviveu apenas mais quatro anos após o falecimento do tuberculoso Donato.

Raquel e Antonio: a vida na estação de cura

Após permanecer 21 meses isolada no Sanatório Ruy Dória, em janeiro de 1945, a consuntiva Raquel Pereira foi forçada a abandonar o exílio hospitalar pelo fato de sua família não dispor de recursos para custear por mais tempo seu internamento na casa de saúde joseense. Nesta situação, a angustiosa experiência de visitar sua cidade natal e de se perceber marginalizada pelo seu antigo círculo de amizades somou-se ao namoro firme com um enfermeiro que já havia sido tuberculoso, resultando na decisão de permanência da infectada em São José dos Campos, onde passou a repartir residência com uma amiga, também tributária da Peste Branca.

Raquel permaneceu em tratamento com o Dr. Ruy Dória por mais três anos, alcançando ‘cura clínica’ em 1948, quando contava 24 anos de idade, cinco dos quais vividos na estância sanitária. Durante todo este tempo, a fimatosa contou com o apoio perseverante de Antonio, seu namorado e enfermeiro que, treinado nos serviços hospitalares, tornou-se uma espécie de tisiologista improvisado, ensinando a pectária a evitar quaisquer excessos, incluindo aí desde trocas de beijos até caminhadas desnecessárias pelo terreno da estação climatoterápica.

O discreto rompimento dos elos familiares tornou-se um fator coadjuvante no reforço dos laços sentimentais que uniam Raquel e Antonio. Quando o Dr. Dória declarou a depoente curada das lesões pulmonares, o casal imediatamente marcou a data do casamento, o qual se realizou na igreja matriz de Aparecida do Norte, momento no qual os progenitores dos nubentes se encontraram pela vez primeira.

“Eu me readaptei à sociedade porque não sai daqui”. Com esta frase, Raquel deixou claro que ela e o marido estavam conscientes de que seria praticamente impossível encetar a vida a dois longe do ambiente de concentração dos tuberculosos. As ‘cidades enfermas’ ofereciam o indispensável sentimento de segurança para os fracos do peito que, além da disponibilidade de serviços médicos especializados, esperavam compartilhar de um contexto social em que a intensidade dos estigmas contra os infectados fosse bem menor do que em outras regiões do país.

O casal enraizou-se na estação de cura de São José dos Campos. Para Raquel e seu marido, a felicidade só se concretizaria quando a união frutificasse em filhos, de nada adiantando os conselhos hipocráticos que desestimulavam a gravidez no grupo de mulheres convalescentes. Em continuidade, menos de um ano após o enlace matrimonial, Raquel deu à luz uma criança que sobreviveu apenas alguns poucos dias, acidente que abriu as portas para que a frustrada mãe entendesse o óbito do primogênito como terrível legado da enfermidade pulmonar.

Entre o medo de gerar uma criança fraca ou mesmo consuntiva e frustrar o desejo do casal em povoar a casa de crianças, Raquel preferiu arriscar uma nova gravidez , fato que ocorreu poucos meses depois do seu primeiro parto. Desta vez, Antonio se encarregou de ministrar um tratamento paralelo ao que o Dr. Ruy Dória havia indicado à gestante, aplicando-lhe doses diárias de soro intravenoso, assim como drogas vitamínicas que, segundo Raquel, foram responsáveis pelo nascimento, em maio de 1950, de um “menino forte” e, nos anos seguintes, pela chegada de mais três crianças robustas.

Apesar da concretização do intento de ser mãe, Raquel nutria uma guerra íntima e solitária contra o fantasma da Peste Branca. A suposição de que o tisiologista que atestara sua cura houvesse se enganado ou que ela tivesse uma recidiva do Grande Mal fazia da depoente uma mulher sempre cautelosa no trato de seus rebentos:

Quando nasceram meus filhos eu sofria muito porque tinha uma insegurança muito grande. Eu tinha medo de beijar meus filhos no rosto. Eu achava que, de repente, eu poderia ser uma tuberculosa crônica daquelas que nem sente que está doente. Isto me aterrorizava, eu tinha medo de infectar minhas crianças...

A mulher que desconfiava de seu próprio estado de saúde sofria calada, não compartilhando seus receios nem mesmo com o marido, justificando seu laconismo como medida para “não impressionar” o enfermeiro. Para a ex-consuntiva, qualquer evento que lembrasse a possibilidade de reinfecção mostrava-se como anfiteatro da tragédia, ampliando suas angústias e exigindo estratégicas dissimulações:

Quando eu pegava um resfriado, uma gripe que me fazia tossir muito, eu me isolava das crianças. Eu tinha um medo medonho (...). Quando eu tinha tosse de gripe, eu deixava meus filhos num quarto e eu me isolava num cômodo localizado no fundo do quintal. Quando me dava ataque de tosse, eu punha um cobertor na boca e tossia escondido, para o meu marido não ouvir que eu estava tossindo. Eu tinha medo que o Antonio ficasse pensando que eu estivesse doente outra vez.

O trauma resultante da experiência com a fraqueza pulmonar e seus desdobramentos fazia com que Raquel acalentasse uma percepção contraditória da ameaça infecciosa. Assim, no momento em que já era mãe de três filhos e que a estreptomicina era largamente utilizada pela medicina nacional, a depoente acreditava que a tuberculose havia ganho o contorno de ‘doença benigna porque facilmente curável’. Ao mesmo tempo, entretanto, Raquel confidenciou que selou um pacto com o Deus católico: se o Senhor a preservasse da reinfecção até que o mais jovem de seus rebentos atingisse a idade de 10 anos, ela não mais lutaria contra a Peste, entregando-se passivamente à doença, caso a moléstia voltasse a se instalar em seu organismo.

Em nenhum momento a prole de Raquel e Antonio denunciou sinais de contágio kochiano. A vacinação e as seguidas revacinações das crianças com BCG e a recorrência a clínicos gerais e especialistas no tratamento dos pulmões, nas ocasiões em que os filhos apresentassem qualquer alteração da saúde, foram as armas utilizadas pelos pais que temiam que a ‘bruxa seca’ atacasse seus frutos.

Florbela: a herança da cautela

Florbela é uma docente universitária que pouco contato manteve com a mãe tuberculosa, falecida na primeira metade da década de 30, quando a depoente contava poucos anos de idade. Convidada para contar sua história, a simpática professora mostrou-se reticente em atender o pedido, protelando as informações por mais de um ano. Finalmente, ‘de algum lugar na Montanha [Campos do Jordão], no Outono de 1991’, Florbela presenteou o pesquisador com um punhado de versos autobiográficos.

O poema é o seguinte:

O que se herda?

O que se adquire?

Não corra. Não beba nada gelado.

Olhe o sol. Saia da chuva.

Sereno faz mal. Não pode, está ventando

Fecha a janela. Tem corrente de ar.

Leve o casaco. Ponha meia.

Descalça: Nunca.

Assim sem sol, sem chuva, sem sereno

sem vento consegui crescer.

Com óleo de fígado de bacalhau,

com emulsão de Scott, com mel,

gemada, xarope e vitamina

Cheguei até menina.

Raquítica diziam uns

Miudinha os parentes mais

condescendentes. Mignon

os mais sofisticados

Pobrezinha, também, com mãe doente

em voz de sussurro e acusação:

Tuberculosa – sabe, Bacilo de Koch!

Carreguei a culpa e tive um quarto só para mim.

água fervendo em toda louça

Afinal, não dá para arriscar.

Depois de algumas leituras e tenra sapiência

Fiz versos de condenada.

Aos 18 anos me preparei.

Pensava: vai ser tão romântico!

Depois

Por razões. Mais de mil. Saí de casa.

Atirei-me ao sol, a chuva, ao vento

Aos serenos da madrugada. Aos gelados

Janelas abertas. Descalça. A garoa de São Paulo!

Provoquei. Candidatei-me a T.B.

e até fiz uma excursão para Campos do Jordão.

Floradas na Serra. A Montanha Mágica.

e por razões misteriosas e inacreditáveis,

Sempre fui uma pessoa saudável

mais dada aos suspiros que aos espirros

Mas mesmo assim, quando me casei

alguém aterrorizado da família,

aterrorizado ou terrorista?

me chamou de lado e disse:

Você contou para ele?

Contou o que?

Que sua mãe morreu tuberculosa!

Meu Deus, esquecí!

Contei, casei, tenho filhos e netos

e ainda não morri (até já fui à Suíça!)

Tuberculose, pode ainda ser,

nunca se sabe! É uma sina,

um estigma, para alguns

quase uma nódoa.

Há doenças imorais.

Enfim, vou vivendo e

pertenço a algumas minorias

quase resgatadas -

filha de tuberculosa

e canhota.

Uma historinha, senhor Claudio,

esta verdadeira.

Os filhos dos tuberculosos podiam não herdar a doença do peito, mas certamente tornavam-se herdeiros dos estigmas e da aceitação reticente que um dia havia ferido seus progenitores contaminados. A tísica disseminava suas imagens sobre a família em que havia infectado e, de forma surpreendente, afetava a trajetória de vida daqueles que pertenciam à linhagem dos tuberculosos.

As ‘maravilhas da medicina’ e os comportamentos sociais

Enquanto os consuntivos e seus descendentes compunham suas sagas pessoais, a medicina empenhava recursos no preparo do quimioterápico específico contra a Peste Branca. As pesquisas patrocinadas pelos consórcios que uniam os governos das nações mais ricas do mundo com os laboratórios interessados em garantir substanciais lucros por meio do monopólio comercial dos novos medicamentos impuseram um ritmo acelerado aos trabalhos médico-farmacêuticos, resultando em descobertas em série.

Comprovada a eficiência terapêutica das drogas recém-preparadas, estas eram anunciadas de forma sensacionalista à comunidade dos especialistas e aos leigos, transformando a produção científica em um espetáculo público que apresentava os medicamentos como ‘milagrosos’, ‘espetaculares’, ‘100% eficientes’ e ‘sem qualquer contra-indicação’. Era o que os livros de divulgação científica costumavam denominar de as “maravilhas da medicina” que, ao proclamar a positividade do saber médico, prometiam um futuro sem doença e sem dor.

Após o advento das sulfamidas, em 1935, e da penicilina, em 1943, a terapêutica específica contra a tuberculose se mostrava como desafio próximo a ser transposto. A droga que colocaria fim à Peste Branca como ‘doença misteriosa’ dominava as especulações médicas, chegando até o Brasil na figura do discreto professor Otto Bier (1944).

Empolgado com as recentes ‘conquistas da ciência’, o então diretor do Instituto Butantã concluiu mais um de seus manuais médicos, deixando implícito nas páginas deste livro que, em pouco tempo, a Humanidade teria a sua disposição um remédio com potencialidade curativa da tuberculose. O Dr. Bier tinha motivos para isto: boa parte da comunidade científica estava depositando grandes esperanças na capacidade terapêutica de uma variedade de sulfona que vinha sendo estudada nos Estados Unidos e que havia demonstrado significativa ação bacteriostática em relação ao agente biológico causal da tuberculose.

Enquanto o mundo apostava na iminência da descoberta, desde que a Segunda Guerra Mundial se iniciara, os Estados Unidos adotaram a política de atrair para o seu território os principais expoentes da intelectualidade européia, engajando os cientistas nas áreas diretamente relacionadas com os ‘esforços de guerra’. Neste contexto, a Peste Branca ganhou especial atenção, sendo destacadas várias equipes de pesquisadores para estudar as possíveis soluções para a doença infecto-contagiosa mais disseminada do planeta.

As diversas equipes de cientistas empregadas no deciframento da Peste Branca contavam com uma seqüência de ‘peças soltas’ que falhavam no encaixe para explicar as possíveis estratégias destruidoras do bacilo de Koch. Os procedimentos tradicionais de pesquisa beiravam a inocuidade, pois, se permitiam a formulação de várias drogas que aniquilavam o micróbio, igualmente afetavam as cobaias contaminadas, levando-as ao óbito mais rapidamente do que o próprio germe tísico. Por isso, alguns cientistas de renome buscaram se afastar das seguras hipóteses ditadas pela biologia e pela química, enfronhando-se pelo ‘caminho noturno’ da ciência, definido pelo Prêmio Nobel François Jacob (1984) como a operação em que “o pensamento caminha através de vias sinuosas, de ruelas tortuosas, o mais das vezes sem saída”.

Assim, entre o romantismo aventureiro de se confrontar com o desconhecido e o cálculo frio da concorrência acadêmica e ideológica, em fins de 1944, o médico russo naturalizado norte-americano Selman Waksman anunciou a descoberta da estreptomicina, uma droga elaborada a partir da cultura de uma variedade de fungo denominada Streptomyces griseus.

Financiado pela Merck Company, o Dr. Waksman foi imediatamente acusado por seus colegas de ter se apropriado das conclusões de outros cientistas sem tê-los mencionado em seus relatórios. Mesmo assim, no primeiro dia de novembro de 1945, momento em que os Merck Laboratories iniciavam a produção comercial da droga, o Dr. Waksman dirigiu-se ao Committee on Military Affairs do senado americano para anunciar oficialmente que a Peste Branca estava prestes a ser debelada.

A informação sobre a descoberta da estreptomicina chegou ao Brasil logo no primeiro semestre de 1945, sendo recebida com indisfarçável desconfiança pelos enfermos que já haviam se habituado a conviver com os boatos que, periodicamente, criavam falsas esperanças por meio do anúncio da criação de uma quimioterapia específica contra a tuberculose. Identificando-se com vários outros registros de antigos pectários, uma depoente declarou:

Em 1945 eu tinha 20 anos e estava certa que em pouco tempo iria morrer. Em junho ou julho daquele ano um médico me disse que nos Estados Unidos um judeu russo tinha inventado a estreptomicina. Quando ele me falou aquilo, eu logo achei que fosse mais um notícia falsa mas, em 1948, eu já estava totalmente curada, as cavernas tinham cicatrizado, porque eu usei o remédio. Eu me lembro que naquele tempo a estreptomicina era cara. Minha família fez uma ‘vaquinha’ e mandou importar o remédio dos Estados Unidos. Aí eu fiquei boa.

Nos anos seguintes a 1945, outras drogas somaram-se à estreptomicina no combate à tuberculose, sendo as principais delas o ácido para-amino-salicílico (PAS), a tiosemicarbazona (tb-1) e a hidrazida de ácido isonicotínico (Isonazida). A escassez destes fármacos no território brasileiro tornou-os fonte de alta lucratividade no mercado negro, permitindo que os doentes mais abonados fizessem uso excessivo e muitas vezes desprovido de acompanhamento clínico. Em conseqüência, a medicina defrontou-se com uma nova categoria de pacientes, representada pelos que ficaram com a audição comprometida como seqüela dos medicamentos utilizados e por aqueles que tinham sido infectados por colônias bacilares que já haviam se tornado ‘resistentes’ às novas drogas.

De qualquer forma, a utilização combinada das várias drogas anti-consuntivas promoveu o decréscimo dos óbitos creditados à tísica nos grandes espaços urbanos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a taxa de mortalidade pela tuberculose em cada 100 mil habitantes refluiu de 133,8 em 1940, para 34,4 dez anos depois.

Em meados da década de 50, os Centros de Saúde iniciaram a distribuição gratuita dos quimioterápicos apropriados para o combate à Peste Branca, contribuindo ainda mais para o rebaixamento dos índices de mortalidade pela moléstia consuntiva, especialmente entre os grupos mais pobres da população.

O resultado da aplicação maciça dos novos medicamentos foi não só a cura da maior parte dos infectados pelo bacilo de Koch como também uma profunda crise que feriu de morte as instituições e a especialidade médica relacionadas com o tratamento dos doentes do peito. A maior parte dos sanatórios que atendiam os tuberculosos resistiram no máximo por mais uma década após 1945, encerrando suas atividades ou, mais freqüentemente, redefinindo-se como hotéis, casas de repouso, asilos para inválidos ou hospitais gerais.

Os tisiologistas, por sua vez, perceberam-se subitamente deslocados profissionalmente, sendo obrigados a encetar novo treinamento especializado, já que os ‘tuberculosos residuais’, que se mostravam insensíveis à ação dos novos medicamentos, eram em número reduzido para permitir a sobrevivência de uma área específica da medicina. Por isso, muitos dos antigos especialistas na Peste Branca voltaram-se para a clínica geral ou então, como fez o Dr. Euryclides Zerbini, permaneceram na área da cirurgia torácica, transferindo seu interesse para as pesquisas cardiológicas. O Dr. Eduardo Etzel foi um dos médicos de sanatório que aparentemente distanciou-se muito de sua antiga atividade, ganhando reputação como clínico psiquiatra e, nas últimas décadas como profícuo estudioso da arte brasileira.

O ‘triunfo da ciência’ e o ocaso da especialidade tisiológica não significou, entretanto, o encerramento da estigmatização coletiva dos doentes do peito. A rejeição médica – pelo menos em nível formal – da existência de uma ‘psicologia’ exclusiva dos tuberculosos e o emprego de novas estratégias de cura e prevenção da moléstia não implicaram em reformas imediatas nos códigos de relacionamento entre os sadios e os enfermos.

O fato dos comportamentos coletivos sofrerem alterações segundo um ritmo próprio, não sincronizado com as mudanças nas condições materiais de vida e com as novidades produzidas pelo conhecimento científico permitiu a sobrevivência, até hoje, dos princípios discriminadores dos doentes do peito.

Apesar disso, a condição ‘misteriosa’ da enfermidade foi perdendo impulso, deslocando os olhares cautelosos e estigmatizadores para as vítimas de outras patologias, em especial para o câncer e, a partir da década de 80, para os aidéticos. Refletindo a fase de ‘migração’ parcial dos estigmas dos tísicos para os cancerosos, há alguns anos, a atriz Dercy Gonçalves foi questionada por um jornalista da Folha de S. Paulo sobre se era “encanada com alguma doença?” e ela respondeu nos seguintes termos: “Com tudo quanto é doença. Com câncer, com tuberculose. Há uns 40 anos eu tive tuberculose e foi um horror”.

A sociedade e a medicina não extinguiram os processos imputadores de marcas morais aos enfermos. Apenas atualizaram as doenças e os personagens que têm sido colocados como símbolos nocivos de uma modernidade assustadora.

A tuberculose transformara para sempre a vida de seus tributários. Mesmo que livres da moléstia e do isolamento hospitalar, os pectários sentiam-se atingidos pelas múltiplas exclusões sociais de que eram vitimados. É certo que muitos antigos enfermos conseguiram impor-se nos seus ambientes de origem, mas a tendência de muitos outros fracos dos pulmões foi criar raízes nos centros de cura e lá procurar reconstituir a vida e os laços sociais. As cidades-sanatórios transformaram-se então em redutos não da ‘irmandade dos fracassados’, mas sim daqueles que, lançando mão de estratégias variadas, saíram-se triunfantes da ameaça contagiosa e também dos tratamentos discriminatórios.