Indictor e o rapazinho

O mais surpreendente que aconteceu a Horowitz enquanto arqueólogo: ter desenterrado o presente (ter desenterrado, de certa maneira, a actualidade).

Horowitz descrevia a sensação de resgatar do interior da terra um objecto antigo – tratava-se de uma operação oposta à do corpo que se afoga. Na arqueologia resgata-se um corpo com terra por cima (corpo esquecido porque não está visível).

Por vezes (quando do meio da terra conseguia retirar uma jarra antiga ou apenas um bocado de um objecto com vários séculos), a imagem do parto: corpo que sai de um corpo maior e cá fora começa uma nova vida.

Certa vez, Horowitz – com o seu grupo de arqueólogos – conseguira um feito notável: descobrira, no meio de outros objectos mais recentes, um fóssil que guardava a memória de um animal com muitos milénios. Nesses momentos, tratava-se de puxar a História para cima, como se puxa um corpo prestes a cair num precipício. É a mão forte que evita a queda ou o esquecimento, e assim Horowitz vê o seu corpo quando pela primeira vez tem um fóssil entre os dedos.

Tratava-se de fazer história, mas sem signos – com coisas concretas. Historiador que manipula volumes, objectos que ocupam espaço no mundo. Sem o seu trabalho, os historiadores utilizariam palavras objectivamente ocas – sem nada lá dentro. Os objectos que os arqueólogos resgatavam ocupavam o interior das palavras dos historiadores. Horowitz não sabia escrever, mas sabia onde escavar.

O seu brutal peso, cento e cinquenta quilos, impedia-o de fazer qualquer esforço físico, mas ele fazia o que os homens importantes fizeram e fazem: apontava. O dedo indicador da sua mão direita, esse poderoso dedo cuja história da sua importância no mundo ainda está por fazer, esse dedo que aponta, eis o que dizia: é aqui.

O seu dedo apontava para o passado, como um sinalizador que abana com a proximidade da água; o seu dedo indicador da mão direita começava a tremer – assim pelo menos ele imaginava – quando sentia a proximidade de um objecto histórico, antigo, mesmo que muitos metros abaixo do solo.

É certo que inúmeras vezes o seu dedo apontara para um ponto do solo e, depois de muito esforço de outros homens, depois de muito escavar, chegava-se à conclusão que ali nada havia senão terra e terra. (Uma coisa antiga, muita antiga – a terra – mas nada valiosa porque nada nela se distingue do que está ao lado, nada nela tem forma útil se não considerarmos a grande utilidade que é suportar os organismos que nela pousam os pés.)

Sim, Horowitz e o seu dedo enganavam-se vezes sem conta, mas cada vez que acertavam era uma vez que valia por cem ou mil falhanços. Acertar era mais descobrir um tesouro do que fazer uma simples pontaria a um alvo já existente. Daí o júbilo que cada apontar de dedo eficaz provocava em Horowitz e nos seus colaboradores.

A lista das coisas que Horowitz e a sua equipa haviam descoberto em anos de trabalho era infindável. Tinham participado nas escavações da tumba de Djehuty, nas descobertas em Abido, nas pesquisas a Norte do Delta, em Behdet, etc.

Porém, um certo dia, Horowitz e a sua equipa descobriram debaixo da terra o impensável. Escavaram e resgataram, não o passado mas, como dissemos, a actualidade.

Estavam no Norte de África e o dedo, os mapas e o estudo de Horowitz, todos em conjunto, apontavam para um ponto do solo, uma área de alguns quilómetros quadrados onde poderia estar algo de precioso. Começaram a escavar. Muita terra saiu de uma área cujo arco da circunferência teria sete ou oito metros. Havia algo ali em baixo, sem dúvida, e a cada quilo de terra que se extraía essa existência tornava-se mais evidente.

A estranheza começou vinte metros abaixo do nível do solo. Havia algo lá em baixo, sim, mas vivo. Algo se mexia. De imediato, pensou-se em alguns animais. Toupeiras, sim, vivem bem debaixo da terra, mas tão fundo? E que outros animais poderiam permanecer ali tão em baixo? A estranheza aumentava. Não era um fóssil nem um objecto. Havia um organismo, pelo menos, ali em baixo, e um certo medo expectante começou a aparecer entre os homens de Horowitz.

O que desenterravam parecia-lhes já monstruoso. Muitos metros abaixo do solo, um organismo movia-se. Estavam a desenterrar a actualidade e esta mete mais medo do que o passado.
(O passado não mata, se não considerarmos aquelas armadilhas que os antigos por vezes deixavam espalhadas pelos objectos, veneno preparado para matar quem tocasse nas coisas. Porém ali o perigo era maior: algo estava vivo debaixo da terra e os vivos têm mais tendência para matar.) De súbito, então, uma quebra evidente, como se os seus colaboradores acabassem de estalar o topo da casca de um ovo. Chegara-se ao limite, alguma terra caiu para dentro do que parecia um buraco e, para absoluta surpresa de Horowitz e dos seus colaboradores, ali estava aquilo. E, sim, sem qualquer dúvida, não era um animal.

Horowitz de imediato deu ordem para que colocassem a terra onde antes estivera. As pás e os homens recomeçaram, então, em sentido contrário, mas com maior velocidade.

Só Horowitz falou para dizer que exigia silêncio absoluto. O trabalho foi concluído. A equipa de Horowitz disfarçou o solo de modo a que não parecesse ter sido mexido – como quem esconde, com toda a energia, uma carta secreta.


Diga-se que Indictor, um dos elementos da equipa do arqueólogo Horowitz, além do que viu de inquietante nessa expedição, viu ainda, muitos anos depois, um rapaz, talvez com dezasseis anos, não mais, de nome Kashine, a escrever um enorme Não num cartaz colocado numa parede, cartaz que anunciava uma manifestação a favor da libertação imediata de alguém, de quem não recorda o nome.