Kessler e o barco

O homem, Kessler, de quem a mulher se divorciou devido à interpretação que deu ao NÃO escrito nas costas do casaco, depois do divórcio, tendo sido colocado fora de casa, decidiu regressar à pequena ilha de onde eram originários os seus pais que, entretanto, haviam morrido.

Dos seus pais herdara uma pequena casa na ilha de menos de duzentos habitantes. A cidade mais próxima estava a mais de mil quilómetros de barco.

Kessler viveu aí alguns anos tranquilos, mas a certa altura algo se complicou rapidamente. Vários dos habitantes da aldeia começaram a ficar loucos, doidos varridos. Pelo isolamento ou por qualquer outro motivo – a água?, a comida? – o certo é que, em poucos anos, dos duzentos habitantes da aldeia só duas dezenas pareciam minimamente normais.

Pouco tempo depois, as coisas agravaram-se: o número de loucos aumentou e as consequências dos actos de alguns loucos começaram a tornar-se perigosas.

Assim, numa noite, os sete homens que ainda tinham a cabeça saudável – o medo era já muito, alguns loucos andavam armados e ameaçavam, etc. – decidiram fugir de barco, o único meio de se afastarem dali.

De manhã, a luz do sol caiu sobre o barco de dimensões médias, que tinha atrelado a si um pequeno bote. No barco iam os únicos sete homens cuja racionalidade não havia sido abalada. Era a barca dos homens racionais que fugia da aldeia dos loucos. Os outros que ficassem lá; em pouco tempo, estavam disso convictos os sete homens, aqueles loucos começariam a matar-se uns aos outros. Não sobraria ninguém.

A barca da razão, assim chamava Kessler ao barco, andou semanas sem rumo, até porque nenhum dos sete homens era marinheiro. Durante semanas não viram terra e os mantimentos começaram a diminuir. Mas tal não era o mais grave.

Kessler, a partir de determinada altura, começou a perceber em alguns dos sete homens indícios preocupantes – indícios de demência. Kessler aproximou-se dos dois homens que, juntamente com ele, pareciam resistir melhor àquela situação-limite. Os outros quatro estavam a perder a razão, aos poucos, e um deles até a uma velocidade vertiginosa. O barco que levava os homens racionais parecia estar a desequilibrar-se.

O acordo foi fácil e a acção tão rápida que os outros não conseguiram reagir. Numa dessas noites, Kessler e os dois companheiros que ainda mantinham a cabeça racional desamarraram o pequeno bote e fugiram dos outros quatro.

Estavam agora três homens num pequeno bote, três homens de cabeça saudável. Aquele era o barco da racionalidade, o barco que restava depois de Kessler ter fugido de uma aldeia agressiva e violenta, de uma aldeia de loucos. Agora, ele e mais dois ali estavam no barco da resistência: o pequeno barco que transportava a Razão sensata, a mais bela conquista dos humanos – transportavam a razão como se transporta uma tocha de fogo.

Em poucos dias, no entanto, a relação entre os três homens deteriorou-se. Não havia comida nem espaço e um deles tornou-se agressivo, denotando falta de lucidez e deixando cair, aqui e ali, palavras que os outros dois notaram ser estranhas e consequência de demência leve, mas perigosa. Kessler e o seu companheiro, Klein, trocaram um olhar de entendimento e, em resposta a um movimento mais brusco do terceiro homem, Kessler e Klein primeiro defenderam-se, mas terminaram a apertar-lhe o pescoço de tal forma que, a certa altura, já nada havia a fazer; se parassem teriam ali um inimigo num pequeno bote, se continuassem seriam assassinos. Não havia opção e os dois homens ainda lúcidos, os dois homens portadores últimos da razão (assim se viam eles cada vez mais), esses dois homens tiveram de matar o terceiro, o que já estava louco. E, nessa noite, temos de o dizer sem o dizer explicitamente, os dois homens, depois de muitos dias em jejum, experimentaram algo a que nunca antes se haviam atrevido.


Na manhã seguinte: Kessler e Klein. Dois homens lúcidos, racionais, dois homens ainda humanos – e disso se orgulhavam. Depois de tudo, continuavam humanos.

Por vezes, a brincar, a testar até que ponto as suas cabeças resistiam racionais e normais, colocavam um ao outro pequenos desafios de raciocínio lógico ou de pura matemática. Como se fossem crianças ou imitando um pai a falar para um filho, Klein propunha a Kessler uma conta de multiplicar e Kessler perguntava depois a Klein qual a capital de um certo país. Tentavam manter os desafios intelectuais; manter a cabeça em funcionamento era indispensável, se não queriam perder aquilo que os fizera estar ali, naquela situação, num bote, isolados de tudo, de todo o mundo, fugindo; se não queriam, enfim, perder a razão. Este é o mais belo bote do mundo – começou a dizer Kessler, porém não conseguiu terminar a frase pois, num movimento absolutamente imprevisível, Klein atirou as suas duas mãos ao pescoço de Kessler e, apanhando-o desprevenido, não parou enquanto não se apercebeu que Kessler estava morto e que ele, Klein, era agora o único sobrevivente do barco dos racionais.