MARIAZINHA TIRO A ESMO

Branca, ainda assim, Mariazinha Tiro a Esmo, é uma peça. Meteram­-lhe esse nome lá pelos altos encardidos da Favela da Rocinha, num ponto de pivetes tão tumultuado, tão cheio de movimento, rumor e estripulias que ali acordar era fácil, dormir é que não.

Direitinha, como diriam os últimos rapazes, família da Zona Sul. Ela tem picardia e está na dela, como dizem os tipos amalandrados dos becos e das favelas. Dissimulada em seu trabalho, matreira trabalhando na boca do mocó, indo e vindo na baba de quiabo, enganando otários e pacatos, ela sobrevive. Só ou acompanhada na marginalidade, vai beirando o crime na cidade que castiga – para mais de quatro milhões de habitantes, mais de um milhão de favelados.

O sol bate e rebate nos cabelos da criança. Plantada na esquina da Travessa Angrense, às onze da manhã, ela trabalha. Fica justinha na calça comprida e é uma figura esguia, enrustida e sonsa, nenhuma gordura na barriga lisa, cujo umbigo a miniblusa mostra. É, para os leigos, apenas atraente e bronzeada, principalmente para os que não lhe viram os dentes. Para os distraídos e pacatos, para fariseus ou não iniciados em malandragem dos morros e dos becos do Rio, mais uma garota bonita em Copa­cabana. Veste na onde e está a fim de ser paquerada. É o que pensam os rapazes passando de carro ou mesmo a pé na calçada da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, Posto Cinco e Meio.

Viva, colocada na esquina, os olhos medidores correm o comprimento todo do quarteirão. Vendo se aproximar uma menina maltrapilha de uns nove anos, entra pela Travessa Angrense, estreita, vai esperar numa ponta. A garotinha lhe entrega dinheiro e Maria lhe passa mais cinco pacotinhos de drops. Maria é olheira daquele trecho de Copacabana e responsável por seis meninas pedintes, que vão esmolar e vender coisas miúdas entre Nossa Senhora de Copacabana e a praia.

Mariazinha Tiro a Esmo, uma olheira da indústria de pedintes, esmoleiros e vendedores da arraia miúda, parece ter dezenove anos. Tem quatorze e pouquinho, só. O rosto, quando ela se abandona de suas trampolinagens na faina malandra, é suave. Mas é agressivo, burlão, quase sempre. Os cabelos andam na moda, escorridos, longos, matizados de sol e sem tintura. Os cílios enormes, sem postiços. Alguns dentes podres, é o ponto fraco, vive chupando bala de hortelã para esconder o mau hálito.

Treze anos. Maria já se mexia bem como sambista num bloco de Catumbi. Pouca roupa, sempre uma das atraentes.

Os passistas observavam. Gostavam:

– Isto aqui de recheio de mulher dentro dessa roupa.

E atiçavam a menina branca a rebolar.

Maria, claro, nasceu pobre. Pai, ferroviário português; mãe, marafona loira. Não se pode dizer que tenha tido um lar, mas morou ou se escondeu num barraco de uma favela, a Catacumba. Pouco viu a mãe, e o pai só via já calibrado, braseado, bebido de tantas cachaças da birosca.

Dura, vivida, batida, já usada. Falando é crua, descarnada. Mas inflexível com as leis e a ética da malandragem. Mulher já, apesar de meio aturdida. É de caráter, embora pendure em tudo o seu humor carioca – antes uma forma de driblar os percalços, do que de fazer graça:

– Sei lá como o coroa, meu pai, podia se arrumar como ferroviário. Tivesse de dirigir trem e o pessoal que queria ir pra São Paulo acabava desembarcando em Barra do Piraí.

Teve escola, aos trancos e barrancos, mas a convicção, que impõe em tudo o que diz, faria inveja às frivolidades amenas das mais lindas garotinhas do Leblon ou Ipanema:

– Tive escola, bicho. A tua acho que foi moleza, não? O padre subia o morro pra ensinar catecismo. Cadê de aprender as lições de fé da Bíblia, se o meu negócio era aprontar? Aprendi a ler um pouquinho, na Bíblia mesmo. O resto foi a vida.

A fala é de caráter. Mas o sorriso, abrindo dentes arruinados, mostra nos cantos da boca um traço cínico, acanalhado, sinistro. Ela assistiu ao primeiro crime quando tinha sete anos:

– Meu neguinho, foi mais ou menos assim. O assassino, até que era legal, um cara que vendia coisas na birosca. Manja? Atendia legal às pampas. O paca arranjava cada piadinha gozada. Todo mundo gostava dele, sabe. Um cara, um dia, apareceu na porta da birosca, grudado numa mulher. E deu para fazer acenos para dentro da birosca. O grito do bicho era “eu sou o macho” e cocoreco e bico de pato. E fazia aquela ginga de mão, você manja, né? Dizia que era o bom e outros papos. Mas a tal mulher, ih, rapaz, era mulher de véu e grinalda do birosqueiro. Aí o homem se queimou. Meu filhinho, ouve que eu te dou de graça: nunca queira fazer um boa praça de otário. Viu? O cara da birosca pegou a faca de cortar abóbora e, de peixeira, pulou. Pulou balcão, pulou e disparou pra frente do casal. Os dois eram otários e não esperavam aquela de homem que ele deu. Acharam que ele ia chorar, ficar apaixonado e outros fricotes. Mas o bicho era um ponta firme, pedra noventa, e foi lá. E quem chorou foram os parentes dos dois. Sangue, meu chapinha; de monte. Eu estava ali pertinho e me lembro que a mulher parecia uma dona da vida. Acho que parecia com a minha mãe. Eu até gostei de ver a morte da dona, sabe? Uma boa vaca, que nem minha mãe.

O pai, ferroviário, bêbado, lhe dava safanões. E apenas. Comia mal e mal. Catava restos de comida do lixo das residências lá no asfalto e entregava a lavagem a uma dona que criava porcos no morro. Valia um único prato por dia:

– Escuro e preto que eu comia, varada de fome.

Se Mariazinha Tiro a Esmo perceber que está causando pena, baixa os olhos. Mas tem um repente. Repele, incisiva. Encara:

– Que que é, ô bicho? Ainda não viu gente assim, não, é?

Aos nove anos fez o primeiro crime: meteu giletes no escorregador de uns meninos que a surravam. Aos onze teve uma alegria das grandes: conheceu uma dona da vida que a ensinou a fumar, a usar garfo, a usar soutien “eu nunca havia usado um, mas até que ficou bonitinho”. Aos doze foi seduzida pelo pai alcoólatra e saiu de casa para sempre, caiu no bairro de Fátima e na Lapa, onde viveu entre marafonas, camelôs, gente sem eira nem beira, merdunchos, pingentes urbanos. Ali conseguiu um protetor, mulato quarentão, metido com jogo do bicho, mistura de padrasto e amante prepotente. A noite, depois do lusco­-fusco, fugia do casarão do Catumbi para catar alguém que lhe desse uma voltinha de carro e algum dinheiro.

Um dia, tem de fugir com medo dos ciúmes do protetor. Acaba na Praia do Pinto, num dos pontos quentes de pivetes do Rio. Começa, então, a pintar nas festinhas de embalo enturmada com as bandidetes e faz ponto no Castelinho, no Leme e no Lido. Quando a polícia aperta o cerco sobre os pivetes, por causa de maconha, assalto, furto ou outras estripulias e aprontações, Mariazinha Tiro a Esmo enviesa nas fugas para a Rocinha, Catacumba, Macedo Sobrinho, Morro do Catumbi, Morro de São Carlos, Santa Teresa ou alguma favela onde ainda tenha chance. Que, nas suas andanças, também arranja desafetos e, muita vez, manejou navalha contra as outras.

Tem conhecido dias de fartura e tem dormido em soleira de portas, entradas de edifícios, botequins. Os iniciados em malandragem costumam chamá­-la de pivete, carro novo, bandidinha, minigirl, leoa, bandidete, piranha, filhinha, piniqueira. Mariazinha Tiro a Esmo não se dá por ofendida:

– Sou piranha, e daí? Eu tenho culpa? Acho que não gostaria de ser. Seria bom ter um homem só com um carro só. Parece que seria legal. Mas está aí uma coisa que eu acho que os homens não querem.